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OLÁ,

Tracy K. Smith reimagina luto e memórias pela poesia

A autora estadunidense esteve no Brasil recentemente para acompanhar o lançamento de Vida em Marte, seu primeiro livro traduzido para o português

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 4 jun 2025, 13h52 - Publicado em 4 jun 2025, 09h00
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 (Andrew Kelly/divulgação)
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Olhar as estrelas, simplesmente contemplar a escuridão do céu noturno e refletir sobre os mistérios do universo, é, estranhamente, uma forma de reconciliação com aquilo que nos escapa ao controle aqui na Terra. Como se a vastidão cósmica nos colocasse em perspectiva, devolvendo certa serenidade diante do que parece incontornável. Não que os problemas sejam pequenos — longe disso. Há muito com o que se preocupar por aqui: mudanças climáticas, violência, a morte, as incertezas do futuro. Mas, então, há a beleza do desconhecido, refletida nesse outro lado do espelho, de silêncio e suspensão.

Essas não são divagações aleatórias, mas sensações despertadas pela leitura do livro de poemas Vida em Marte, da estadunidense Tracy K. Smith. Lançada originalmente em 2011, a obra chega com atraso ao Brasil este ano, pela Relicário Edições. Não se trata de uma publicação qualquer: com ela, Tracy foi reconhecida com o Prêmio Pulitzer de Poesia e consolidou-se como uma das vozes mais relevantes da literatura contemporânea em língua inglesa. 

Entre 2017 e 2019, Tracy K. Smith ocupou o prestigiado cargo de poeta laureada dos Estados Unidos, uma nomeação concedida pela Biblioteca do Congresso a autores que se destacam por sua contribuição à poesia e que, durante o mandato, são convidados a promover o acesso e o interesse pela linguagem poética em todo o país.

Em Vida em Marte, Tracy ultrapassa os encantamentos que o universo costuma inspirar e parte de um drama profundamente pessoal: o luto pela morte de seu pai, Floyd William Smith, engenheiro de aviônicos da Força Aérea, entusiasta de ficção científica e um dos profissionais envolvidos no projeto do Telescópio Espacial Hubble. O cosmos, portanto, não surge como cenário qualquer nem apenas como metáfora poética; é evocação íntima de uma presença que se foi.

Inspirada por vozes como a da poeta Lucille Clifton, que abordava com coragem a interseção entre vida pessoal e criação artística, Tracy viu sua própria escrita florescer. Em Vida em Marte, ela sugere uma trilha sonora para o universo, evoca referências da cultura pop, como David Bowie (por motivos talvez óbvios), Stanley Kubrick, Lady Di e até Deus, e reflete sobre as mudanças da História, suas fraturas, e os fios entrelaçados de sua memória afetiva, muitas vezes centrada em seu pai ou mediada por lembranças dele.

Em um dos poemas, ela escreve:

“Quando meu pai trabalhava no telescópio Hubble, ele disse

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Que eles operavam como cirurgiões: esterilizados e empacotados

Em aventais verdes, a sala limpa e gelada, um branco reluzente.

Ele lia Larry Niven em casa, e bebia uísque com gelo,

Seus olhos vermelhos e exaustos. Eram os anos Reagan

Quando vivíamos com o dedo n’O Botão e fazíamos esforço

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Para ver nossos inimigos como crianças. Meu pai passou estações inteiras

Curvado diante do olho do oráculo, ávido pelo que poderia encontrar.

Seu rosto se iluminava toda vez que alguém perguntava, e ele levantava os braços”

Durante sua passagem por São Paulo, onde participou do Festival Poesia no Centro, na Megafauna, Bravo! conversou com Tracy K. Smith sobre sua trajetória com a poesia, as escolhas temáticas que permeiam Vida em Marte, sua visão sobre o papel do poeta no presente e sua relação com a literatura brasileira.

Você poderia compartilhar um pouco da sua trajetória pessoal? Como você chegou à poesia e como sua relação com a literatura evoluiu ao longo do tempo?

