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A rua é noiz

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h46 - Publicado em 6 out 2016, 08h25
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Por Filipe Luna

A noite de São Paulo ainda é a melhor e maior do Brasil.
Mas a cena, que era conhecida pelos clubes famosos que varavam a madrugada, agora não acontece apenas em espaços fechados e nem necessariamente à noite. A rua também é pista na capital paulista.

São muitos os passos que percorrem as ruas do centro de São Paulo. São decididos, andam pra frente, ou se tropeçam, se batem, se esbarram, apressados, ao som do compasso agitado do ritmo do trabalho na cidade. São movimentos que carregam a potência da maior economia do Brasil, que avançam decididos atravessando calçadas, movimentando o comércio, entrando e saindo dos túneis do Metrô. Sem melodia ou harmonia, apenas ritmo, eles batucam as calçadas de segunda a sexta incessantemente. Livres das correntes do horário comercial, os passos se abrem, mais anárquicos e apontam pra todas as direções. Pra frente, pra trás, pro lado e pro outro, comandados por quadris que se movem ao som da música, que agora ocupa aquela paisagem antes dominada pelo barulho ensurdecedor do trabalho. Passo a passo, o centro de São Paulo foi ocupado, transformando o asfalto, o concreto, o mosaico das calçadas, na maior e melhor pista de dança da cidade.

Para Facundo Guerra, dono de vários bares e casas noturnas de São Paulo, o primeiro passo aconteceu na Green Sunset do Museu da Imagem e do Som, há 5 anos. “Foi essa festa que deu o primeiro impulso pra mostrar que as pessoas podem dançar e se divertir durante o dia. Não precisa ser só à noite.” Para Karen Cunha, coordenadora de programação da Secretária Municipal de Cultura, um passo importante foi “uma das primeiras vezes em que a festa Voodoohop tocou na rua no Mês da Cultura Independente, em 2010, na sacada da Trackers”. Já Pita Uchôa, produtor e DJ da festa Calefação Tropicaos, que era um dos membros da VoodooHop quando esta dava seus primeiros passos, diz que “não tinha essa coisa pensada: vamos ocupar o espaço público. Era muito por zoeira mesmo e até pra debochar: não tem autorização então vamos colocar o som no Minhocão e ver até onde vai.” Fato é que cada um desses passos traçou a retomada de um hábito muito brasileiro na cidade de São Paulo: fazer festa em espaços públicos.

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Vem pra rua

São muitos os exemplos da cultura brasileira de festejar na rua e quase todas de origem religiosa: quermesses, festas juninas e o inescapável carnaval. Mas em São Paulo até a mais brasileira das festas estava sufocada pela dor e delícia de ser uma das maiores metrópoles do mundo. Confinado no sambódromo do Anhembi com o desfile das escolas de samba, o carnaval de São Paulo só botou o bloco na rua pra valer em 2015, quando registrou 172 agremiações cadastradas. Neste ano, o número mais que dobrou: 355 blocos desfilaram pelas ruas. Esse transbordo foi eco direto do crescimento da Virada Cultural, festa que, desde 2005, ocupa o centro de São Paulo por 24 horas com atrações culturais a cada esquina. São eventos que fizeram parte de uma mudança de percepção do espaço público para quem vive na cidade. “Num contexto mais amplo, o paulistano perdeu o medo da rua”, afirma Facundo. “Porque a gente cresceu, eu falo pelo menos da minha geração, já que tenho 40 anos, achando que a rua era perigosa. Minha mãe ficava mais feliz se eu ficasse no Atari em casa do que jogando bola”.Para essa geração, da qual também faço parte, a casa noturna sempre foi o lugar onde a festa era possível. É importante pensar que a festa tem uma característica fundamental: ela precisa ser subversiva. As regras que se aplicam na vida em comunidade são diferentes do que se permite fazer no clube. Não há olhares reprovadores para quem está num estado alterado de consciência, para quem dança seus males na pista ou para quem tem quentes demonstrações de afeto em público. Quando comecei junto com meus sócios há 8 anos a festa Talco Bells, nossa ideia de subversão era tocar música soul em clubes em que o contexto habitual era música eletrônica, pop, rock and roll ou samba rock. Um par de anos depois de começarmos, esse modelo começaria a se tornar anacrônico: até os clubes têm uma estrutura com códigos de comportamento, e o público começava a sentir necessidade de subvertê-la.“Quem gosta de ir em festas de rua acha clube muito cafona”, diz David Carneiro, 26 anos, organizador da festa Primavera, eu te amo. “Pagar pra ir na balada, pagar pra ficar em fila é muito anos 2000”. Não são poucos os que compartilham da opinião de David: a última edição na rua da sua festa levou 10 mil pessoas à praça ao lado do Teatro Municipal de São Paulo, a Praça Ramos de Azevedo. “O público que vai pra rua está procurando um ambiente em que tenha um maior arbítrio”, explica Akin Deckard, DJ e organizador da festa Metanol FM. “Ele tem a liberdade de beber o que tá ali à venda, de levar de casa. As pessoas vão pelo conteúdo, em grande parte, e também pelo movimento social que é o evento de rua. Por você poder estar em contato com outras pessoas e poder ter contato com o que você gosta, culturalmente falando, num ambiente de expressão individual mais aberto”.

