Simone de Beauvoir em dose dupla
"O sangue dos outros" e "A convidada", primeiros romances de Simone de Beauvoir, ganham novas edições com prefácios de Mirian Goldenberg e Mary Del Priore
A editora Nova Fronteira anunciou seu primeiro grande projeto de 2024: a publicação de novas edições de A convidada e O sangue dos outros, dois clássicos de Simone de Beauvoir e você confere um trecho das obras com exclusividade aqui na Bravo!.
Com traços autobiográficos, A convidada (1943) expõe as paixões, incertezas e frustrações da boemia francesa nos meses que antecederam a Segunda Guerra Mundial. Na trama, os intelectuais Pierre e Françoise são um casal livre, que desperta admiração e inveja naqueles que o rodeiam. “Em seu primeiro romance, Simone de Beauvoir revelou as mesmas ambiguidades, contradições e conflitos presentes em seus ensaios, memórias, cartas e romances posteriores. Quando li o livro pela primeira vez, em 1985, não havia ainda devorado toda a obra de Simone de Beauvoir. Estava lendo, apenas, o romance de estreia da escritora que mudaria a minha vida e influenciaria decisivamente minhas escolhas pessoais e profissionais. Ao relê-lo agora, quase quatro décadas depois, sei que ela não estava escrevendo sobre Françoise, Pierre e Xavière, mas sobre o trio que formou na vida real com Jean-Paul Sartre e Olga Kosakiewicz (…) A história se passa às vésperas da Segunda Guerra Mundial, quando os personagens se questionavam sobre o futuro e o significado das suas vidas. Os cenários são os bares, cafés, teatros e apartamentos onde escritores, atores, pintores e intelectuais franceses se encontravam. Simone de Beauvoir faz um mergulho profundo e angustiante na intensa vida intelectual e artística em Paris no início dos anos 1940 e nos conflitos de desejos e interesses do trio formado por Françoise, Pierre e Xavière. Mas, afinal, quem é Françoise? Uma mulher de 30 anos, escritora, obsessivamente apaixonada por Pierre, ou Simone de Beauvoir, que sempre sofreu por não se sentir a “única” para Jean-Paul Sartre?”, reflete a antropóloga Mirian Goldenberg.
Já em O Sangue dos Outros (1945), Simone de Beauvoir explora alguns dos temas que consagraram sua carreira, como indagações existencialistas, feministas e sua reflexão sobre a dicotomia do coletivo versus individual. “O contexto da guerra que induziu os intelectuais franceses a se dividirem entre a colaboração com o inimigo e a resistência ao ocupante — ou seja, a grande História coletiva —, e a realidade da mulher numa relação com o companheiro Jean-Paul Sartre — ou seja, a pequena História individual — consolidavam então os temas escolhidos pela ficcionista. Dessa conjunção nasceram dois romances: ‘A convidada’ e ‘O sangue dos outros’. Simone queria falar de ligações amorosas e do amor. Mais tarde, ela diria que, à época, descobrira “a existência dos outros”.Antes, apenas sua relação pessoal com amigos ou amantes era o que importava. E o que mais a preocupava era a busca da felicidade. A guerra explodiu o projeto pessoal. Seus valores e ideias ficaram de cabeça para baixo. O impacto emocional de mudanças tão radicais a levaram a se sentir, primeiro, em pedaços. A seguir, a ligar-se umbilicalmente aos outros indivíduos”, escreve Mary Del Priore, historiadora, escritora e professora brasileira.