Eu lia e escrevia poemas quando era criança, mas só na faculdade descobri que a poesia era uma forma de arte contemporânea. De repente, eu estava participando de leituras de poesia em que os próprios autores falavam sobre seus poemas e seus processos criativos, conhecendo outros jovens que também queriam ser poetas e fazendo oficinas de escrita criativa com poetas em atividade. Um novo mundo se abriu para mim — e isso mudou tudo. 

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Em vez de escrever versos esporadicamente, sem disciplina ou método de revisão, passei a ter uma prática criativa regular e uma comunidade de colegas com quem compartilhar e discutir meu trabalho. Deixei de me ver como alguém que um dia gostaria de ser escritora e assumi a vocação de Poeta no tempo presente. Essa mudança foi enorme para mim, psicologicamente, e me permitiu colocar a poesia no centro da minha vida.

Ler e escrever poemas me ensinou a prestar atenção ao mundo de maneiras mais cuidadosas e estranhas, além de me oferecer um vocabulário cada vez mais amplo para nomear e descrever minhas perguntas e sentimentos, esperanças e dúvidas.

Pouco depois de decidir me tornar poeta, no ano em que me formei e voltei para a Califórnia, o câncer da minha mãe saiu da remissão. Ficou claro para nós que ela estava chegando ao fim da vida. Diante do medo e da confusão, os poemas me ajudaram a antecipar e lidar com a presença do luto. Ler poesia sobre perda e dor foi um grande apoio após a morte da minha mãe — tanto que decidi me candidatar a programas de pós-graduação em poesia. Lá, encontrei uma comunidade de colegas (alguns dos quais são até hoje meus amigos e leitores mais próximos) e mentorias poderosas, que me mostraram como poderia ser a vida de uma poeta.

Hoje, ensino escrita criativa para estudantes universitários. Isso não só me permite ajudar a cultivar disciplina e devoção na prática de leitura e escrita dos meus alunos, como também se tornou a base do meu próprio crescimento contínuo como artista.

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(Tracy K Smith / Instagram/divulgação)
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“Vida em Marte” é seu primeiro livro publicado no Brasil. Como você enxerga a ressonância dessa obra, escrita há mais de uma década, com leitores contemporâneos, especialmente em um novo contexto cultural e linguístico como o brasileiro?

Life on Mars foi lançado no Brasil ao mesmo tempo que Uma Fome Tão Afiada, uma seleção de poemas que abrange toda a minha carreira, traduzida por Salgado Maranhão e Alexis Levitin. Neste outono, ao ler e conversar sobre os dois livros com o público brasileiro, percebi como as questões das quais surgiram esses poemas (alguns com mais de 20 anos) continuam presentes.

Escrevo sobre amor, perda, conflitos íntimos e públicos, história, família e o futuro. Alguns poemas que voltei a ler agora parecem ainda mais atuais, dado que padrões globais de guerra, opressão e desarmonia interpessoal persistem. Acho que isso sempre será verdade na poesia: os poemas continuam a nos dizer algo porque, mesmo quando lidam com eventos do presente, eles também nos ajudam a refletir sobre padrões e necessidades humanas muito mais antigos.

Eles nos lembram da profundidade de compaixão, sabedoria, amor e paciência que possuímos como seres humanos, e nos encorajam a usar essas capacidades para atravessar circunstâncias, por vezes, perigosas. Não estamos sozinhos. Não somos estranhos uns aos outros. Estamos, e sempre estivemos, interligados — mesmo que nem sempre percebamos isso. Acredito que essa seja uma das mensagens centrais de qualquer poema.

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(Relicário/divulgação)

Muitos críticos destacam sua habilidade de conectar imagens cósmicas com cenas íntimas e domésticas. O que te atrai nesse contraste entre a vastidão do espaço e a profundidade da memória pessoal?

Penso em uma poeta como Emily Dickinson, que também fazia isso, e aprendi muito com sua poética. Suas vozes muitas vezes testemunham o que parece ser a inevitabilidade da dor ou do medo humanos e, ainda assim, frequentemente conseguem romper essa sensação ao alcançar uma plataforma maior — como a da Eternidade ou da Imortalidade — de onde é possível compreender as lutas pessoais do presente.

