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A história por trás do livro “A paixão segundo G.H.”, de Clarice Lispector

Introspectiva por excêlencia, a obra supera a classificação "psicológica" para questionar a própria narrativa e criar uma metafísica da linguagem

Por Redação Bravo!
22 abr 2024, 09h00

Clarice Lispector é caso único na literatura brasileira. Nascida em 1920, em Tchetchelnik, Ucrânia, e falecida em 1977, no Rio de Janeiro, é o exemplo maior do chamado romance existencial ou introspectivo. A sua bibliografia, acompanhada cronologicamente, prepara pouco a pouco o leitor para o tumultuoso romance que publicaria em 1964.

Seu primeiro livro, Perto do Coração Selvagem, escrito em 1943, foi recusado pela editora José Olympio, mas acabou sendo publicado no ano seguinte pela editora A Noite. O crítico Álvaro Lins considerou a obra “dentro do espírito e da técnica de Joyce e Virginia Woolf”. O reconhecimento literário se efetivou com A Maçã no Escuro (1961). Outros romances ainda teriam boa receptividade, como Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres (1969) e o célebre A Hora da Estrela (1977), cuja protagonista, a nordestina Macabéa, se tornaria personagem antológica.

Em A Paixão Segundo G. H., o enredo trata de uma mulher, identificada apenas pelas iniciais G. H., que — depois de demitir a empregada e tentar limpar o quarto desta — relata a perda da individualidade após esmagar uma barata na porta de um guarda-roupa.

No dia seguinte, ela narra a própria impotência de descrever o episódio. A história se organiza em capítulos de sequência sistemática — cada um começa com a mesma frase que serve de fechamento ao anterior. A interrupção, assim, é elemento de continuidade, numa representação simbólica do que é a experiência de G. H.

Assim como em outras obras de Clarice, em A Paixão Segundo G. H. os fluxos de consciência permeiam o livro. Espécie de romance-enigma, fornece o lugar de sujeito à linguagem, que constrói ao redor de si um labirinto cuja saída está na essência do ser: trata-se de um longo monólogo em primeira pessoa que se dá pelo que a professora Emília Amaral, autora de um estudo sobre o livro, chamou de “jorro turbilhante e ininterrupto de linguagem”.

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Um paradoxo, como muitos que permeiam a obra da escritora: as palavras são o que afasta o ser de sua essência, mas, ao mesmo tempo, constituem a chave para atingi-la. Segundo a professora da USP Nádia Gotlib, “é o exercício de linguagem como instrumento possível de se tocar no ponto que não é tocável, de se atingir o segredo: desenterrar o pior e o melhor de nossa condição humana, que já não é nem mais humana”. Assim, a literatura de Clarice assume uma estatura filosófica, aproximando-se, na visão de alguns, do existencialismo de Jean-Paul Sartre. Diz a epígrafe da obra, de Bernard Berenson: “Uma vida plena pode ser aquela que alcance uma identificação tão completa com o não-eu que não haja nenhum eu para morrer”.

Sem nome, G. H. identifica-se com todos os seres. Sua experiência, para o professor Benedito Nunes, é multívoca. Entre suas vias possíveis está a mística, aberta a múltiplos temas, como a linguagem e a arte, que se fundem na busca espiritual.

O momento maior de revelação se dá na cena mais famosa do romance. A barata, depois de perder sua casca, expele a secreção branca que aparece como sua última essência. G. H., então, a come. Estaria aí a renúncia da personagem ao próprio ser como linguagem, que, logo após o ato, se entrega ao silêncio.

Ao longo do livro, as razões da existência e a ânsia pela revelação geram as tensões e o “jorro de linguagem”

“De nascer até morrer é o que eu me chamo de humana, e nunca propriamente morrerei. Mas esta não é a eternidade, é a danação. Como é luxuoso este silêncio. É acumulado de séculos. É um silêncio de barata que olha.”

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“Pois o que realmente eu soube é que chegara o momento não só de ter entendido que eu não devia mais transcender, mas chegara o instante de realmente não transcender mais. E de ter já o que anteriormente eu pensava que devia ser para amanhã.”

“A desistência é uma revelação. Desisto, e terei sido a pessoa humana — e só no pior da minha condição que esta é assumida como meu destino.”

“Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém está segurando a minha mão. Oh, pelo menos no começo, só no começo. Logo que puder dispensá-la irei sozinha. Por enquanto preciso segurar esta tua mão — mesmo que não consiga inventar teu rosto e teus olhos e tua boca.”

“Um passo antes do clímax, um passo antes da revolução, um passo antes do que se chama amor. Um passo antes de minha vida — que, por uma espécie de forte ímã ao contrário, eu não transformava em vida; e também por uma vontade de ordem. Há um mau gosto na desordem de viver.”

“Quem vive totalmente está vivendo para os outros, quem vive a própria largueza está fazendo uma dádiva, mesmo que sua vida se passe dentro da incomunicabilidade de uma cela.”

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Bravo! especial: 100 livros essenciais da literatura brasileira (Bravo!/arquivo)
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