Luana Carvalho: O vento que venta lá
Luana Carvalho, em sua coluna deste mês, parte do outono carioca para costurar paisagens, sentimentos e desigualdades que atravessam corpos e cidades

Outono no Rio é um acontecimento. Lindo. O sol alcança frestas que só mesmo nessa estação.
É possível encontrar insetos mortos em cantos onde a luz artificial demora a chegar. Parece triste, mas é bonito ver um inseto que morreu sozinho, sem a intervenção direta de uma pessoa. Maio costuma ser um mês de sorte. A começar pelo dia do trabalhador. Tanto formigas quanto cigarras são felizes em maio. E as abelhas fazem a festa.
Daqui de onde moro tenho a vista dos Dois Irmãos e da Rocinha. O mesmo céu sobretudo outro céu. O cúmulo da beleza é tão alegre quanto triste. Em qualquer estação do ano, esse é o acontecimento mais definidor dessa cidade; os barracos que se veem de um apartamento de luxo. Os tiros rasgando o azul.
Me lembrei de um filme filipino chamado “Lola” (que quer dizer “avó” em Tagalog, um dos idiomas mais falados na região). Linda Casimiro conta a história de duas avós muito pobres, cujo neto de uma assassina o da outra. Acompanhamos a difícil busca por justiça da avó enlutada e a precária tentativa de defesa da que acredita na inocência do réu. O que mais me chamou atenção foi o que a condição climática do país incita no cotidiano da população mais miserável.
Parece que chove pra sempre nas Filipinas. No período das monções, que começa hoje e vai até novembro, as pessoas têm que existir como se pra segurar um guarda-chuva. Tudo que se faz, faz-se com um guarda-chuva na mão; uma espécie de bengala pra cima. É comum ainda que carreguem patos vivos pra vender nos pontos de ônibus antes de entrar na condução. O guarda-chuva numa mão e o pato pelos pés na outra. Também seus ovos e verduras, buscadas em pequenos sítios distantes. Carregam, sob chuvas torrenciais, uma quantidade desproporcional de elementos. Não sobra mão para se segurar nas barras de suporte. Porque mesmo quando as vendas vão bem, é preciso levar uma parte para alimentar a família. Os corpos escoram-se uns nos outros, sem apoio. Também nas canoas lotadas que as conduzem até suas casas de bambu, madeira e palha, construídas sobre as águas em estruturas de palafitas (Bahay na Kubo em Tagalog).
Nessas casas há uma espécie de vão onde as famílias pescam da própria sala. Porém, há escassez de peixe por causa da sobrepesca das grandes indústrias nas regiões muito ricas do país. Especialmente nesse período do ano.
Os insetos alcançam peles que só nessa estação. É possível encontrar pessoas mortas em cantos onde a luz da consciência demora a chegar. É triste vê-las morrer sozinhas. O outono é também um acontecimento nas Filipinas. Mesmas águas, entretanto outras águas. Outro céu, sobretudo o mesmo céu. O cúmulo da beleza.