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Acredito, aliás, que essa seja uma das fontes centrais de drama e confusão na nossa vida: vivemos cada instante em duas escalas radicalmente diferentes.

Outra forma de ver essa dualidade é pensar que operamos coletivamente (como parte de uma família, uma nação, uma espécie, etc.), mas ao mesmo tempo estamos inseridos em circunstâncias íntimas, particulares e privadas. Os poemas existem para nos ajudar a lidar com essa complexidade e com as contradições de viver simultaneamente em diferentes escalas, ou em mundos diferentes.

Quando estou imersa no peso e na dor da tristeza pessoal, do luto ou da incerteza, ampliar o olhar para as perspectivas da história, da política ou do lugar da humanidade no universo me oferece novas metáforas e novos corpos de conhecimento que podem servir como ferramentas ou modelos para dar sentido ao que estou vivendo. Isso me dá espaço para respirar, especular, inventar e imaginar formas de propósito e termos de responsabilidade que funcionem como consolo.

Seu pai é figura central no núcleo emocional e simbólico de Life on Mars. De que forma o luto moldou o tom e os temas do livro?

Meu pai era engenheiro, formado pelo Exército dos Estados Unidos. Um de seus trabalhos como civil, após deixar o serviço militar, foi contribuir com o projeto do Telescópio Espacial Hubble. Escrevi mais sobre sua trajetória em meu recente livro de memórias em prosa, To Free the Captives. Ele adoeceu e faleceu enquanto eu trabalhava no livro, e sua presença ali nasceu diretamente do processo de luto. Perder meu pai reabriu a dor da perda da minha mãe, ocorrida 14 anos antes. Eu precisava encontrar uma forma de lidar com essas emoções. Passei a refletir sobre o que acontece após a morte — para onde ele teria ido? O que estaria fazendo? Quis responder essas perguntas de maneira a atribuir algum sentido e consolo aos grandes sistemas da vida, da morte e do universo. Escrever sobre ele me aproximava de sua presença. Na época, não percebia assim, mas hoje acredito que o espírito do meu pai me ajudou ativamente a escrever Life on Mars.

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(Thibault Montamat/ Tanya e Zhenya Posternak/divulgação)

David Bowie e a ficção científica aparecem em seus poemas como combustível criativo e metáfora. Qual é o papel da cultura pop em sua imaginação poética?

A arte, da forma como a pratico, não busca escapar da realidade, mas cavar mais fundo nela — enfrentá-la, compreendê-la, encontrar sentidos. Acredito que os poemas devem poder testemunhar o que constitui a matéria da vida e transformar em algo produtivo aquilo que, à primeira vista, pode parecer banal. Como uma espécie de arquivista, a poesia recolhe percepções e evidências significativas de tudo.

Acredito, também, que a iluminação não surge quando tentamos nos livrar das nossas banalidades ou constrangimentos (e não estou incluindo Bowie nessa categoria, diga-se!). Ela nasce quando fazemos as pazes com esses aspectos, quando somos honestos sobre o que significam e revelam sobre quem somos. A transcendência, como a vejo, não está em fugir das lutas, dos conflitos, das tensões ou das antipatias, mas em abordá-los com coragem e reconhecer nossa humanidade neles. É assim que, talvez, consigamos ir além.

Você já afirmou que a arte está sempre voltada para o futuro. Como vê a relação entre poesia e imaginação na construção de um futuro coletivo?

A poesia nos ensina a escutar verdadeiramente a perspectiva do outro, a nos adaptar a lógicas novas e até contraditórias. Ela nos convida a encarar situações desconfortáveis e a escolher, dentro de um poema, caminhos diferentes dos que talvez seguiríamos na vida real. Podemos, ali, escutar, observar, refletir, fazer perguntas.

