A descoberta do racismo por Oswaldo de Camargo
Aclamada obra "A descoberta do frio", do poeta bragantino, ganha nova edição pela Companhia das Letras, abordando a negação e as consequências do racismo
Zé Antunes tinha uma missão essencial, convencer seus comparsas da existência de um mal, uma enfermidade que estava prestes a se propagar: o frio. Por mais que insistisse, não havia ninguém disposto a acreditar nessa ameaça. Havia uma advertência: o frio que já estava acometendo habitantes da cidade só atingia homens negros. Uma situação ainda mais propensa a ser desacreditada, ou, talvez, ignorada. A persistência de Zé logo se torna uma denúncia, que o mundo resiste a aceitar, de que vidas estariam em risco. E, de fato, a insensatez coletiva acaba dando margem para que mais pessoas – negras – fossem afetadas pelo frio.
O tal Zé, apesar de sua boa disposição e heroísmo, não passa de uma construção fictícia de um poeta engajado em evidenciar os males do racismo enraizado na sociedade, Oswaldo de Camargo. A obra em questão é A descoberta do frio, publicada pela primeira vez em 1978 e que agora ganha uma nova edição pela Companhia das Letras. A grande pergunta que permeia o livro é “quais mais argumentos faltam para convencer a população de uma doença que existe e dá sinais, a todo momento, de sua realidade?”
Oswaldo é considerado um dos primeiros autores a tratar das problemáticas sociais e urbanas do homem negro. Decidiu não branquear a sua literatura, como afirma Clóvis Moura no prefácio da nova publicação. “Oswaldo de Camargo, como negro, captou a realidade conflitante que existe (e o atinge). A partir daí, começou a desenvolver a sua criação literária”, descreve o sociólogo, que vai além e diz que Oswaldo foi um dos primeiros a estabelecer uma literatura negra, posto ao lado de autores clássicos como Lima Barreto e Castro Alves. É uma posição privilegiada, mas que há muito Oswaldo se mostrou merecedor.
Parece incrível, mas os seminários aqui da região de São Paulo não aceitavam meninos pretos. Escutei de um padre a frase: ‘Não aceitamos negros porque eles são muito violentos e sexuais’. Eu tinha apenas 12 anos.”
Oswaldo de Camargo
Beirando os 87 anos, Oswaldo leva uma vida mais tranquila atualmente. Curte os dias com os filhos, netos e bisnetos. Está radiante por ver uma de suas primeiras e grandes obras ser revisitada e alcançar novos públicos. Diariamente, ele se põe a escrever. Ultimamente, tem pensado sobre como é importante deixar suas memórias, para que parte de sua história não seja perdida. Ele alerta que isso já ocorreu com outros autores, como o seu amigo de longa data, o jornalista Aristides Barbosa. “Se eu não contar a minha vida, e falar sobre a riqueza literária que vivi nas décadas de 1960 e 1970, não haverá outra pessoa. Então, quando eu partir, ninguém poderá preencher esse espaço.”
Mas olhar a fundo para a própria narrativa não é algo simples. Embora todos os seus livros tenham um ou outro elemento de auto-ficção, em A descoberta do frio há, objetivamente, a denúncia do racismo encoberto por uma metáfora – que, por vezes, ganha concretude nas dificuldades da população vulnerabilizada, seja pelo frio, pela falta de moradia ou pela fome –, mas também atributos da realidade do autor, como os encontros de literatura, que aconteciam noites afora, com intelectuais ou leitores entusiastas, em associações, clubes ou bares. Algo que fazia parte da rotina do poeta. Escrever explicitamente sobre si, no entanto, é algo ligeiramente mais complexo e até doloroso.
A descoberta do frio
Oswaldo descobriu o frio cedo demais. Nascido em Bragança Paulista, no interior de São Paulo, seus pais apanhavam café numa fazenda localizada a 8 km do centro da cidade. “Todos eram analfabetos, uma característica do negro brasileiro na época, em cidades do interior.” Antes dos 10 anos, o círculo familiar foi atingido por algumas tragédias. O pai, Cantiliano de Camargo, caiu de um caminhão e se machucou gravemente. Nesse episódio, ele perdeu o braço. A mãe, Martinha da Conceição, com apenas 27 anos, morreu de tuberculose. Com o pai vivo, mas quase o tempo todo ausente, e também alcoólatra, Oswaldo e os dois irmãos foram encaminhados pela madrinha para uma instituição, um preventório, que abrigava órfãos de pais que morreram de tuberculose, com outras 100 crianças. “Naquele tempo era conhecida como a peste branca. Ela afetava preferencialmente pessoas pobres, e entre elas, o negro, o mulato e o pardo. Até hoje é assim.”
