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OLÁ,
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“Território do Degredo”, por Elisa Lucinda

Em sua nova coluna, a autora nos presenteia com uma poesia que demonstra sua relação íntima com as palavras que aceleram o coração

Por Elisa Lucinda
Atualizado em 4 nov 2024, 14h03 - Publicado em 4 nov 2024, 09h00
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 (Laís Brevilheri/Redação Bravo!)
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A poesia está se derramando em mim.
De mim.
Juro.
Não posso pensar em nada próximo à sua beira,
que caio lá.
Caio do muro do real
para esta espécie de fantasia,
terra em que
qualquer fato vira poesia.
Despenco aqui,
no colo desta transformer lírica que se apresenta à minha frente.
Há um muro de fina espessura basilar
que me leva a esta espécie de lar.
Meus pés são maiores do que o espaço exíguo
desta cerca de alvenaria
que me une e separa da poesia.
Meus pés são maiores do que a largura
desta meia parede externa, magra,
que divide portais e que,
no meu caso, é, em dimensão,
mais esguia do que a medida deles.

Caio numa animação.
Aceito o mergulho,
topo a festa, seus batuques,
quitutes, bauretes, pastéis,
biritas, caldos e canapés.
Me ofereço: Estou aqui.

Me chama, tombo gostoso,
me atrai, queda boa,
me leva, jardim da utopia,
me emoldura, aldeia bela,
me retém temporária e eterna
em teus canteiros.
De ti não sou nenhum estrangeiro
ou forasteira.
Nada.
Sou filha da casa,
Sou batuqueira.
Me leva com destreza
ao mar das Metáforas,
ó poesia amada,
delírio permitido e com sentido, meu quintal!
Estou assim.
Nem é que eu me ofereça,
veja bem.
Não.
É mais que isso:
Estou disponível. É diferente.
Entrei numa fase predominantemente
poética e inescapável,
faixa de inspiração movediça.
E o pior,
não estou querendo fazer mais nada
que não seja isso,
que não seja estar aqui, neste ócio sem preguiça,
e disposta a não me interessar por coisa
que não parta desta premissa.
Sou uma adolescente escrevendo escondido
versos para um amor proibido.
O coração disparado e de emoção perdido,
o pensamento só de olho
na boca morena do poema.
Escuto seus assobios.
Este amor inventa códigos,
provoca arrepios,
emite sons e sinais de fumaça
lá da calçada.
Se prepara,
faz serenatas inspiradas
na minha janela de luz rara,
canta músicas que são a minha cara.
Estou aceitando seus recados,
interpretando seus significados,
lendo seus oráculos,
espalhando suas notícias.
Isso pra mim é normal.
Amo sua inteligência natural, poesia,
por isso estou aqui.
Aquela gente lá da realidade não me encontra inteira em nada.
Pareço espalhada.
É que sou toda da poesia.
Nos encontramos nas quebradas,
na calada da noite falada.
Tem sempre uma de mim escrevendo clandestina
nos banheiros,
Vista noturna das
sombras, dos vultos do papel,
do teclado ou da caneta
sob as cortinas.
Teatro íntimo.
Fog. Leve névoa. Neblina.
Ninguém bate à porta sanitária.
Hora individual
que os outros respeitam.
Hora que não desafina.
Ai, ai.
Não quero que tenha,
e que bom que não tem
mesmo jeito.
Sou assim.
É confortável ser poeta.
Pareço uma qualidade de fotógrafo
que mesmo sem câmera,
clica o tempo inteiro
É assim.
Um tipo de invento.
Uma qualidade.
Um fruto do espírito
quase uma bondade.
É com vontade que
tudo aqui se faz,
e é sem querer ao mesmo tempo.
Tenho sentido mais ainda
uma duradoura inclinação para o verso,
uma tendência.
Uma espécie de repentista
vive esperta em minha alma.
Da poesia
tenho estado
sempre na iminência.
Com ela sonho acordada.
No caderno do pensamento
toda hora se inscreve
um fato bom,
uma ocorrência.
Marca rupestre no Egito de mim.
Atravesso rapidinho
o murinho que há entre o real
e o poema, e fico aqui.
Permaneço.
Sou-lhe habituê.
Conheço o esquema.