Isso nos exercita na paciência, na coragem, na honestidade e na criatividade. Também nos ajuda a suportar a incerteza, a não depender de certezas antigas ou preconceitos automáticos. Esses não são apenas recursos para leitores de literatura — são habilidades essenciais para a vida em sociedade. São elas que nos permitem imaginar e construir um futuro no qual os conflitos, a ganância e as hierarquias destrutivas sejam substituídos por novas formas de esperança e harmonia.

Sua poesia frequentemente explora temas como perda, amor e transcendência. Você acredita que a poesia oferece uma linguagem capaz de acessar aquilo que escapa à expressão convencional, que você chama de “mistério do universo”?

A poesia, em sua essência, é uma ferramenta para nos aproximar de nós mesmos e dos outros em toda a nossa complexidade, com coragem, abertura e honestidade. A linguagem convencional tende a simplificar, a negar ou a suavizar nossas contradições.

Suspeito que o mistério do universo esteja justamente em acolher essa complexidade, em reconhecer o que sempre nos foi negado sobre quem realmente somos. É nesse ponto que a linguagem do sagrado se torna necessária. Tenho me sentido cada vez mais atraída por noções de um grande mistério que nos revela como partes unificadas, essenciais umas às outras, na plenitude daquilo que somos.

Você foi Poetisa Laureada dos Estados Unidos e criou projetos como The Slowdown e American Journal. Quais são, para você, as responsabilidades e possibilidades de ser uma poeta pública?

Muitas vezes, ao conversar com pessoas que se sentiam distantes ou intimidadas pela poesia, eu dizia: “Vocês já têm tudo de que precisam para se conectar com um poema. Basta observar o que ele faz você sentir, lembrar, pensar ou se perguntar.” Durante dois anos, sentei com desconhecidos para ler poemas e conversar sinceramente sobre essas respostas. Rimos, choramos, silenciamos juntos. Hoje vejo que aquilo era uma prática profunda de comunidade.

Ser uma poeta pública é estar disposta a ter conversas honestas sobre o que as pessoas notam, sentem, lembram e se perguntam. É afirmar o valor de escutar e acolher profundamente a experiência dos outros.

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(Tracy K Smith / Instagram/reprodução)

A edição brasileira de Life on Mars foi traduzida por Stephanie Borges, também poeta. Como você vive a experiência de ser traduzida? Teve oportunidade de ler seus poemas em português ou ouvir reações de leitores brasileiros?

Adoro explorar os caminhos que meus poemas percorrem ao serem traduzidos. Ainda não falo português, mas falo espanhol, o que me permite captar parte das escolhas que Stephanie fez ao transpor meus versos para o Brasil. Um detalhe que me encantou foi como ela adaptou uma sigla inventada por mim no poema “Sci-Fi” para que fizesse sentido em português!

Ela encontrou um belo equilíbrio entre a forma e a fidelidade à interioridade dos poemas. É uma poeta brilhante, uma tradutora sensível, uma leitora atenta. Tive a sorte de conhecê-la e percebo sua inteligência vívida, humor delicado e linguagem afetiva impressos no trabalho que fez com meus textos — isso é um verdadeiro milagre da tradução.

Também comecei a conversar com leitores no Brasil e ouvi de jovens escritores e estudantes de literatura que as escolhas inesperadas nos meus poemas — como as referências à cultura pop — os encorajaram a correr riscos e experimentar mais em suas próprias criações. Sinto que minha comunidade literária já se ampliou, e sou profundamente grata por isso.

Você tem alguma ligação com a literatura ou a poesia brasileira? Há autores do Brasil que a influenciaram ou despertaram seu interesse?

A poeta brasileira contemporânea que venho lendo e ensinando há anos é Adélia Prado. Após participar do festival Poesia no Centro, em São Paulo, voltei para casa com livros e um caderno cheio de anotações de poetas que conheci e escutei (com a ajuda da tradução simultânea). Miriam Alves, Cuti, Oswaldo de Camargo, Edimilson de Almeida Pereira, Josoaldo Lima Rego, Carol Dall Farra e Luz Ribeiro são alguns dos nomes que me inspiraram profundamente.

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