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Diferente dos clubes, todos os passos que compõem a coreografia de uma festa de rua são mais complexos de definir. Tem o público que veio das baladas, mas tem ambulantes, moradores de rua, pedintes, transeuntes. Pessoas que não conhecem o código de comportamento dos clubes ou simplesmente não se importam. “O que mais gosto é o impoderável. É completamente aleatório”, explica Millos Kaiser, 29 anos, metade da dupla Selvagem, que por muito tempo realizou sua festa na Praça Dom José Gaspar, no centro de São Paulo. “Já rolou uma cerimônia de casamento durante a festa. Performances bizarras, mendigos dançando com patricinhas — às vezes pegando patricinhas. É um mix muito grande. São encontros entre seres humanos que normalmente não acontecem porque as pessoas não se permitem muito. Numa festa de graça essas coisas acontecem. É incontrolável, pro bem e pro mal. [A Selvagem] Ficou tão grande uma época, com tanta gente, que quase implodiu. Não dava pra ir no banheiro, não dava pra comprar bebida, era só uma grande massa. Mas era muito bom. Tenho saudades”.

A praça é nossa

Passos que percorrem caminhos opostos de segunda à sexta, mas que se cruzam na pista de dança aos sábados e domingos. Esses encontros têm transformado a experiência de viver na cidade a partir do centro. A ocupação da rua e dos espaços públicos também se estendeu além das festas, principalmente em manifestações políticas. “A gente costuma dizer que faz festa na rua porque é nossa maneira de fazer política”, explica Akin. “O que a gente faz também contribui positivamente para a ideia do uso do espaço público de maneira legítima para qualquer coisa que você queira como cidadão. Reinvidicar seus direitos políticos, discutir a questão de gêneros e classes, pontuar ideias, festejar, celebrar”.

A Prefeitura de São Paulo, através da Secretaria Municipal de Cultura tem incentivado essa mudança de paradigma. Em 2014, aconteceu a primeira edição do SP na Rua, evento que convidou 22 coletivos para tomarem as ruas do centro de São Paulo com seus sistemas de som por uma noite. Já aconteceram outras duas edições do evento — a última teve participação de 36 coletivos. A próxima está marcada para 10 de setembro (antes da publicação, mas depois do fechamento desta reportagem). O SP na Rua é um reflexo do apreço que a atual gestão municipal tem pelas festas em espaço público. “Tem a cara de São Paulo”, diz Karen Cunha. “Gostam muito de colocar na nossa cabeça essa ideia de que o paulistano só quer ficar trancado em casa, só gosta de shopping e só quer saber de trabalhar. Logo que a gente voltou com o carnaval de rua já se provou que as pessoas queriam muito sair pra rua. Se os coletivos querem ocupar a rua, desde que isso não seja um problema com a vizinhança do local, não consigo entender porque o poder público deve ser contra. A secretaria de cultura quer mais que a cultura esteja em toda parte.”

