Tomando uma com Néli Pereira
No livro "Da botica ao boteco", a jornalista e mixologista faz uma ode às plantas brasileiras e seus saberes ancestrais
Néli Pereira tem uma história de dar inveja. Com interesses muito específicos, a jornalista, escritora e mixologista, desde o início de sua jornada profissional, soube dar vazão à maior de suas paixões: contar a história do Brasil. Como todo comunicador, Néli percebeu que precisava de um veículo para passar adiante sua mensagem. Por anos, a rádio foi seu lugar. Hoje em dia, é o bar.
Mas calma. Vamos contar melhor essa história. Em setembro, a escritora publicou o livro Da botica ao boteco: Plantas, garrafadas e a coquetelaria brasileira, pela Companhia das Letras. Fruto de uma longa pesquisa, iniciada em 2014, Néli escava a história de ingredientes que compõe os drinques populares, assim como a evolução das garrafadas brasileiras. Para quem não conhece essas últimas, são compostos de ervas medicinais, cascas e raízes produtos de origem animal ou mineral, mergulhados em aguardente ou vinho, que servem para curar os males do corpo e da alma.
“Vi que não tinha muito como estudar sobre plantas sem estudar sobre de onde elas vieram, como elas eram usadas tradicionalmente e quem as usava. E aí você resvala numa cultura brasileira, que é a cultura brasileira, que é a cultura da medicina popular”
Néli Pereira, jornalista e mixologista
Menos Grapefruit, mais jurubeba
Muito mais do que encontrar o equilíbrio ou receita perfeita para impressionar amigos ou clientes, seu interesse era, e segue sendo, rastrear as origens e influências culturais, religiosas e sociais dessas infusões medicinais na história brasileira.
“Quando comecei a estudar as plantas, as ervas, as cascas e raízes, vi que não tinha muito como estudar sobre elas sem estudar sobre de onde elas vieram, como elas eram usadas tradicionalmente e quem as usava. E aí você resvala numa cultura brasileira, que é a cultura da medicina popular: que envolve as garrafadas, o banho de cheiro. Você encontra as benzedeiras, ou até mesmo a avó que fazia um xarope com ervas do quintal. Naturalmente, foi me levando para esses lugares”, conta Néli.
Mas sua curiosidade vai além dos livros. Néli e seu marido, Renato Larini, fundaram em 2012 o Espaço Zebra, uma combinação de ateliê e galeria de arte, bar e restaurante. Com as mãos na coqueteleira, ela é responsável por testar e criar novas biritas. Importante destacar que todas carregam ingredientes nacionais. É o que ela chama de decolonizar nosso paladar. “Menos grapefruit, mais jurubeba”, prega na introdução do livro.
O espaço, localizado na região central de São Paulo, abre a cada 15 dias e possui um clima bastante intimista. Para visitar, é necessário reservar com antecedência.
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Sextou com Néli
Entrevistar a mixologista e escritora Néli Pereira, é mergulhar num dos assuntos mais prazerosos para o brasileiro. Para isso, visitei o Espaço Zebra numa sexta-feira à tarde. Sextei mais cedo.
Brinquei com ela no começo de conversa: “Acho que tenho bebido errado durante toda minha vida adulta.” Com jeito doce e calmo, ela diz que está fora de questão ser autoritária sobre o paladar dos outros. Sua intenção, diz, é que mais pessoas conheçam e valorizem os ingredientes que crescem em nosso grande jardim. E, claro, expandir nossa capacidade de distinguir os sabores.
Para abrir os trabalhos, ela me serve uma dose de catuaba. E antes de ligar o gravador, ela me oferece um drink e pergunta qual tipo gosto de beber. Meio sem graça pela limitação do meu paladar alcoólico, digo que faço parte da onda de jovens (não tão jovens) que pegaram gosto pelo gim, talvez pela sua versatilidade. “Mas o que você gosta no gim?” Provavelmente, o aroma, respondo.
Com muita tranquilidade, Néli abre um grande jarro de vidro com ervas infusionadas, uma mistura amarela bem clarinha. O cheiro é doce. Agilmente, ela prepara uma mistura de gim com infusão de melissa, camomila e erva-cidreira. É extremamente suave e parece complementar o sabor mais picante do destilando. E, então, começo formalmente a entrevista.
Néli está do outro lado do balcão, de costas a várias prateleiras, carregadas de copos, porcelanas e jarros. Ao lado do bar há um apotecário, uma botica, com infusões de tudo que é tipo: macaçá, mastruz, catuaba, copaíba, andiroba, jucá, cipó alho, erva chama, boldo, erva-cidreira, garrafadas compostas, buriti, jurubeba, e assim vai.
Acima de sua cabeça um retrato antigo de seus avós maternos, Izaura e Felício. Ela recorda que Áurea foi uma mulher que viveu na roça, tinha a prática de benzer, ungir e também tinha o costume de trabalhar com plantas medicinais. Mas, curiosamente, esse interesse não foi herança familiar. “Eu acho os primeiros contatos com as ervas, os banhos, vieram muito mais da influência da Umbanda”, ela conta ao lembrar que foi uma tia de parte de pai que a levou, com apenas 5 anos, para um centro de Umbanda. As conexões nasceram ali. “Não dá para falar de planta no Brasil sem falar do ritualístico, sejam religiosas, sagradas ou profanas.”
