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OLÁ,

A história não contada de Jane Austen

Cassandra Austen era a melhor amiga da autora, e, como irmã mais velha, apagou qualquer chance de outros a conhecerem tão bem quanto ela. Entenda o motivo

Por Ana Claudia Paixão
9 Maio 2025, 07h00
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Retrato de Jane Austen, da biografia escrita por J. E. Austen-Leigh (1798-1874). Todos os reatos feitos da escritora se baseiam nesse, feito pela a irmã de Austin, Cassandra (Wikipedia commons/domínio público)
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O ano de 2025 é um ano especial para os fãs de Jane Austen porque em dezembro completam 250 anos de seu nascimento. Nós apaixonados por sua obra não precisamos de motivos, mas é uma boa desculpa é para lembrar seus clássicos ao longo do ano, seja em livros, filmes ou séries. Farei isso, prometo! Mas hoje quero falar com vocês sobre a série mais recente sobre a escritora, a que traz um olhar diferente sobre ela ao ter como protagonista sua irmã adorada, Cassandra.

Miss Austen, que estreou no Reino Unido em 2024, e ainda vai estrear nos Estados Unidos esse ano, tem apenas quatro episódios e é uma adaptação do romance de mesmo nome, escrito por Gill Hornby em 2021. Hornby, que é biógrafa de Jane, se inspirou em um dos momentos mais misteriosos, marcante pouco explorado da escritora que foi o fato de que Cassandra queimou quase todas as cartas pessoais da irmã, “para proteger seu legado”, segundo consta. O que estaria escrito que não poderia vir à público? Ninguém sabe. E Hornby inventa uma possibilidade bem romântica, claro.

A série, como o livro, começa em 1830, 13 anos depois da morte de Jane, e mostra como Cassandra Austen (Keeley Hawes, maravilhosa) se desespera em localizar cartas que sabe que Jane escreveu e que não podem vir à público. Nessa missão, Cassie acaba tendo que lidar com os fantasmas do passado e chega à conclusão radical: é melhor queimar o que encontrou para que jamais outra pessoa possa lê-las. Com isso, cerca de dois terços das cartas pessoais de Jane Austen foram perdidas para sempre. Diferentemente da série, Cassandra tinha posse de toda correspondência e só tomou a decisão de destruí-las poucos anos antes de sua própria morte, em 1843, mas o mistério de sua motivação torna irresistível a especulação.

Especialistas, que apoiam a decisão de Cassandra, acreditam que o conteúdo muito pessoal e íntimo poderia afetar a imagem de Jane, endeusada desde sempre por fãs ao redor do planeta. E não era necessariamente um medo infundado: é como se hoje fossemos descobrir pensamentos que pudessem levar Jane Austen ao cancelamento ou mudar completamente como olhamos para suas obras. Como Cassandra viu isso acontecer com outra escritora, justamente uma das que mais influenciou Jane, Frances Burney, ela teria feito a escolha alinhada com os desejos da irmã que conhecia melhor do que todos.

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Capa do livro “Orgulho e preconceito”, de Jane Austen (Companhia das Letras/reprodução)
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 Para entender o medo de Jane virar uma Frances, precisamos contextualizar. Frances, também conhecida como Fanny Burney ou Madame d’Arblay, escreveu romances e peças teatrais, ganhando grande destaque ainda em vida. Jane Austen era uma de suas ávidas fãs, tanto que o título de Orgulho e Preconceito foi tirado de um dos livros de Frances. A escritora inglesa, hoje tão menor que sua admiradora, era muito influente e manteve correspondências e diários guardados, um material que foi publicado após sua morte, mas afetando sua reputação literária porque ganharam mais peso e destaque do que seus trabalhos de ficção.

Soa estranho para quem não trabalha com arte, mas criadores não querem que suas obras sejam relegadas ao esquecimento enquanto só falam de sua vida. Como os diários e as cartas de Frances eram cheios de detalhes, há o consenso de que ao oferecer um retrato mais interessante e preciso da vida do século 18, as obras dela não eram no mesmo nível.

O problema? Seus livros pararam de ser publicados enquanto biografias sobre ela se multiplicavam. Cassandra, que sabia o quanto Jane colocava sua alma em cada um dos livros que produzia, queria que a intimidade da tímida e reservada Jane fosse protegida e sua obra prevalecesse.

Cassandra Austen era apenas três anos mais velha do que Jane e viveu até os 72 anos, cerca de 28 anos a mais que a irmã. Os que se chateiam com sua decisão lembram que nas cartas que sobreviveram o destino da fogueira renderam algumas informações importantes, como quando a escritora confiou à Cassandra sua paixão por Tom Lefroy, uma história de amor inesperada e desconhecida em vida. O romance sem final feliz rendeu o doce filme Becoming Jane, com Anne Hathaway e James McAvoy, por exemplo.

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Diante desse exemplo sozinho muitos acreditam que poderia haver mais revelações interessantes nas cartas destruídas. Como Jane amava escrever, estima-se que haveria milhares de cartas durante sua vida, mas apenas 160 sobreviveram. Hornby acredita que a razão era mais simples e menos romântica, Jane teria feito “menções indiscretas de parentes irritantes” e o fogo poupou constrangimentos familiares desnecessários. Pode ser também…

O fato é que Cassandra, que Jane idolatrava, é ainda o maior mistério de todo esse drama. Ela, que também teve uma história trágica ao se apaixonar por um ex-aluno de seu pai, o reverendo George Austen, e chegar a ficar noiva dele. Como o casal precisava de dinheiro, Tom Fowle aceitou passar um ano no Caribe em uma expedição militar e fazer a fortuna necessária. Infelizmente morreu de febre amarela antes de voltar, deixando uma Cassandra desolada e viúva sem ao menos ter sido esposa.

Ela herdou um dinheiro que a permitiu sobreviver com um pouco de independência financeira, mas, decidiu nunca se casar. Assim como Jane, que mais tarde morreu em seus braços. Em vida, Cassandra ficou conhecida como aquarelista amadora e “irmã mais velha de Jane Austen”, além inspiração para várias personagens icônicas como Jane Bennet e Anne Elliott, entre outras.

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Há um paradoxo inegável nessa história: se reclamamos das cartas queimadas, temos que agradecer à Cassandra também porque é graças a ela que conhecemos o rosto de Jane Austen. Cassandra, que produziu uma série de ilustrações para os manuscritos da irmã, também é creditada por ter criado duas pinturas de Jane que serviram de base para que conheçamos seu rosto.  

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Jennifer Ehle e Lucy Davis em Orgulho e Preconceito (1995) (IMDB/reprodução)

Jane Austen morreu aos 41 anos, em 1817, de uma rápida doença misteriosa. Cassandra sofreu um derrame em 1845, morrendo aos 72 anos, ou seja, há 180 anos. Como Jane deixou um legado literário imortal, mesmo que seu lado mais íntimo tenha sido preservado – ou apagado – por Cassandra, podemos olhar como parte de um ato de proteção assim como de censura. Nunca saberemos ao certo. O que sabemos é que, sem Cassandra, talvez conhecêssemos menos de Jane, mas, paradoxalmente, também mais.

No fim, a irmã devotada garantiu que a autora pertencesse ao mundo, mesmo ao decidir quais partes de sua história seriam contadas. E nós podemos nos render à imaginação e escolher a nossa versão.

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