Essa negociação com a vizinhança local é mais simples quando as festas permanecem na região central. Quando se espalham para o centro expandido e suas zonas residenciais, a situação se torna mais delicada. Pita Uchôa, da Calefação Tropicaos, mora em Perdizes e tem dificuldades para ocupar o bairro. “Aqui nessa região existe uma cultura das pessoas tratarem as praças como uma extensão das casas delas, mas no mau sentido”, explica. “De querer que aquilo ali seja deles, então pensam: quem são essas pessoas aqui que não conheço e que estão praticamente dentro da minha casa? Mas não é sua casa, é uma praça pública em que todo mundo pode transitar. A gente já foi impedido de fazer um piquenique há 5 anos só porque eram pessoas, sei lá, com roupas estranhas, com aparências estranhas. Chamaram a polícia e, mesmo sem argumento, reprimiram e tiraram a gente de lá. O principal passa mesmo pelo comportamento das pessoas. Entender até onde vai seu direito e o direito do outro. Inclusive da parte de quem faz”. Pita explica que a experiência com os moradores do Minhocão o fez repensar fazer festas naquele local. Num espaço onde os carros estão tão próximos que parecem dentro dos apartamentos, o domingo era o único dia de sossego do barulho para quem habita a região.

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Segue o fluxo

Se nos bairros de classe média há um descompasso entre quem quer festa e quem quer descanso, na periferia o passinho segue outro ritmo. “Eu vim de Perus e sempre achei caro pra caramba vir pra alguma balada aqui no centro de São Paulo”, conta David Carneiro, da festa Primavera, eu te amo. “Quando você vem da periferia e vai se inserir em outro círculo social, você tem medo de não ser aceito”. Essa é uma das explicações para a distância entre a cultura que se vive na periferia e o que acontece no centro. O jornalista carioca Raull Santiago, do Coletivo Papo Reto, que publica notícias sobre os morros do Rio de Janeiro, esteve na periferia de São Paulo para fazer um documentário sobre o Passinho do Romano (dança do funk criada no bairro Jardim Romano) e conheceu de perto o Fluxo — festas de funk que acontecem na rua e são divulgadas pelas redes sociais. “Diferente de qualquer festa de rua, o funk é uma parada que acontece na favela em que mistura gente que tem condição de sair para outro lugar, mas opta por curtir aquele espaço com uma galera que não tem uma grana pra sair e não precisa sair do seu território para poder curtir”, explica Raull. “É um lugar dentro da sua área onde você vai gastar menos. A bebida, o lanche vai ser mais barato, você não gasta com condução e nem tem que se preocupar se vai ter algum problema na entrada da favela quando voltar, alguma dura, uma revista, passar por uma situação vexatória”.

Raull usa sempre uma expressão quando fala da periferia: “o nós por nós”. O Fluxo é uma festa realizada para um público local que além de ser um encontro social tem impacto econômico. Um deles, e mais evidente, é ser uma plataforma para divulgação das músicas que são gravadas por MCs da periferia. O outro é gerar uma oportunidade econômica para comerciantes do local. “A partir do momento que você tem um baile, um cara que tá sem emprego bota um isopor e faz uma renda extra”, explica Raull. “No dia do fluxo, o salão de cabeleireiro tem uma clientela maior, uma loja de roupa vende um pouco a mais. Acaba gerando um movimento em torno do baile e isso que torna essa força do baile dentro da favela”.

