As fotografias de Agualusa
O escritor angolano José Eduardo Agualusa fala sobre sua relação com a fotografia e o uso dela em sua construção literária
José Eduardo Agualusa é um grande escritor. Sabemos disso. Nascido em Angola, o jornalista e autor se divide, atualmente, entre dois países: Portugal e Moçambique. Boa parte do seu tempo é dado às idas e vindas, às suas viagens de volta para casa. Agualusa é uma alma de sorte, pois sempre que se despede de um desses dois territórios, ele pode dizer que está voltando para casa. Não seria estranho dizer que o meio do caminho, o mar, também é seu lar. O Brasil é também. Viveu alguns anos no Rio de Janeiro e em Recife, e uma grande massa de seus leitores são brasileiros. E já declarou seu amor ao país quando afirmou que deseja morrer em Benguela, em Angola, ou em Olinda, no Brasil.
Longe de ser uma escolha ao acaso, além do ofício no jornalismo, Agualusa escreveu obras que atravessam temas como a memória, lugares, as transformações em seu país natal após a guerra civil e a luta pela independência. Já publicou mais de 30 títulos, dos quais se destacam Nação Crioula (1997), O Vendedor de Passados (2004), As Mulheres do Meu Pai (2007) e Teoria Geral do Esquecimento (2012).
Bravo convidou Agualusa para um bate-papo, não exatamente sobre literatura, mas a respeito de sua relação com a fotografia, tão antiga quanto a paixão pelos livros. Quando pequeno, descobriu uma antiga câmera dos pais. Sua curiosidade foi sendo alimentada com o passar do tempo, até mesmo quando, em um passo falso, decidiu cursar Agronomia e Silvicultura, na Universidade Técnica de Lisboa, antes de migrar para o Jornalismo.
No decorrer dos anos, descobriu um novo uso para suas imagens: utilizá-las para semear a sua imaginação e construir narrativas a partir do que as fotografias pareciam esconder. Os registros chamaram a atenção da artista e curadora Lucia Bertazzo. Com ela, Agualusa publicou Gramática do Instante e do Infinito (2020), ilustrado com suas fotografias e poemas.
Agualusa, antes de, efetivamente, entrarmos no assunto da fotografia, gostaria de pedir que contasse um pouco da sua trajetória até escolher seguir carreira como jornalista e escritor.
Eu nasci em Angola, no Huambo, que era na época a segunda maior cidade do país. Cresci lá e depois vim estudar Agronomia e Silvicultura em Portugal. Mas não conclui por começar a fazer jornalismo. Comecei primeiro a trabalhar no jornal em Portugal que era vocacionado para a comunidade africana, que se chamava África. Depois comecei a falar mais sobre cultura, sobre livros e passei a fazer resenhas para um jornal português, o Expresso. Entretanto, voltei para Angola como correspondente de outro jornal, o Público, de Lisboa.
Depois estive no Brasil por uns dois, três anos. Vivi em Recife, em Olinda e no Rio de Janeiro. Depois vivi um ano em Berlim, com a bolsa de criação literária. Voltei para Angola e agora vivo entre Lisboa e a ilha de Moçambique.
A relação com a literatura e com as artes foi herdada de seus pais?
Com a literatura, sim. Meus pais tinham uma bela biblioteca em casa. Minha mãe era professora de literatura de língua portuguesa e gostava muito de teatro. Portanto, sim, a parte da literatura com certeza.
Na fotografia, não. Fiz um curso fotografia antes de ir para a faculdade de Agronomia. E, curiosamente, nesse mesmo curso, tinha um grupo de fotografia e tínhamos um laboratório de fotografia, uma câmara escura e eu passava muito tempo ali. Acho que passava mais tempo revelando fotografias do que estudando. Nunca fui um bom aluno.
Então você se torna fotógrafo antes de se tornar escritor?
Não exatamente. Um escritor é sempre, em primeiro lugar, um grande leitor. Sempre li muito, desde a adolescência. Portanto, comecei a escrever, mais ou menos, na altura da faculdade. Criei uma revista com um grupo de estudantes africanos, que se chamava Caminho Longe e comecei a publicar poesia, contos. Até tinham umas páginas de ensaio. Comecei nessa revista. Foi mais ou menos em simultâneo, fazia fotografias e escrevia.
“Um escritor é sempre, em primeiro lugar, um grande leitor”
José Eduardo Agualusa, escritor
Estar o tempo todo em trânsito, certamente, deve atiçar o espírito de fotógrafo em você.