Aqui, no país do poema
muita gente me conhece
e todo mundo me respeita.
Mas não tem superioridade.
Valho tanto quanto uma letra.

Estou aqui entre
Dona interrogação,
Seu Parágrafo,
a amiguinha Vírgula,
meu querido Ponto,
a necessária Exclamação,
tão usada pelos indignados.
Aqui estou em casa.
Me dou bem com Figuras de Linguagem de todo o tipo:
Passo por Pleonasmos,
escapo do misterioso Paradoxo,
sem correr perigos,
e, confesso, fui algumas vezes feliz entre Metonímias.
Muitos sabem que já me envolvi
em francas vadiarias
com Hipérboles e Asteriscos.

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Nas asas poéticas caminha-se muito.
Voa- se em abundância sobre precipícios.
Porém, estou bem,
não há outros riscos.
Se aqui os abismos são escritos,
há também o riscado dos salvamentos.
Literatura é mistura de conteúdo com beleza,
por conta da riqueza do encantamento.
Isso faz efeito.
Poemas são remédios estéticos,
são sínteses, não sintéticos,
indicados para dores existenciais,
e para dores intrusivas a qualquer momento,
e sem aparente motivo.

Outra turba que frequento bem aqui
é a dos coletivos.
Ê turminha sofisticada!
E popular, porque,
apesar de ser palavra singular,
é união, é povo, se define plural.
Acabo de passar pelo Bando,
e , neste instante,
por um acaso adverbial,
quem encontro neste onírico pedaço de chão?
Elenco, Resma, Girândola, Alcatéia, Rebanho, Cordilheira,
Matilha, Enxame, Cardume, Legião e Constelação.
Todos apressados correndo da Corja
que vinha com a Vara atrás.
Sozinha, perdida dos demais,
vejo Panapaná.
Pra quem não sabe
ou não lembra
é bom aqui revelar:
Conjunto de fogos de artifícios é Girândola,
e o de borboletas, Panapaná…

Ando derramada de poesia.
Fico vendo a realidade só daqui,
sob tais lentes.
Vicia.
Daqui acrescenta-se à realidade uma camada tênue de ilusão.
Um confete inocente.
Não só pra enfeite.
Trata-se de uma nuvem de possibilidades
na qual a poesia transita
para trazer dali explicação.
É sob esta névoa que vejo o real.
Sob este filtro oracular de revelação.

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“Emília no país da gramática”,
livro do Monteiro Lobato
que eu mais amava e lia,
se estabeleceu em minha vida,
na singeleza do dia a dia,
na alegria de minha literatura e sua alquimia.
Agora, o território
parece que me mantém aqui.
Não me obriga a ficar,
mas me oferece fascinantes mimos, eu diria.
Quase covardia.

Me lança umas gotas certas,
em doses diárias, incertas
e diversas de versinhos mil,
e eu vou toda alegre
balançando o rabinho, viu?!
Adoro este babado.
Amo este bordado.
Estimo muito este verde gramado.
É minha Passárgada.
Escrever é como subir as dunas
e, tendo vindo do banho de rio,
descer para o mar.
Escrever é como estar em
Itaúnas na casa acesa de lá.
Daqui não saio
Daqui ninguém me tira.
Deixem-me aqui.
Deitada na rede feita de uma super Vírgula,
aqui do canto da página,
miro a vida a luzir…
Vejo daqui o muro fino da fronteira.
Para que eu aceite
que a vida não é só este sonho,
e esta deliciosa brincadeira,
o outro lado ainda ousa me seduzir,
insiste em me tentar
com velhas armadilhas.
Pretende,
ainda mais uma vez, me iludir.

Não adianta.
Não vou.
Vejo tudo muito bem daqui.
no mundo da poesia, na casa segura para achados e perdidos e onde nada se desperdiça.
Nada.
Nem dores , nem lágrimas.
Habito um chão
onde tudo se aproveita.
Agora moro aqui,
em definitivo e em segredo,
na aldeia do degredo.

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Xô, real, não volto mais aí.

Chega de cair.

Elisa Lucinda, alta Primavera/ 2024

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