Entre um gole e outro, Néli conta sua história. Nascida em Curitiba, ela lembra que aos 17 anos, durante a faculdade de jornalismo, começou a trabalhar em um programa de rádio de músicas brasileiras. Realizou o sonho de muitos colegas de profissão – inclusive, o meu – ao entrevistar Bezerra da Silva, Dona Ivone Lara e Ariano Suassuna. Entendeu ali que, para conversar com esses bastiões da música e literatura nacionais, precisava dominar a cultura brasileira. Levou esse compromisso a sério. No entanto, na época, não havia estudos interdisciplinares no país, o estudo da cultura se dava pela Antropologia.
Foi então que, anos mais tarde, conseguiu uma bolsa para fazer mestrado, na Universidade de Londres, em estudos culturais latino-americanos. Levou na bagagem os livros, a coragem e um gostinho pela birita. Seu pai era um bom bebedor de uísque, recorda. E ela sempre teve interesse em conhecer mais sobre a produção dos destilados e do vinho. Passou os anos seguintes fazendo cursos e se aprofundando nessa segunda paixão, o que maturou seu olfato e paladar. De volta ao Brasil, ela e o marido abriram o Zebra, que até então já tinha o perfil de galeria de arte, e que servia vinho e cerveja, quase sempre para amigos e pessoas próximas.
Um gole, uma mensagem
Aos poucos, Néli foi fazendo os próprios experimentos e, novamente, voltou a estudar, dessa vez sobre outro assunto: a coquetelaria.
“Comecei a pesquisar o que tinha de coquetelaria rolando no mundo. Coisa de jornalista, né? E vi que tinha uma corrente dela que era essa coquetelaria apotecária, que eram pessoas que usavam ingredientes do seu entorno. Eu pensei: ‘Nossa isso deve estar bombando no Brasil, afinal de contas estamos dentro da maior sociobiodiversidade do mundo’. Mas não estava.”
A coquetelaria foi integrada no Zebra e Néli aprendeu a fazer novas infusões, misturando ervas e cascas. Até que um dia seu marido reconheceu nos seus testes uma outra técnica: “Isso que você está fazendo são garrafadas.”
O resto é história. “A hora que vi que tinha todo esse conteúdo para contar de Brasil que ninguém estava contando e que podia fazer uma diferença tanto para o ingrediente em si quanto para a gente decolonizar o paladar e trazer essas guardiãs da nossa cultura à tona para contar uma história, acho que foi aí que eu me apaixonei pelo assunto e virou, de fato, uma coisa sobre a qual gostaria de falar.” Atualmente ela enxerga seu balcão como uma ponte, um canal de transmissão de tudo aquilo que aprendeu.
“Nunca vou te dar um gole de graça, sempre vai um bocadinho de história do Brasil junto”, ela diz aos risos.
Uma bebida servida num copo não é apenas um mix de ingredientes, mas diz respeito às suas escolhas e visões de mundo. E há um ponto de vista que ela busca desmistificar, aquela que propaga que o ingrediente nacional serve para tornar o drink mais exótico. “Nós importamos essa visão colonialista de que aquilo que vem do Brasil é exótico. O ingrediente brasileiro é como outro qualquer, e ele vai aparecer mais ou menos conforme a sua coquetelaria, seja mais doce ou amarga. E a minha vontade é que ele sobressaia. A catuaba, por exemplo, eu não quero esconder o seu sabor, quero que as pessoas sintam o gosto. Uma vez fiz um negroni que ao invés de colocar o vermute, eu colocava a catuaba. Fiz também a carqueja com aperol spritz. Queria revelar esses ingredientes, não escondê-los.”
“Nunca vou te dar um gole de graça, sempre vai um bocadinho de história do Brasil junto”
Néli Pereira, jornalista e mixologista
Quase como uma sessão de terapia, Néli foi percebendo que não era sobre fazer um drink diferente, mas justamente mostrar os ingredientes. Isso se tornou a máxima de seu trabalho. De modo que não importava sequer se a bebida era alcoólica ou não. E, assim, tornou-se defensora do consumo responsável de álcool. “O prazer está em passear por esses ingredientes, eles sempre serão os protagonistas, não o uísque ou o destilado.”
Diante do ofício que envolve consumir doses diárias de álcool, ela decidiu fazer, de tempos em tempos, períodos de abstinência. O que a levou a criar também coquetéis sem álcool. “Eu falei: ‘Chega, vou dar um descanso para o meu corpo, aqui quem manda sou eu’. Fiquei agora 30 dias sem beber e foi incrível, minha saúde melhorou, minha pele melhorou. Inclusive, eu comecei a perceber a falta de opção não alcoólica que tinha para quem não queria beber. E aí comecei a fazer isso a cada três meses. Entendi nesse processo que eu passei a ser muito mais criteriosa com o que eu queria beber.” O envolvimento foi tamanho que ajudou a Ambev na construção de uma plataforma sobre consumo responsável, que abriga testes diagnósticos sobre a quantidade de uso de álcool e oferece uma série de receitas de drinks não alcoólicos.
É sobre equilíbrio
Há, por fim, um grande aprendizado advindo desses longos experimentos que resultaram na publicação atual: encontrar o equilíbrio. E qual o segredo para o equilíbrio? “Priorizar”, ela responde. Tanto para a composição de um drink quanto nas coisas do dia a dia. “Se você não prioriza sua vida pessoal, você vai trabalhar muito mais e aí ferra sua vida pessoal, por exemplo.”
Na vida e na coquetelaria, é necessário identificar o que está em jogo e fazer escolhas. Se não rolar, tudo bem, questão de fazer pequenos ajustes. Essa é a mensagem que carrego dessa visita e do papo com Néli Pereira.
Autora: Néli Pereira
Companhia da Mesa – 208 páginas