Nunca levei a fotografia muito a sério. Não sou fotógrafo. E durante muitos anos, a fotografia era algo que eu fazia só para mim e fazia também como apoio para o meu trabalho enquanto jornalista e escritor. Muitas vezes, eu tirava fotografias que depois me ajudavam a escrever. Escrevi vários romances que tem a ver com viagens e essas fotografias me ajudavam. Até hoje é assim. Uso fotografias, não apenas minhas, como as fotografias de outros artistas, tenho muitos livros de fotografia e muitas vezes enquanto escrevo, há imagens que me suscitam texto, que me ajudam a escrever.
A fotografia sempre andou a par com o texto, com a literatura no sentido de que a fotografia me servia de base para a escrita. Nunca tive esse pensamento de publicar um livro de fotografias. Isso surgiu um pouco por acaso com uma amiga brasileira, a Lucia Bertazzo, que tem no Brasil uma editora que publica livros-arte. Conheci o trabalho dela e fiquei absolutamente fascinado porque ela realmente ela faz um trabalho incrível.
Ficamos amigos e ela via as minhas fotografias no Instagram e foi ela que teve a ideia de me convidar para produzir um com as minhas imagens e meus poemas. Fotografias que tinham a ver com Moçambique, onde passo uma parte do ano. Decidi fazer um livro que tivesse a ver com determinado período em que a minha mulher, a Yara, estava esperando nosso filho. Naquela altura, era muito arriscado permanecer em Moçambique porque até hoje não há médicos na ilha.
Tem as ruínas de um grande hospital, o primeiro em Moçambique. Era um hospital lindíssimo. As ruínas também são lindas. Então, decidi fazer esse livro que contasse essa história, que se chama Gramática do Instante e do Infinito.
Você disse que a fotografia serve de apoio ao seu trabalho literário. Como isso se dá? É uma busca ativa durante a escrita ou isso ocorre antes mesmo de começar a escrever?
Por exemplo, eu escrevi um livro chamado As Mulheres do Meu Pai, que conta a história de uma documentarista portuguesa, que descobre que é filha de um músico angolano e resolve ir à Angola conhecer o pai. Quando chega, o pai já morreu, mas ela descobre que o pai deixou viúvas em sete cidades africanas da costa austral. E ela decide falar com essas mulheres para fazer um documentário sobre a vida do pai. Para escrever esse livro, eu fiz essa viagem. Viajei com uma diretora inglesa que tinha a intenção de fazer um filme e com um fotógrafo português-catalão.
A ideia era recolher material para fazer o livro e depois para fazer um roteiro para o filme, acabou que só surgiu o livro, o filme nunca chegou a ser feito, mas as fotografias que fizemos durante a viagem foram essenciais para construir essa ficção e construir esse percurso. O livro tem dois tempos: o da ficção e dessa realidade que éramos nós atravessando o continente africano.
Mesmo em outros projetos, eu costumo tirar fotografias. Elas me ajudam, me inspiram. E servem não apenas para dar o testemunho do lugar, mas também a imaginar a partir daquela foto o que ela esconde.
Você é o tipo de escritor que confronta o imaginário de que o autor como figura confinada num escritório. Você parece estar sempre em movimento. O deslocamento é importante para sua criação?
Sempre foi. Eu acho que a viagem, no fundo, é também uma busca pelo imprevisto, pela surpresa, e também uma busca por pessoas. É tentar ir ao encontro das pessoas, mas nesse sentido me lembro de um dos meus escritores favoritos, um grande escritor de viagens, o Bruce Chatwin, que também fazia fotografias. E ele fotografava porque isso lhe permitia recordar os lugares e a imaginar histórias que podiam conter nesses lugares.
O quanto o imprevisto é importante na sua escrita e fotografia?
Tenho a sensação de que há dois tipos de escritores: aqueles que privilegiam a intuição e os outros que planejam, que quando começam a escrever já têm o romance todo planejado. Que só começam a escrever após ter tudo arquitetado. Provavelmente, isso também acontece nas artes plásticas. Eu sou intuitivo, sempre me guiei pela intuição. Sobretudo, na literatura, mas provavelmente também na fotografia. Para mim, o imprevisto é o que me interessa. É a surpresa que me interessa e eu acho que mesmo na poesia, por exemplo, parte especialmente do elemento surpresa.
Talvez por isso, o mar é um personagem tão importante nas suas obras. Ele traz essa questão do imprevisto, e também da intuição.
