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Livro “Chatices do amor” traz dois romances inéditos de Fernanda Young

“O Piano Está Aberto” e “O Livro” exploram temas como amor e depressão

Por Redação Bravo!
20 out 2024, 09h00
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 (Editora Record/divulgação)
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Fernanda Young nos deixou em 2019, mas suas obras permanecem vivas, nos provocando com seu humor ácido. Neste mês, a Editora Record publicou duas obras inéditas da autora, reunidas sob o título Chatices do Amor: “O Piano Está Aberto” e “O Livro”.

Em “O Piano Está Aberto”, conhecemos Anna, uma protagonista introspectiva que mergulha em suas emoções por meio da música, permitindo-se sentir a tristeza que acompanha o amor e a depressão. Já “O Livro” traz uma coletânea dos últimos textos de Young, escritos como parte de um acordo com sua analista: para retornar às sessões, ela deveria sempre levar um texto novo.

Fernanda Young morreu em 25 de agosto de 2019, aos 49 anos, em decorrência de uma crise de asma seguida de parada cardíaca. Ao longo de sua carreira, publicou 15 livros, incluindo Dores do Amor Romântico (2005), A Louca Debaixo do Branco (2012) e a obra póstuma Posso Pedir Perdão, Só Não Posso Deixar de Pecar (2019). Além disso, escreveu roteiros para séries de grande sucesso, como “Os Normais” e “Minha Nada Mole Vida”.

Leia abaixo um trecho do novo livro “As chatices do amor” (Editora Record):

Capítulo 1: Anna

“Ele não esperou ela sair do banheiro. Abriu a porta, que não estava trancada à chave, surpreendendo-a de touca de banho, coisa que a aborreceu, pois não acha elegante a imagem de uma mulher com os longos cabelos abafados num saco plástico, ainda mais nessas toucas de hotel; ele não notou nada de patético na cena, apenas anunciou:

— Fiz uma coisa horrível – gaguejante e com os olhos azuis apertados num vermelho de total desespero, ele meteu-se dentro do aposento mínimo e esfumaçado– Uma coisa horrível…

Pela intimidade que partilham, ela logo imaginou algo bastante sério, pois não é do feitio dele esse tipo de exasperação, imaginando o pior: a mulher dele ficou sabendo da viagem! Foram descobertos. E ainda: ele mandou por e-mail, sem querer, as fotos que acabara de fazer dela – após terem transado – na contraluz do belo entardecer que fazia lá fora. Quando Anna ia tomar uma ducha, era o que ele fazia, passar para o computador as fotos. Esse hábito é comum, pois eles nunca deixam na câmera essas provas, e por todo esse tempo. Ele ama fotografar, mesmo que seja apenas um hobby, e ela ama ser fotografada, mesmo que tente disfarçar a sua genuína timidez e que não saiba bem como se comportar com o seu corpo e tudo o mais. Atriz que é, dotada de um grande talento para ser mais bela, mais forte, mais inteligente, mais qualquer coisa, contanto que num outro papel que não o seu, sente-se desajeitada e tola quando está ao lado de quem tão bem a conhece. Como é o caso dele, já que estão há nove anos nesse “relacionamento clandestino”, termo que não suporta, mas que reconhece que é o cabível. E, exatamente pela clandestinidade da relação, a coisa mais horrível que poderia acontecer, depois de muitos anos temendo esse desfecho, seria ser descoberta pela família dele. Muito mais pelo temor de causar qualquer mal-estar para pessoas que pouco conhece do que pelo flagra moral que sofreria. Por isso, o “algo horrível” que ele anunciou foi imediatamente interpretado como: “Ele mandou, sem querer, as minhas fotos para a mulher.” Sentiu-se imunda. Mas antes que ela falasse algo, ele se pronunciou:

— Eu mexi no seu celular! – as palavras de pânico não deixaram dúvida, ele tinha lido as mensagens trocadas com outro, um com quem havia terminado havia pouco. Mas com quem ainda trocava algumas mensagens, pois o tal outro insistia em dizer que ainda a amava. Mesmo assim, flagrada, sentiu-se aliviada.

