Meu amigo Vargas Llosa
O jornalista brasileiro Ricardo Setti detalha como conheceu e se aproximou do escritor peruano ganhador do Nobel, que morreu no último dia 13, aos 89 anos

A bruma do Pacífico ainda não se dissipou sob o sol das 7 da manhã e aquele homem moreno, espigado e bem-apessoado, vestindo roupa esportiva, já está em atividade pelos arredores do malecón Paul Harris, uma alameda que serpenteia o promontório voltado para o mar no elegante bairro de Barranco, em Lima, Peru.
Os moradores das belas casas dali já estão acostumados: é o vizinho famoso, o escritor Mario Vargas Llosa, correndo seus 4 ou 5km, como faz religiosamente seis dias por semana, seja qual for o clima. Quando o conheci e o entrevistei durante três longas tardes para a revista Playboy, em dezembro de 1985, Vargas Llosa, próximo dos 50 anos de idade, tomava um banho após a corrida, fortalecia-se com um bom café da manhã e, pontualmente às 9 horas, sentava-se à sua escrivaninha para começar um novo dia.
Como uma “ginástica, uma espécie de calistenia”, para aquecer os misteriosos recursos de ficcionista que nem ele sabe explicar de onde vêm, invariavelmente iniciava o trabalho passando a limpo, reescrevendo e corrigindo, na máquina de escrever, parte do que na véspera redigira a mão. Faz isso até hoje, só que com computador. Depois de algum tempo, passava a elaborar fichas sobre personagens atuais ou futuros, realizava pesquisas ou rascunhava ideias. Até retornar ao texto em andamento, que na manhã seguinte repassaria pela máquina de escrever.
Nada nem ninguém, a partir daí, era capaz de interrompê-lo antes das 2 da tarde, quando almoçava e preparava-se para uma tarde de atividades variadas. (Consegui me infitrar em três dessas tardes, em dias consecutivos.) Era este, e ainda é, seu segredo como escritor prolífico e como polemista presente a cada semana em jornais do mundo inteiro: disciplina monástica.
Quando não está viajando para uma constante mistura de trabalho, curiosidade e lazer – o que hoje em dia lhe consome de quatro a cinco meses por ano –, ele trabalha como escritor das 9 às 2 da tarde todos os dias, de segunda a sábado, reservando o domingo para artigos. As paixões políticas em seu Peru natal e as ameaças físicas a ele e sua família, porém – a mulher, Patrícia, e os filhos, Álvaro, Gonzalo e Morgana –, sobretudo depois de sua frustrada candidatura à presidência da república, em 1990, a que foi arrastado a contragosto por uma série de circunstâncias, obrigaram-no a deixar o país com a mulher por um longo período.
Vargas Llosa, então, abandonou a rotina que tinha por base sua magnífica casa recheada de belos quadros, equipada com piscina e dotada de um amplo escritório com ar-condicionado onde ele continua mantendo, encadernadas, centenas de suas obras traduzidas em mais de 40 idiomas. Alvo de perseguições engendradas pelo vencedor da eleição, Alberto Fujimori, cujo governo autoritário desembocou numa ditadura corrupta e sanguinária, Vargas Llosa protegeu-se com a aquisição de uma segunda nacionalidade, a espanhola, e transformou em base operacional o apartamento que possuía em Knightsbridge, em Londres.
Seu riquíssimo arquivo com originais, rascunhos, anotações e tudo referente à sua obra, que conheci, extasiado, guiado pelo autor, ele protegeu doando-o à Universidade de Princeton. “No Peru, minha casa está constantemente sujeita a ser destruída por um coquetel molotov”, disse-me no mês passado, uma semana depois de ganhar o Nobel, durante sua passagem por São Paulo.
Mesmo antes do Nobel, o apartamento de Londres já fora vendido. O escritor residiu em Berlim e neste semestre passou a morar temporariamente em Nova York, a 50 minutos de Princeton, em Nova Jersey, em cuja universidade está ministrando dois cursos, um sobre técnica de ficção e outro sobre Jorge Luis Borges, uma de suas grandes admirações. Passa três meses por ano num apartamento em Madri e mais outro tanto em Lima.
Escrevendo On The Road
Estar um dia aqui, outro ali não constitui nada demais, com certeza, para um globetrotter que viaja incansavalmente há meio século e que escreveu boa parte de sua obra on the road. Só para ficar em alguns exemplos: seu excelente romance de estreia, A Cidade e os Cachorros (1963), foi escrito na Espanha e em Paris. A obra-prima Conversa na Catedral (1969), talvez o mais profundamente peruano de seus livros, começou a ser gerado em Paris e recebeu seu ponto final em Londres.