Leia abaixo um trecho do romance “O Sangue dos Outros” (1945):
Empurrou a porta. Decidir. Os olhos estão cerrados, dos lábios escapa um estertor, o lençol se ergue e torna a cair; ergue-se demais; a vida se faz demasiadamente visível, demasiadamente ruidosa; ela está sofrendo, vai extinguir-se; ao alvorecer estará extinta. Por minha causa. Primeiro Jacques, e agora Hélène. Porque não a amei e porque a amei; porque ela chegou tão perto, porque ficou tão distante. Porque eu existo. Existo e ela, livre, solitária, eterna, ei-la submetida à minha existência, sem poder evitar o fato brutal de minha existência, jungida à sequência mecânica de seus momentos; e na extremidade da cadeia fatídica, ferida no próprio coração pelo aço incons- ciente, a dura presença de metal, minha presença, sua morte. Porque eu aí estava, opaco, inevitável, sem razão. Teria sido preciso não existir jamais. Primeiro Jacques, agora Hélène. Porque não a amei e porque a amei; porque ela chegou tão perto, porque ficou tão distante. Porque eu existo. Existo e ela, livre, solitária, eterna, ei-la submetida à minha existência, sem poder evitar o fato brutal de minha existência, jungida à sequência mecânica de seus momentos; e na extremidade da cadeia fatídica, ferida no próprio coração pelo aço inconsciente, a dura presença de metal, minha presença, sua morte. Porque eu aí estava, opaco, inevitável, sem razão. Teria sido preciso não existir jamais. Primeiro Jacques, agora Hélène.
Fora, era noite, a noite sem revérberos, sem estrelas, sem vozes. Uma patrulha passou há pouco. Agora, ninguém mais passa. As ruas estão desertas. Sentinelas estão a postos diante dos grandes hotéis, dos ministérios. Nada acontece. Mas aqui algo está acontecendo: ela se extingue. “Primeiro Jacques.” Ainda essas palavras cristalizadas. Contudo, no lento escoar da noite, através de outras palavras e das imagens passadas, o escândalo original desenrola sua história. Assumiu a figura particular de uma história, como se fora possível outra coisa, como se tudo não houvesse sido determinado desde o meu nascimento: a absoluta podridão oculta no âmago de todo destino humano. Conferida integralmente no instante em que nasci e integralmente presente no odor e na penumbra deste quarto de agonia, presente a cada minuto e na eternidade. Eu aqui estou hoje e por todo o sempre. Sempre estive aqui. O tempo, antes, não existia. Desde que o tempo começou, eu aqui estive, para sempre, para além da minha própria morte.
Ele aí estava, mas a princípio não o sabia. Vejo-o agora, debruçado à janela da galeria. Mas ele não sabia. Acreditava que somente o mundo se achava presente. Contemplava as vidraças encoscoradas de onde se exalava, por lufadas, um cheiro de tinta e de poeira, o cheiro do trabalho dos outros; o sol inundava os móveis de carvalho antigo enquanto a gente de baixo sufocava na luz baça das lâmpadas de abajures verdes; as máquinas monótonas roncavam durante toda a tarde. Fugia, por vezes. Ficava outras vezes muito tempo imóvel, deixando o remorso penetrar nele pelos olhos, pelas orelhas, pelas narinas. Junto ao solo, sob as vidraças sujas, estagnava o tédio, na extensa sala de paredes claras o remorso estirava em espirais adocicadas. Não sabia enxergar seu rosto fresco e comportado de menino burguês. A tapeçaria azul era macia em contato com a face; a cozinha cheia de reflexos acobreados exalava um aroma agradável de toucinho derretido e de caramelo; no salão, murmuravam vozes suaves como a seda. Mas o perfume das flores estivais, nas chamas crepitantes do inverno aconchegante, incansavelmente, rondava o remorso. Era deixado para trás, quando se partia para as férias; sem remorso, as estrelas desfilavam no céu, as maçãs estalavam sob os dentes, a água doce molhava os pés nus. Contudo, assim que se entrava no apartamento amortalhado sob as alvas capas dos móveis, assim que eram sacudidas as cortinas recheadas de naftalina, ele era reencontrado, paciente, intacto. As estações se sucediam, as paisagens mudavam, novas aventuras se desenrolavam nos livros de bordas douradas. Nada, entretanto, alterava o murmúrio uniforme das máquinas.
“O Sangue dos Outros”
Nova Fronteira, 4a. Edição
224 páginas
“A Convidada”
Nova Fronteira, 6a. Edição
424 páginas