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Joël Dicker busca autenticidade em sua literatura

A Bravo! conversou com Joël Dicker, autor de Um Animal Selvagem, sobre sua trajetória, sucesso, relação com os leitores e método de escrita

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 18 mar 2025, 18h37 - Publicado em 18 mar 2025, 09h00
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Joël Dicker, autor de Um animal selvagem (Anoush Abrar/divulgação)
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Há pouco mais de dez anos, o escritor suíço Joël Dicker, 39, tomou uma decisão que transformou completamente sua trajetória profissional. No mesmo ano em que concluiu seu mestrado em Direito pela Universidade de Genebra, Dicker recebeu um importante incentivo para seguir sua verdadeira paixão: a literatura. Foi contemplado com o prêmio Prix des Écrivains Genevois, uma iniciativa promovida pela Société Genevoise des Écrivains (SGE) que busca destacar obras inéditas de novos escritores.

O manuscrito premiado era o romance Os Últimos Dias de Nossos Pais, publicado no mesmo ano, que marcou o início de uma carreira admirável. Apenas dois anos depois, Dicker alcançou sucesso mundial com A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert (2012), um best-seller adaptado para uma série televisiva. Desde então, ele lançou sete livros ao longo da última década, consolidando-se como um dos autores contemporâneos mais populares da literatura em língua francesa. Suas obras, que já venderam mais de 12 milhões de exemplares ao redor do mundo, são conhecidas por suas tramas complexas que combinam mistério, investigação e drama humano.

Seu trabalho mais recente, Um Animal Selvagem, foi publicado no Brasil pela Intrínseca. A trama se desenrola em Genebra e explora duas histórias familiares aparentemente desconectadas. A narrativa começa com um assalto a uma joalheria em 2 de julho de 2022, desencadeando eventos que afetam diretamente a vida de Sophie Braun, uma mulher que aparenta ter uma vida perfeita, mas que esconde segredos sombrios. Ao mesmo tempo, Sophie é observada por Greg, um policial fascinado por sua vida luxuosa e disposto a ultrapassar limites para invadir sua privacidade. Paralelamente, um homem misterioso segue os passos de Sophie, aguardando o momento certo para abordá-la, transformando sua vida em um pesadelo repleto de revelações perigosas.

Além de sua produção literária, Joël Dicker expandiu sua atuação no universo editorial ao fundar a Éditions Rosie & Wolfe em 2021, reforçando seu compromisso com a literatura e com novos projetos autorais. A Bravo! conversou com o autor, que falou sobre sua trajetória, seu sucesso, sua relação com os leitores e seu método particular de escrita.

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Um animal selvagem, de Joël Dicker (Intrínseca/divulgação)

Bravo!: Como surgiu a ideia central para essa história? E o que te motivou a explorar essa dinâmica entre os personagens?
Joël Dicker: Sabe, é difícil te dar uma resposta direta, no sentido de que não é uma única ideia ou um único enredo que surge. É como se fossem camadas sobre camadas.

Vou te dar um exemplo: algumas pessoas, quando cozinham e você experimenta e comenta: “Uau, isso ficou muito bom. Você criou essa receita?” E elas respondem: “Não, eu só coloquei um pouco de farinha, uns ingredientes, um pouco de azeite.” E você pergunta: “Sim, mas quanto? Uma colher, duas colheres?” E elas dizem: “Ah, não sei, só coloquei assim.”

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E estou dando esse exemplo porque, para mim, é um pouco assim. Eu não começo com uma ideia clara e definitiva para o livro. Não é assim que funciona. Primeiro, eu começo com uma ideia de trama que acho que é a certa e tento trabalhar nela. Aos poucos, surge uma nova ideia e penso: “Ok, essa é a próxima camada.” A história vai de A para B, mas, de repente, percebo que B é o verdadeiro enredo e A precisa ser descartado. Mas eu precisava de A como o primeiro passo, precisava dessa primeira camada para chegar à segunda. E, provavelmente, a segunda me levará a outra.

A única coisa que eu sabia é que eu queria que a história se passasse em Genebra. E isso define um pouco do tom, porque Genebra tem essa particularidade: é uma cidade pequena. E, mesmo que o nome às vezes seja associado às Nações Unidas e se queira colocar Genebra na mesma categoria de Nova York, Madri ou São Paulo, na verdade é uma cidade muito pequena.