O divertidíssimo Pantaleão e as Visitadoras (1973) veio à luz em Barcelona. A Guerra do Fim do Mundo (1981) começou em Lima, estendeu-se à Bahia, seguiu em Londres e terminou em Washington. E, para citar apenas dois exemplos posteriores, o memorialístico Peixe na Água (1993) tomou corpo em Londres e Travessuras da Menina Má (2006) em Berlim e Madri.
Não imaginemos, porém, que o escritor só frequente o charmoso circuito das grandes capitais do Ocidente. “O fato de meu fi lho Gonzalo trabalhar no Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados me levou a conhecer mais de uma dezena de países em situação trágica”, contou-me ele. Mas, confessa, jamais viu horror semelhante ao que presenciou no Congo, onde se passa parte de seu novo romance O Sonho do Celta, já lançado em língua espanhola e que chega ao Brasil em 2011.
A obra é uma ficção inspirada na vida do diplomata britânico Roger Casement (1864-1916), que denunciou, sem repercussão proporcional ao que testemunhara, a barbárie que vivia o Congo sob a colonização da Bélgica e de seu rei Leopoldo II, ironicamente chamado “o Benemérito”.
Alma Peruana
O escritor percorreu durante duas semanas a República Democrática do Congo e só presenciou doença, morte, destruição e desesperança. “Vi pessoas que não conseguem mais se levantar, tal o grau de desnutrição e de devastação pela Aids. Elas não têm forças sequer para abanar as moscas que lhes invadem os olhos”, relatou. “O país está retalhado por milícias a serviço de interesses estrangeiros e de gangues que lhe saqueiam as riquezas, estupram as mulheres e matam a torto e a direito. Não existe governo, ordem ou segurança – e o pior é que não imagino como possa haver saída para o quadro pavoroso que constatei.”
A despeito de indignar-se com os males do mundo, Vargas Llosa continua levando na alma o Peru. Sempre teve com o país uma relação especialíssima – “Mais adúltera do que conjugal, cheia de suspeita, paixão e fúria”, de tal forma que, paradoxalmente, buscou distância para conseguir escrever sobre sua terra. “A distância purifica essa coisa tão complicada que é a realidade – a realidade imediata é uma imensa vertigem, que ao mesmo tempo produz exaltação e paralisia.”
Vargas Llosa é um homem formal, mas extremamente caloroso. Depois da entrevista para Playboy, ele teve a gentileza de me agradecer com uma longa carta manuscrita. Passamos então a nos corresponder. Ele autorizou que eu transformasse o imenso material de nossas conversas num livro, Conversas com Vargas Llosa (Brasiliense, 1986), editado em Portugal, França e, em excerto, na Paris Review de Nova York.
Para os países de língua espanhola, um editor da Flórida preparou um livro, Sobre la Vida y la Política, reunindo a entrevista, ensaios do autor e fotos de sua trajetória. Voltamos a conversar quando da produção da obra – cujos direitos autorais deveríamos compartilhar, o que jamais aconteceu. Acabamos rindo do calote numa das vezes em que nos reencontramos em 1994, quando Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, homenageou- o com um jantar com personalidades como Caetano Veloso e Fernando Henrique Cardoso.
Naquela mesma vinda de Vargas Llosa ao Brasil, participei de um programa Roda-Viva, da TV Cultura, em que ele foi entrevistado, e ao fim do qual acompanhei-o até o hotel. No programa, fiz- lhe uma pergunta de fundo cunho pessoal – sobre o que lhe ficou de bom do pai tirânico, que ele, filho de um casal separado, só veio a conhecer aos 10 anos de idade e com o qual manteve a vida toda uma relação plena de hostilidade e medo.
A resposta, genial: “Talvez eu deva muito a meu pai – sua oposição à minha vocação de escritor, que ele considerava coisa de boêmios ou de maricas, foi tão feroz que, resistindo a ele, acabei abraçando-a definitivamente, e não poderia conceber a vida sem ela”.
Anos depois, almoçei com ele no restaurante Fasano, em São Paulo. Conversa agradabilíssima. Vi-o três anos atrás, em Barcelona, quando, no Teatro Romea, ele, “vencendo o medo pavoroso do palco”, como me confessou, protagonizou uma espécie de leitura dramática de trechos de obras alheias que o fascinam, com a participação da atriz espanhola Aitana Sánchez-Gijón. Quis procurá-lo após o espetáculo, La Verdad de las Mentiras, mas uma legião de fãs amontoados no corredor me fez desistir da ideia. Contei isso a ele e levei uma bronca. Ao me despedir, ele me disse: “Não podemos passar outros 25 anos sem ter mais uma conversa demorada como aquela”.
Este texto faz parte do Acervo da Bravo! e foi originalmente publicado na revista impressa de número 159, em 2010