— Meu Deus! Que susto! Pensei que tivessem nos descoberto! Sei lá… Sua mulher, seus filhos. – Tirou a touca e se enrolou na toalha.
— Você foi descoberta! Como teve coragem? Você trocou mensagens com ele no aeroporto, antes de vir para cá! Como você pôde ser tão fria? Eu sempre soube! – Descontrolado, mas intuitivo, rapidamente começou a fazer ligações entre fatos. Sinapses tão ágeis que só uma pessoa traída consegue fazer.
— Calma. Eu… – Sentiu vergonha de dizer o resto. – Eu posso explicar!
— Explicar?
— Eu não tenho mais nada com ele… Eu… Eu te amo. Anna o abraça, ele a empurra. Então o pior realmente acontece: ele começa a chorar. Senta-se na beira da cama desfeita pelo sexo, vestido apenas com uma cueca larga e íntima, e começa a chorar. Um choro da intensidade de uma tempestade depois de uma longa seca, daquelas chuvas barulhentas que fazem todos comentarem: “O mundo agora acaba!” Nunca André havia chorado dessa forma diante de Anna; ela já o tinha visto, quando muito, lacrimejar. E acha estranha a maneira como ele chora, sente uma certa vontade de bater nele; ele produz uns ruídos que fazem com que ela tenha ímpetos agressivos, suicidas. Sim, ela poderia se tacar da janela, se não tivesse plena certeza de que não morreria, talvez ficasse meio estropiada. E agora isso seria menos tenebroso do que ver André nesse estado.

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— Por favor, não…
— Não o quê, caralho? Você estava trocando mensagens com ele enquanto vinha ao meu encontro, você estava falando com ele!

Ela tenta se lembrar do que falavam. Fica constrangida, mensagens de textos são mesmo patéticas, e lembra que tinha dito algo sobre a comunhão entre eles, uma comunhão de corpo e arte. Mentira deslavada, pois nem o corpo nem a arte dela tinham sido nutridos por aquele outro, com quem havia trocado mensagens no aeroporto. Que ódio!, pensa, aquele cretino consegue estar presente agora, destruindo o que tanto quis, encontrar André. É que foi tudo tão rápido! O outro, que se chama Daniel, ainda poderia parecer interessante, se ela não amasse tanto esse, André. E, de uma maneira infantil, burra e mau-caráter, Anna tinha acreditado que o ideal era manter o outro, Daniel, “cozinhando”, enquanto ia para Paris encontrar com esse, esse André, o único André no mundo que ama, e há muito. A pessoa cujo cheiro reconheceria em meio a um milhão de outros corpos, de olhos vendados, sem usar nenhum outro sentido, pararia diante desse e diria: “É ele.” O corpo dela dói ao detectar o absurdo da situação. A situação que parecia ser a mais incrível história que um dia viria a contar para uma neta: “Vovó teve um grande amor na vida, e um dia foi encontrá-lo em Paris, para passar apenas dois dias, depois de sete meses de espera e dúvida.” Mas Anna tem um filho doente, e sabe que provavelmente nem terá essa neta hipotética, e, agora, destruídas as intenções dos dois dias perfeitos em Paris, caso ela viesse a existir, escutaria de vovó: “Vovó teve um grande amor na vida, e um dia foi encontrá-lo em Paris, para passar apenas duas noites (ele logo partirá, assim que amanhecer) e, no segundo dia, ele a flagrou sendo… sendo…” O que ela estava sendo enquanto trocava mensagens com o outro, ao mesmo tempo que queria esse, esse que tinha comprado a passagem dela, para se reencontrarem, em local neutro e distante, depois de uma longa ausência? E o detalhe das passagens, nesse instante, para Anna, é de um constrangimento ímpar – ele as comprou, fez a reserva no hotel que ela escolheu, e que agora abriga tanta dor e tanto ridículo.”

 

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