E isso era algo que eu queria destacar. A história se passa em Genebra, e minha forma de dar essa visão sobre o tamanho da cidade foi fazer o casal morar no subúrbio, em uma área verde, com florestas e natureza. Mas, ao mesmo tempo, eles estão a apenas 10 minutos do centro da cidade, onde ambos trabalham. Depois pensei: “Ok, agora tenho o cenário, mas algo precisa acontecer, senão vai ser a história mais chata do mundo.” Foi então que surgiu a ideia de um assalto.

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Joël Dicker, autor de Um animal selvagem (Anoush Abrar/divulgação)

Você mencionou esse exemplo de cozinhar. Para se tornar um bom cozinheiro, é preciso ter muita experiência. Acho que o mesmo se aplica a um escritor. Escrever se torna mais fácil com o tempo? Você sente quando está no caminho certo durante o processo criativo?
Bem, a verdade é que você nunca sabe realmente se está certo. Mas você sabe quando está errado. E é assim que você progride. Porque, assim que você erra, você percebe.

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E o processo é um pouco como na vida. É muito difícil explicar por que gostamos de um prato ou de um tipo de comida. É difícil explicar por que é bom. Porque talvez você goste do salgado, do doce, do amargo, seja lá o que for. Mas, se você odeia um prato, é muito fácil dizer por que você o detesta.

O mesmo acontece com as pessoas. É difícil explicar por que amamos alguém, mas é muito fácil explicar por que não gostamos de alguém. Nós temos essa habilidade de descrever o que não gostamos com precisão, mas temos dificuldade em descrever o que amamos. O processo é o mesmo na escrita.

Vivemos em um mundo onde parece que o objetivo é o sucesso, é fazer tudo certo. Mas, na verdade, para fazer certo, você precisa errar. Você não pode descobrir o caminho certo sem antes errar. E temos que ser gratos e abraçar todos esses erros, porque são eles que nos levam ao caminho certo.

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Joël Dicker, autor de Um animal selvagem (Marine Mossot/divulgação)

Você é um escritor muito bem-sucedido, lido por milhões de pessoas. Mas é difícil escrever sem carregar as expectativas dos leitores na cabeça? Como você equilibra sua visão criativa com o estilo próprio de escrita e as expectativas do público?
É uma pergunta complicada porque é difícil dar uma resposta direta. Não posso dizer que o sucesso não influencia o meu trabalho, porque, claro, eu gostaria de manter o carinho dos leitores e gostaria de repetir o sucesso pelo simples fato de que é bom ser lido.

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Mas, por outro lado, existe algo mais forte do que isso. E, novamente, é o fato de que é difícil saber o que é certo, mas você sabe quando está errado. Então, é difícil ignorar completamente o sucesso e as expectativas, mas isso também é positivo, porque significa que me importo com os leitores e com o retorno que recebo.

Quando você trabalha em um livro, especialmente quando vai dedicar os próximos dois anos a ele, o que nunca falha é a autenticidade e o entusiasmo que você tem pelo projeto. Esse é o melhor guia, porque enquanto você se sente empolgado e sabe que está fazendo um trabalho autêntico — ou seja, está em sintonia com o que realmente deseja criar — tudo funciona. Isso significa que você está no caminho certo. Se algum dia eu me encontrasse em uma situação em que não estivesse gostando do processo e pensasse: “Ah, eu odeio este livro, mas preciso escrevê-lo para os meus leitores”, eu nem conseguiria fazer. Para mim, essa é a melhor diretriz a seguir.

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Joël Dicker, autor de Um animal selvagem (Anoush Abrar/divulgação)

Li em uma de suas entrevistas que você geralmente não lê os comentários das pessoas, especialmente nas redes sociais. Isso é uma maneira de se proteger e proteger sua própria escrita?
Existem comentários e feedbacks. O que quero dizer é que precisamos ter cuidado com a autenticidade do conteúdo, na vida em geral, não só em relação aos livros. Hoje em dia, é muito fácil fazer um comentário ou enviar um e-mail, mas é difícil sentir verdade nesses comentários. Para mim, é muito diferente quando alguém me envia uma carta — mesmo que seja para dizer que não gostou do meu último livro ou que não aprecia o que eu faço. Se alguém tira o tempo para escrever uma carta e enviá-la, significa que realmente se importa. Eu leio essas cartas e respondo, claro.