Apesar da tragédia, de certo modo foi a entrada nesse preventório que o tirou da pobreza absoluta. Foi lá que surgiu o primeiro sinal de sua vocação sacerdotal. E se deu seu primeiro contato com a cultura formal, quando conheceu o canto folclórico e religioso. “Até hoje sei muitas melodias que aprendi naquele tempo.” Os meninos só podiam ficar ali até completarem 11 anos. Depois disso, poderiam ser adotados ou seguir a vida por conta própria. Já as meninas ficavam até os 16, dali muitas iam trabalhar em casas de famílias, como babás ou domésticas.
Com 11 anos, ao se despedir da instituição, Oswaldo teve dificuldades para encontrar um seminário católico que o aceitasse. “Parece incrível, mas os seminários aqui da região de São Paulo não aceitavam meninos pretos. Escutei de um padre a frase: ‘Não aceitamos negros porque eles são muito violentos e sexuais’. Eu tinha apenas 12 anos.” Foi ali que começou a perceber o racismo no país.
“Naquele momento, nós fazíamos muitas reuniões literárias. Havia discussões muito intensas. O pano de fundo do livro é a vida literária que transcorreu na década de 70 em São Paulo. [A descoberta do frio] É a minha primeira tentativa de escrever um texto maior, uma novela, que alguns chamam de romance. Eu chamo de novela. Dou o nome de frio ao racismo e o preconceito.”
Oswaldo de Camargo
Quando conta seu passado, Oswaldo faz questão de repetir um nome diversas vezes. Diante das negativas dos seminários, o holandês Padre Simão Switzar o acolheu no Reino da Garotada Dom Bosco de Poá, em Mogi das Cruzes. Foi um dos santos que apareceu em sua vida, ele conta emocionado. Lá, ele se encantou pelas letras e viu se abrir um futuro na poesia. Aos 13, ingressou no Seminário Menor Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto (SP), equivalente a uma primeira etapa da formação necessária para se tornar padre. Mas essa seria sua primeira e última passagem pelo sacerdócio. Pois aos 18 não foi aceito em mais nenhum outro seminário. Desesperançoso, mudou-se para a capital paulista em busca de emprego. Com seu talento nas letras, conquistou o trabalho que o alçaria a escritor: revisor no jornal O Estado de S. Paulo. “Foi aí que minha vida começou a melhorar e eu pude ajudar a minha família.”
Na década de 1970, quando escreveu A descoberta do frio, fazia parte de um grupo literário, o Quilombhoje, que operava no bairro do Bixiga. Foi esse mesmo coletivo que assumiu a publicação dos Cadernos Negros. “Naquele momento, nós fazíamos muitas reuniões literárias. Havia discussões muito intensas. O pano de fundo do livro é a vida literária que transcorreu na década de 70 em São Paulo. [A descoberta do frio] É a minha primeira tentativa de escrever um texto maior, uma novela, que alguns chamam de romance. Eu chamo de novela. Dou o nome de frio ao racismo e o preconceito.”
Volta por cima
Apesar dos duros golpes sofridos pela instituição católica, Oswaldo diz que não se ressente. Tem uma visão crítica em relação à Igreja, mas o vínculo continua vivo; aos domingos, ele toca órgão na missa na paróquia de seu bairro, no Lauzane Paulista, onde vive há mais de 40 anos. Mas nem mesmo nesse contexto, nos bancos da igreja, a atenção é capaz de ignorar a desigualdade racial, quando circula o olhar e não vê outros negros.
Ele conta que apenas naquela semana não compareceria à missa, seu domingo estava comprometido para um encontro familiar. Seu filho faria uma homenagem ao pai. Afinal, não faltam motivos para celebrar seu Oswaldo, que já virou uma estátua em sua cidade natal, onde também dá nome a uma de suas praças: a Praça da Poesia Poeta Oswaldo de Camargo.
A Descoberta do Frio, de Oswaldo de Camargo
Companhia das Letras; 1ª edição (14 julho 2023)
136 páginas