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Leia um trecho do livro Sátántangó, do Nobel László Krasznahorkai

O escritor húngaro foi anunciado na semana passada como vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2025

Por Redação Bravo!
17 out 2025, 09h00
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O escritor húngaro László Krasznahorkai, vencedor do Nobel de Literatura. (Lenke Szilagyi/reprodução)
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O escritor húngaro László Krasznahorkai foi anunciado na semana passada como vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2025 “por sua obra envolvente e visionária que, em meio ao terror apocalíptico, reafirma o poder da arte”. Reconhecido pelo rigor literário e pela cadência hipnótica de suas frases, Krasznahorkai é autor de romances como Sátántangó (1985) e A Melancolia da Resistência (1989), ambos adaptados para o cinema por Béla Tarr. Entre suas obras mais recentes estão Guerra e Guerra, Seiobo There Below, Baron Wenckheim’s Homecoming e Herscht 07769, que exploram caos social, humor melancólico e lirismo. A cerimônia do Nobel será realizada em dezembro, em Estocolmo.

Publicada em 1985, Sátántangó, sua obra mais conhecida, se passa em uma pequena comunidade rural da Hungria, marcada pela decadência, miséria e resignação, depois da queda do regime comunista local e do colapso das estruturas coletivas de produção. O romance é famoso por seu estilo denso e detalhista, com longos parágrafos e pouca pontuação, criando uma sensação de fluxo contínuo e de imersão no tempo lento da vida da aldeia.

No trecho a seguir, os personagens vivem um raro momento de euforia coletiva após anos de miséria e estagnação na aldeia rural húngara. Kráner e seus companheiros, ao iniciar o caminho para a fazenda Almássy, experimentam uma explosão de alegria e esperança, celebrando simbolicamente a ruptura com a rotina opressiva que marcou suas vidas. A narrativa detalha a reação de cada personagem — brindes, gestos, gritos e pequenas ações — criando uma sensação de comunhão e leveza passageira. Ao mesmo tempo, Krasznahorkai mantém o contraste com aqueles à margem da celebração, reforçando a tensão entre momentos de felicidade efêmera e a realidade dura e implacável da pobreza, do isolamento e da opressão social que permeia toda a obra.

 

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Capa de “Sátántangó”, do autor vencedor do Nobel de literatura 2025, László Krasznahorkai. (Companhia das Letras/divulgação)
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     Kráner desejaria ter gritado quando viraram na estrada principal e rumaram no sentido contrário ao da cidade, na direção da fazenda Almássy, pois no momento em que o cortejo se pôs a caminho, os mais de dez anos de miséria —que meia hora antes ainda o enfureciam — se encerraram para ele de um golpe, mas ao ver que os companheiros o seguiam um tanto contidos, ele se controlou até chegarem à entrada das terras de Hochmeiss: nisso, não pôde mais suprimir o bom humor e, alegre, berrou: “À puta que a pariu, aquela vida miserável! Conseguimos! Gente! Companheiros! No fim, conseguimos!”.

Parou a carroça, virou‑se de frente para os demais e, batendo nas coxas, gritou de novo: “Ouçam, companheiros! Acabou a miséria! Vocês conseguem entender? Entende, mulher?!”. Saltou para junto da sra. Kráner e a levantou como se erguesse uma criança e girou rapidamente com ela enquanto aguentou, e em seguida a pôs no chão, abracou‑a e continuou a repetir: “Eu sempre disse, eu sempre disse!”. Naquela hora os demais também foram contagiados: primeiro Halics começou a praguejar para os céus, a terra e, voltado para o assentamento, agitou os punhos, ameaçador; depois Futaki deu um salto e ficou diante de Schmidt, que gargalhava, e, emocionado, disse apenas: “Companheiro…!”;o diretor da escola dava explicações, excitado, à sra. Schmidt (“Viu, é como eu disse, não se deve abrir mão da esperança! É preciso confiar até o último suspiro! Pois aonde mais chegaríamos? Aonde? Diga!”), mas ela — como quem se desgastasse ante a explosão repentina de alegria — se esforçou para lhe dar um sorriso hesitante, a fim de não chamar para si a atenção dos outros. A sra. Halics ergueu os olhos para o céu e urrou, trêmula: “Santificado seja o Vosso nome”, até que a chuva que lhe caía sobre o rosto a obrigou a curvar a cabeça e ela se deu conta de que não era capaz de se sobrepor à “barulheira pagã”.