Por outro lado, um comentário que diz simplesmente “Eu amo o que você faz” ou “Eu odeio o que você faz” é a mesma coisa para mim. Não há prova de que a pessoa realmente se esforçou para oferecer um feedback construtivo. É por isso que não leio esses comentários; eles não acrescentam nada à discussão que eu posso ter com meus leitores. Quando recebo mensagens escritas de maneira adequada, mesmo por e-mail, que tornou esse processo mais fácil, você consegue sentir imediatamente quando alguém realmente fez um esforço para dizer algo de forma construtiva.

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Você mencionou Genebra e eu gostaria de voltar a essa questão. Anos atrás, você disse que talvez não se sentisse confortável escrevendo sobre sua própria cidade. Como foi transformar a cidade onde você vive em ficção?
Como você mencionou, para mim era difícil transformar Genebra em uma cidade ficcional. Por eu viver aqui, é mais fácil imaginar e criar histórias sobre lugares como Nova York, que conheço bem, mas que está a milhares de quilômetros de onde estou agora. É fácil para mim imaginar o que eu quiser sobre Nova York, como uma tempestade de neve ou um verão escaldante, ou até mesmo criar uma rua que não existe.

Em Genebra, é diferente. Se eu quisesse começar uma história com uma enorme tempestade de neve, eu sei que não é assim que as coisas são na realidade. Na verdade, quase não neva aqui, talvez um dia por ano, e é isso. Talvez por causa do aquecimento global, mas não temos mais aquelas grandes nevascas de antigamente. A questão é que, quando escrevemos ficção, a realidade não importa tanto. O importante é criar algo que seja verossímil, mas não necessariamente verdadeiro. Foi difícil encontrar esse equilíbrio, mas eu consegui: ser realista sem estar preso à realidade.

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Joël Dicker, autor de Um animal selvagem (Anoush Abrar/divulgação)

Uma das coisas mais interessantes sobre o seu trabalho é que você abriu uma editora. Como essa experiência mudou a forma como você pensa sobre seu trabalho e sobre a escrita?
Para ser honesto, isso não mudou muito para mim, porque eu não sou o meu próprio editor, felizmente. Eu criei minha editora porque meu antigo editor, uma pessoa muito querida chamada Bernard de Fallois, que trabalhava em Paris, faleceu. Depois disso, decidi criar minha própria editora porque senti que seria uma traição procurar outro editor. Dominique foi muito importante para mim e para minha carreira.

Como trabalhei bastante com ele em sua editora, eu senti que tinha o conhecimento necessário para criar a minha. Então, fundei minha própria editora, mas felizmente tenho uma equipe que trabalha comigo, editando e publicando meus livros. Eu não sou a pessoa que lê e aprova tudo. Existe uma equipe que faz isso, assim como faria em qualquer outra editora. Essa separação é muito importante para mim, uma espécie de “Muralha da China” que garante que eu permaneça um autor, mesmo sendo o fundador da editora que publica meu trabalho. Acho que é um equilíbrio muito saudável.

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É interessante porque agora você está, também, do outro lado dessa Muralha. Embora não esteja publicando seus próprios livros, nem seja o editor dos seus próprios livros, você tem que pensar como um editor. Então, quais critérios você considera agora ao selecionar obras para publicação?
Bem, desde o começo, minha ideia e uma das razões pelas quais criei isso foi para fazer as pessoas lerem mais, empurrar as pessoas a lerem e lerem coisas diferentes. Porque às vezes eu tinha leitores que me diziam: “Ah, eu gosto do seu livro e só leio seus livros”. Eu dizia: “Não, não, existem tantos livros e muitos livros bons. Você precisa ler coisas diferentes.” E a razão pela qual decidi criar esse impulso também foi para apresentar aos meus leitores livros diferentes. Coisas que, talvez, os tirassem da zona de conforto ou que os estimulassem a ler mais. E, por exemplo, o primeiro livro que publiquei na minha editora é um livro sobre leitura. É um livro de uma professora americana da UCLA, Maryanne Wolf. Ele se chama “Reader, Come Home” e ela é uma especialista em leitura profunda.