Fervo pro bono

“Grana nunca vai rolar”, Pita Uchôa é categórico. “Quem fizer festa de rua esperando grana ou não vai fazer ou vai fazer de uma forma bem comercial que já foge do propósito do negócio. Aí é melhor ir fazer num clube”. A curva de popularidade das festas de rua começou sua ascendência em 2010 e teve o auge entre 2013 e 2015. Este ano, a frequência dos eventos sofreu uma queda, eles estão menos cheios. Seria uma crise? Na verdade, embora ocupar o espaço público seja um desejo de quem faz e de quem vai, esse formato tem o mesmo problema fundamental de qualquer empreendimento: como os organizadores podem fazer dinheiro com o evento para cobrir os custos? “O ambiente do espaço público não dá pra capitalizar”, afirma Akin Deckard, da Metanol. “Mas a gente nem tem a intenção de fazer dinheiro com festa de rua. Isso faz muito mais parte de nosso DNA ideológico e artístico do que do nosso DNA financeiro e capitalista. Quando eu toco na rua, consigo dialogar com um público muito maior, mais diversificado, menos elitista e muito mais cabeça aberta do que o público de clubes em geral”.

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A Metanol FM usa um modelo replicado por muitos coletivos e realiza festas em outros espaços cobrando entrada. O coletivo ainda mantém um espaço, o S/A, que também abriga seus eventos. Sair da rua não significa um passo pra trás e voltar ao mesmo formato antigo dos clubes. A maioria das festas de rua buscou espaços alternativos para sediar suas edições pagas. Locais como a Casa da Luz, Casa das Caldeiras, Nos Trilhos, galpões abandonados, casas desocupadas. “Acho que esse foi o passo que todo mundo que tava na rua deu”, reflete Millos Kaiser, da Selvagem. “Achar esses lugares meio sem lei, fora do circuito de clubes, que não tem comanda, não tem segurança, nada disso. Acho que é justamente com esse objetivo de preservar essa aura que você tem na rua”.

“Percebi que esse era um processo irreversível”, avalia Facundo Guerra, que trabalha diretamente com o negócio dos clubes, “até porque essa estrutura do clube, da boate, já existe desde a década de 60, 70, e está obsoleta. A rua é uma resposta também a própria obsolescência do clube. Agora a gente tem um projeto que vai tentar atualizar a estrutura do clube pra não concorrer com a rua”. Facundo pretende resgatar o espírito dos clubes que tinham sócios e planeja começar o novo empreendimento captando os associados através de crowdfunding. Os apoiadores terão direito a frequentar o espaço pagando uma mensalidade. A diferença é que a estrutura acústica é desenhada por José Nepomuceno, da empresa Acústica e Sônica, que fez o projeto da Sala São Paulo. O resultado é um sistema de som de altíssima fidelidade para reproduzir áudio sem compressão, em formato digital ou em vinil. Além disso, Facundo mantém um olho na rua: “Estamos desenvolvendo um app pra estimular a música na rua chamado Gig. É um aplicativo que permite que as pessoas doem dinheiro diretamente pro artista. Já conseguimos juntar 800 mil reais de empresas.”
São mais de 20 milhões de pés nesta cidade e cada um tem seu passo. Se o trabalho dava o tom que guiava sempre o compasso da rua para uma mesma direção, o ritmo mecanizado que sai dos alto falantes injetou uma saudável dose de anarquia no free jazz que temos em São Paulo.
A noite da cidade ainda é a melhor do país e, se não tem um clube que seja seu símbolo, como Berlim tem o Berghain, ou Londres tem Fabric e Ministry of Sound, São Paulo tem mais: tem noite, tem dia, tem rua, tem balada, tem ocupação. Cada um no seu passo: pra um lado, pro outro, pra frente, pra trás.

Este texto faz parte do episódio “São Paulo Autofágica” da revista Bravo!. Clique aqui para acessar o episódio.

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