Pode ser. No caso das fotografias deste livro em particular, a presença do mar é simplificada pelo fato de serem fotografias de uma ilha, portanto uma ilha construída pelo mar. Moçambique é um território muito curioso, porque é uma ilha de coral. E uma parte da ilha é dividida em duas metades, chamada Cidade de Pedra e a Cidade Makuti. A Cidade de Pedra foi construída com pedras arrancadas da Cidade Makuti, então a ilha tem uma desigualdade física, a Cidade Makuti é mais baixa. A Cidade de Pedra, a cidade rica, fica de um lado e a cidade pobre, que era onde viviam antigamente os escravos, a população escrava e onde até hoje vivem as comunidades pobres, ficam numa zona que é, literalmente, situada mais abaixo que a outra.
Toda a ilha é uma grande placa de coral, então é uma ilha construída pelo mar, moldada pelo mar. O mar está em toda parte, ele nos cerca, mas está também dentro das casas até hoje. Mesmo na nossa casa, é comum ao acordarmos o chão estar branco de sal.
Uma das coisas que mais me interessam ali na ilha, tem a ver com lugares de encontro. As Ilhas são lugares de encontro, encontro de culturas diferentes. Moçambique é um bom exemplo disso, quando os portugueses chegaram à ilha, há 500 anos, a ilha já era uma cidade muito antiga, aonde já tinham chegado navios, embarcações indianas, embarcações chinesas. Era, naquela época, um ponto importantíssimo de trânsito, de comércio entre o Oriente e África.
Lugares e pessoas assim, resultados desses encontros, me fascinam. Tudo que tem a ver com questões identitárias.
“Tenho a sensação de que há dois tipos de escritores: aqueles que privilegiam a intuição e os outros que planejam, que quando começam a escrever já têm o romance todo planejado. Que só começam a escrever após ter tudo arquitetado”
José Eduardo Agualusa, escritor
O senhor tem alguma câmera preferida? Há também alguma lente que prefere usar?
Há muitos anos uso modelos da Sony Alpha. E agora tenho esta Sony Alpha I, uma ótima câmera. Gosto de usar a lente de 50 mm, que tem uma abertura grande. Esta tem 1.2 de abertura.
A lente de 50 mm é preferida, normalmente, dos fotojornalistas, porque não distorce a imagem. Talvez tenha a ver com a minha trajetória como jornalista. Eu herdei várias câmeras de colegas. Os fotojornalistas não usam a mesma câmera por muito tempo. Depois vendiam por um preço muito barato.
Tem alguma fotografia que tenha servido de influência direta para alguma de suas obras?
Estou vendo da minha mesa a imagem de um fotógrafo moçambicano que abre um capítulo do meu último romance, Os Vivos nos Outros. É uma foto de dois meninos, e um deles tem um peixe na cabeça. Essa foto serviu para construir todo aquele capítulo. Moçambique tem uma tradição de fotógrafos. No período colonial, houve um grupo de fotógrafos que fugiu para Moçambique e eles foram formando gerações. Portanto, criou-se ali uma escola particular de fotografia.
Mas tem alguma imagem sua?
Uma que eu gosto muito e que está neste livro e que o Mia Couto usou para um dos livros deles, é uma imagem de um grupo de pescadores. Eu uso muito uma câmera aquática, muito simples. E fotografo com ela dentro d’água, com água na lente, para deixar a imagem distorcida. Nelas o que opera é a absoluta imprevisibilidade. O que há de interessante é que os pescadores lembram guerreiros massai com lanças, justamente por conta da distorção da imagem, eles parecem vultos. É puro trabalho do acaso.
Não posso deixar de perguntar sobre a sua relação com o Brasil. Em que momento surge esse encontro?
O Brasil sempre esteve presente na minha vida, primeiro porque tenho familiares, tanto do lado do meu pai, quanto da minha mãe. Muitas vezes, eles iam nos visitar em Angola e a visita deles era sempre motivo de festa e também de estranhamento. Desde cedo, criei essa imagem do Brasil. Depois comecei a consumir música e literatura brasileiras. Com o primeiro dinheiro que ganhei como jornalista, comprei uma passagem para o Brasil. Viajei para o Rio e de lá fui para Salvador.
Mas a fotografia também teve um papel importante nessa relação. Devido a um livro de fotografias de um suíço, Barnabás Bosshart, que vivia em São Luís, em Maranhão. Ele estava radicado em Alcântara e fez um livro em preto e branco lindíssimo com retratos de pessoas que viviam lá. Fui de ônibus do Rio de Janeiro até São Luís por causa desse livro, para ver o lugar dessas fotos.