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OLÁ,

‘O Desabamento’: Leia um trecho exclusivo do novo livro de Édouard Louis

Desde o início de sua carreira, Louis tem se dedicado ao gênero autobiográfico, explorando suas próprias perspectivas e as de sua família

Por Redação Bravo!
24 jul 2025, 07h00
edouard-louis
 (Arnaud Delrue/divulgação)
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O jovem escritor francês Édouard Louis consolidou-se como uma das vozes mais impactantes da literatura contemporânea. Seu prestígio decorre da abordagem direta e pragmática das experiências que marcaram sua vida: a pobreza, a homofobia e a violência vividas na infância e adolescência em Hallencourt, uma vila operária no norte da França. Desde o início de sua carreira, Louis tem se dedicado ao gênero autobiográfico, explorando suas próprias perspectivas e as de sua família, ao mesmo tempo em que denuncia as estruturas sociais que perpetuam a desigualdade e o sofrimento.

Em sua mais recente obra, O desabamento, o autor aprofunda a complexa relação com seu irmão mais velho, fruto do primeiro casamento da mãe. Demonstrando uma distância emocional reveladora, ele investiga a vida do irmão por meio de entrevistas com pessoas próximas e recordações pessoais, retratando a trajetória de um jovem que fugiu da escola, da família e da própria realidade.

Leia abaixo um trecho de O desabamento (Todavia, 2025).

Não senti nada quando soube que meu irmão tinha morrido;

nem tristeza, nem desespero, nem alegria, nem prazer. Recebi a notícia como se ouvisse a previsão do tempo ou como se escutasse alguém contando sobre sua tarde no supermercado. Eu não o via fazia quase dez anos. Não queria mais vê-lo.

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De vez em quando, minha mãe tentava fazer com que eu mudasse de ideia, a voz hesitante, como se tivesse medo de me incomodar ou de gerar um conflito entre mim e ela:

— Você sabe, seu irmão, talvez você pudesse dar uma chance a ele… acho que ele ia gostar. Ele fala muito de você…

Eu interrompia a conversa violentamente, com uma brutalidade que não reconhecia em mim e que jamais me atreveria a usar com ela em outro contexto; eu dizia que não queria mais ouvir falar dele, que minha decisão era definitiva; na maioria das vezes ela tentava de outra maneira, uma segunda vez:

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— Mas eu falei pra ele, se você encontrar seu irmãozinho não o irrite com o passado e com o que aconteceu entre vocês. Deixa ele em paz. E ele me prometeu. Prometeu que não falaria do passado…

Diante da minha falta de resposta, ela deixava sua voz sumir no silêncio e olhava para baixo antes de mudar de assunto entusiasmada, a voz estridente, e eu via que ela falava dessa forma para encobrir o incômodo produzido por sua tentativa frustrada de reconciliação e por minha repentina agressividade — demais ter causado a ela essa dor, talvez eu devesse ter me esforçado um pouco, mas também talvez eu só possa dizer o que estou dizendo agora porque é tarde demais, talvez a gente só possa ficar verdadeira e autenticamente consternado quando é tarde demais, não sei.

Soube que ele tinha morrido numa terça-feira, alguns minutos depois de acordar. Era um dia cinzento e frio, a condensação nas janelas desfocava o céu lá fora; eu estava lendo e vi no celular que minha mãe tinha me ligado várias vezes; era muito cedo, eu não estava com vontade de falar; mas ela ligou de novo, e de novo, então comecei a imaginar que alguma coisa grave ou importante poderia ter acontecido — uma vaga impressão, como um instinto difuso, sem linguagem, sem palavras. Quando o nome do meu irmão caçula apareceu na tela do celular, tive a certeza de que algo de anormal havia acontecido. Pensei num acidente, em morte — e eu tinha razão.

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Atendi; minha mãe estava chorando. Ela disse que o hospital ia desligar os aparelhos — dele, do meu irmão —, que ele só estava vivo porque uma máquina o mantinha vivo; a máquina fazia o coração de um corpo morto bater.

Na véspera ele tinha sido encontrado pela mulher com quem se relacionava fazia vários anos desabado no chão de seu apartamento, inconsciente, como um bicho agonizante, como um animal. Seu corpo estava no chão porque seu coração já não batia. Quando, em seguida, foi levado ao hospital, os médicos constataram que seu fígado também tinha parado de funcionar; e seus rins, seus rins estavam muito fracos, incapazes de cumprir a função que deveriam cumprir. Seus órgãos já estavam se degradando havia anos, rapidamente, ele tinha entrado e saído de prontos-socorros e hospitais muitas vezes nos últimos meses, e agora não havia mais esperança, esse colapso foi a gota d’água. Os médicos disseram à minha mãe que por conta da parada cardíaca seu cérebro não tinha recebido oxigênio por vários minutos e ficara danificado, como se tivesse sido desligado em diversos lugares, como os diferentes cômodos de um apartamento ficando no escuro um após o outro, sucessivamente, ou como se ele — seu cérebro — tivesse se fechado em si mesmo, irremediavelmente contraído.

Mesmo que sobrevivesse, disseram os médicos, mesmo que sobrevivesse, não seria mais capaz de andar depois de recobrar a consciência, não seria mais capaz de falar. O homem conversou com minha mãe e lhe deu as explicações, disse que isso não era tudo, que além de todos esses problemas eles tinham detectado um câncer grave no estômago dele, um nódulo anormal, células contaminadas, algo que estranhamente não havia sido diagnosticado antes.

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Minha mãe me disse ao telefone que o rosto do meu irmão no leito da UTI estava roxo, inchado; meu irmão estava tecnicamente morto, o hospital podia tentar mantê-lo vivo ainda por algum tempo, mas não havia mais dúvidas, era o fim, minha mãe tinha me ligado para que eu soubesse que ela daria a autorização para a equipe médica desligar os aparelhos. Ele estava morto, mas ela era a única que tinha o direito de deixá-lo morrer. Ele tinha trinta e oito anos.

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