É um livro de ciência, sobre como a leitura no papel constrói nosso cérebro e como conseguimos nos comunicar, entender o que está em jogo, votar e fazer todo esse tipo de coisa por meio da leitura. E para mim, esse foi o primeiro livro que publiquei porque foi um sinal muito forte para os meus leitores, dizendo: “Ok, é por isso que precisamos ler.” A leitura não é só diversão, e claro, é ótimo porque nos divertimos, mas ao mesmo tempo estamos sempre construindo nosso cérebro, o que é muito importante.

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Joël Dicker, autor de Um animal selvagem (Anoush Abrar/divulgação)

E, quais outros autores te inspiram ou talvez, quais outros te interessam agora?
Eu acho que, à medida que vamos evoluindo em nossas vidas, passamos a ter autores que, em algum momento, refletem o que estamos vivendo. Eu diria que comecei com os autores que eu adorava na infância, como o Roald Dahl, e depois, aos 14 anos, comecei a ler Ken Follett e adorei seus thrillers. Foi algo que eu realmente gostei, uma fase ótima. Depois, aos 20 anos, descobri a literatura russa, e isso foi outro marco. Mais tarde, descobri a literatura americana, como Philip Roth e Jonathan Franzen, esses autores. Então, existem muitas camadas. Para mencionar dois ou três que ainda estão muito vivos na minha mente, eu citaria Philip Roth, Gabriel García Márquez e o autor francês Romain Gary. Esses ainda têm um impacto muito forte sobre mim.

E qual é a sua visão sobre o futuro da publicação tradicional diante do crescimento da autopublicação e das plataformas digitais?
Sabe, não estou muito preocupado com isso. Porque eu sinto e vejo o entusiasmo pela leitura. O problema é que temos uma enorme concorrência, como os telefones, as telas, o TikTok, o Instagram, e com isso, precisamos sublinhar e voltar especialmente para os leitores mais jovens e aqueles que ainda não se sentem atraídos. Precisamos lembrá-los de que todos amam ler, mas ainda não sabem disso, e precisamos encontrar os livros certos para dar a eles. Temos que incentivar a leitura, e é isso que estamos tentando fazer. Sabe, conseguimos fazer isso ou estamos tentando com exercícios físicos. Sempre dizemos: “Temos que trabalhar mais, ir à academia, tentar nos mover,” e é chato, porque ninguém gosta de fazer isso. Somos pessoas preguiçosas em geral, sabe, até as pessoas que gostam de se exercitar, na maior parte do tempo, não querem ir, mas depois vão e ficam felizes. Mas o que quero dizer é que…

A leitura é tão diferente, porque é algo que entretém. É um prazer e só precisamos ser capazes de conectar isso e desencadear essa ação. Precisamos lembrar as pessoas e trabalhar para que, quando elas pensarem em livros, fiquem empolgadas pelo prazer que a leitura proporciona. Sinto que, por muitos motivos, e talvez porque autores e editoras não se comprometeram o suficiente, a palavra leitura ou livros, especialmente para o público jovem, muitas vezes evoca tédio, algo enfadonho, entediante, e isso é muito ruim. 

Quando falamos de futebol, por exemplo, todos acham divertido, é legal. Mas livros… temos que trabalhar nisso porque qualquer pessoa a quem você dê o livro certo, vai se divertir muito. E, sabe, eu encontrei tantos leitores de diferentes tipos, em livrarias, prisões, escolas… Nunca ouvi alguém dizer: “Eu não gosto de ler”. As pessoas dizem “Nunca li” ou “Não leio” ou “Não ouso ler” ou “Não tenho tempo para ler”. Mas todas essas pessoas, se você encontrar os livros certos, elas vão gostar. Isso vai funcionar. Ninguém nunca me disse “Eu odeio ler”, como alguém diria “Eu odeio peixe” ou “Eu odeio espinafre”. Isso não acontece com a leitura. E é por isso que precisamos trabalhar nisso, porque temos um futuro enorme para a leitura.

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