“Gente!”, a sra. Kráner gritou nesse momento. “Isso merece um trago!” E de uma sacola puxou uma garrafa de meio litro. “À puta que o pariu! Preparem‑se para a nova vida!”, rejubilou‑se Halics, e depressa se postou às costas de Kráner, para que sua vez chegasse antes; porém a garrafa migrou desregrada de uma boca para outra, e quando ele se deu conta, havia somente um resto no fundo dela. “Não fique triste, Lajos!”, sussurrou‑lhe a sra. Kráner, e brindou de novo com ele… “Você vai ver, vai ter mais.” A partir de então, mal conseguiram conter Halics, que parecia esvaziado pela leveza com que começou a correr na estrada com seu carrinho, e ele só se aquietou um pouco quando, uns duzentos metros adiante, lançou um olhar de cobrança para a sra. Kráner, que ela esfriou com um olhar de “ainda não…”.

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Seu bom humor incentivou os demais, e assim — embora volta e meia tivessem de ajeitar uma sacola ou bolsa no alto da carroça — não progrediram mal: logo deixaram a pequena ponte do canal de irrigação, e já se viam na distância os imensos postes de ferro das linhas de alta‑tensão e os cabos de aço que se estendiam entre eles. Na falação confusa o próprio Futaki se entusiasmou, ainda que a caminhada fosse mais desgastante para ele, pois tinha de acertar o passo com os outros (porque eles — apesar de Kráner e Schmidt tentarem de várias maneiras — não cabiam no alto das carroças) levando as malas pesadas atadas aos ombros, e lhe custava um esforço ainda maior não ficar para trás com sua perna deficiente. “Estou curioso para saber no que vão dar”, observou, reflexivo. “Quem?”, perguntou Schmidt. “Kerekes, por exemplo.” “Kerekes?”, gritou Kráner para trás.

“Não se preocupe com isso. Ontem ele foi direitinho para casa, atirou‑se na cama, e como ela não se partiu debaixo dele, acho que só vai acordar amanhã. Vai resmungar um pouco diante da taverna, e depois vai se esgueirar para a casa da sra. Horgos. Eles se merecem como dois ovos.” “Com certeza!”, palpitou Halics. “Vão se chupar bastante, nada mais os interessa! Não se importam com nada! A sra. Horgos tirou a roupa de luto um dia depois…” “Acabei de pensar!”, interrompeu a sra. Kráner. “O que houve com o famoso Kelemen? Deu o fora e eu nem percebi.” “Kelemen? Meu companheiro do coração?”, Kráner gargalhou para trás. “Ontem mesmo, no final da manhã, arrastou as suas tralhas. Passou por maus bocados, ha, ha, ha! Primeiro eu acabei com ele, depois atracou os chifres com Irimiás.

Com isso ele passou do ponto, porque este não enrolou muito, logo o mandou à merda quando ele começou a papaguear que assim e assado, que diria o que deveria ser feito, que deveriam pôr o bando todo na cadeia, que ele merecia uma deferência especial e coisas parecidas! Levantou acampamento e não disse mais nada! O que lhe fechou as portas foi começar a esfregar no nariz de Irimiás a braçadeira de policial e este lhe disse que ele podia limpar a bunda com ela.” “Não posso dizer que sinto por aquele babaca”, observou Schmidt. “Mas a carroça dele eu bem que aceitaria.” “Acredito. E depois? O que faria com ela? Ele é capaz de criar confusão até com uma árvore!” A sra. Kráner parou de súbito: “Chega!”. Kráner freou a carroça de repente. “Gente! Por Deus!” “Fale logo!”, apressou‑a. “Qual o seu problema?” “O médico.” “Qual o seu problema com o médico?”

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Fizeram silêncio, Schmidt também deteve a carroça. “Bem…”, começou gaguejando a mulher, “… eu… não lhe disse uma palavra! Ainda assim!…” “Deixe disso, mulher!”, disse, irritado, Kráner. “Eu estava achando que havia algum problema. Que te importa o médico?” “Ele com certeza teria vindo. Vai morrer de fome na solidão. Eu o conheço, como não o conheceria depois de tantos anos! Eu sei, ele já está parecendo uma criança. Se eu não puser a comida na frente dele, ele morre de fome. E a aguardente. O fumo. A roupa suja. Uma semana, duas semanas, depois os ratos vão devora‑lo.” Schmidt se manifestou, exaltado: “Não faça a heroína! Se o seu coração dói tanto por ele, volte! A mim ele não faz falta nenhuma! Eu acho que ele se sente feliz de finalmente não nos ver…”. A sra. Halics também se meteu: “Disse bem! Porque deveríamos dar graças ao Senhor por aquele sujeito do inferno não ter vindo conosco! Ele é um homem de Satã, eu já sei disso faz tempo!”. Futaki — uma vez que haviam parado — acendeu um cigarro e o ofereceu aos demais, acrescentando: “Apesar de tudo acho estranho. Será que ele não percebeu nada?”.

 

Sátántangó (Companhia das Letras, 2022)

 

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