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Por um cinema indígena

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h35 - Publicado em 26 Maio 2017, 10h03
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O cineasta Vincent Carelli fala sobre Martírio, filme sobre o massacre do indios guarani kaiowá no Mato Grosso do Sul. A produção faz parte do projeto Vídeo na Aldeias, que já conta com 16 documentários

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Foto: Divulgação

Por Beatriz Goulart

Cineasta e indigenista, Vincent Carelli denuncia, no documentário Martírio, a chacina que vem ocorrido no Mato Grosso do Sul, na luta dos índios pela retomada de seus territórios. Ovacionado nas salas de cinema onde passou, o filme soma mais de 7 mil espectadores nas 21 cidades do país — números bem razoáveis para um documentário e o tema.

Martírio, contudo, não é um caso isolado. Carelli criou em 1986 o Vídeo nas Aldeias, projeto que apoia as lutas dos povos indígenas para fortalecer suas identidades e seus patrimônios territoriais e culturais por meio de recursos audiovisuais. Desde então, produziu uma série de 16 documentários, entre eles A Arca dos Zo’é (1993), premiado em diversos festivais, entre eles o 16o Tokyo Video Festival e o Cinéma du Réel. Corumbiara foi vencedor do 37o Festival de Gramado, sobre o massacre de índios isolados em Rondônia.

A seguir, trechos da entrevista com o diretor.

Como e quando surgiu a premência de retornar aos guarani kaiowá para contar a história do genocídio?

No fim da década de 80 eu pensava em fazer um filme sobre o pensamento religioso dos guarani, que é algo quase budista, pois a terra é de todos, o dono é Nhanderú etê — Deus Verdadeiro — , de forma que ela não pode ser apropriada. Naquela época eles já percebiam que estavam ficando sem nada, e já havia a necessidade de lutar pela terra. E como a tradução da língua era muito difícil, e estávamos sem recursos, eu ainda finalizava o documentário Corumbiara, acabei adiando o projeto.

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No fim de 2011, com a notícia do assassinato do Cacique Nízio, em Ponta Porã, e o desaparecimento de seu corpo, decidi regressar à região. Nossa pequena equipe foi fazer a pesquisa histórica e entender qual seria o filme a ser feito que pudesse jogar luz na origem de tudo e ajudar na discussão do impasse dramático que parece não ter solução. Senti que precisava produzir um entendimento claro desse processo de expropriação, era importante legitimar a demanda, pois os índios não podem ser tratados como um bando de loucos que resolveram invadir propriedades, numa leitura rasa que o jornalismo da mídia hegemônica faz, tratando-os como terroristas.

Nessa triangulação dos índios com os fazendeiros e o governo, em que muitas vezes a segunda parte se confunde com a terceira, grande parte da sociedade não tem alcance do que de fato ocorre na região. Então, como foi o enfrentamento? E a que você credita tanta capacidade de resistência cultural dessa nação?

Sim, é cultural, são 500 anos de contato, e os guarani mantiveram sua língua, seu modo de viver, sua religião, que na verdade é a grande inspiração para essa resistência. Esse movimento no fim dos anos 70 pelos rezadores, que — numa época em que se sentiram mais acuados, com superpopulação em reduzidas reservas e altas taxas de suicídio — conclamaram o movimento de retorno, com rezas para se proteger, valendo-se de um direito que eles consideram que é divino, do criador. Creio que aí está a força deles. Há uma convicção de pertencimento a esses lugares sagrados, inclusive reclamando a sua responsabilidade de zelar por eles, tanto que em qualquer terra que lhes é devolvida, volta a crescer capoeira, eles recompõem a mata.

Então, eles protegem a mata, protegem o Brasil …

Eu tenho dito nessas entrevistas que na verdade os índios não ameaçam em nada o agronegócio. Isso é uma falácia. Numa região devastada como aquela, de agricultura mecanizada, com muita química, os índios vão reflorestar quando estiverem de posse da terra. Eu vejo que os índios querem recuperar a mata com toda a sua biodiversidade.

De quem seria a responsabilidade de tantos desmandos?

A responsabilidade em segunda instância é do Estado, que titulou essas áreas. É uma questão do Direito. Então cabe ao Estado, não à Justiça, reconhecer o seu erro e reverter os processos judiciais que estão despejando os índios, perseguindo esse índios.

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https://vimeo.com/219114347

Uma questão tocante é a invisibilidade dos índios. A que você atribui essa presença fantasmática na nossa cultura?

Está em curso uma disputa por território, por recursos naturais, o processo colonial não acabou, a ocupação do país ainda não acabou. Ademais, os índios são julgados pela aparência e com a referência do mito do bom selvagem, o que é um grande equívoco. No governo, ninguém consegue dialogar realmente com os índios. Por um lado não há a menor vontade real de resolver o problema por parte dos fazendeiros, e a discussão em torno de valores das terras vai pra casa dos bilhões. Temos visto que nunca os índios são realmente interlocutores nessa negociação. Mas existe a questão do Direito e da Constituição, que é clara a respeito disso.

Uma vez o cineasta Andrea Tonacci nos contou que estava filmando em uma aldeia, fazendo imagens de um índio, e ao mostrá-las a ele perguntou o que via. Ele respondeu: ‘Nada’. Como tem sido a sua experiência nas aldeias, com as diversas etnias?

O exercício da produção cinematográfica indígena, através do projeto Vídeo nas Aldeias, é a revelação de um cinema indígena para o Brasil. De um novo olhar intimista, sobre o cotidiano da realidade contemporânea dos povos, não aquela mitológica, imaginária do nosso mito de criação, de origem, mas uma ideia concreta: o entendimento do que seja um biculturalismo que todos nós vivemos, tanto eles quanto nós, pois ao viver na Europa, nos Estados Unidos, na Ásia, a gente tem de aprender os códigos de cada cultura. Os índios são como nós, mas isso não os faz menos índios. Enfim, essa é a nossa utopia: povoar o imaginário brasileiro com uma nova visão do índio.

Como foi o processo de edição do Martírio? Como tem sido a recepção do público?

Foi um grande desafio, e estou muito impressionado com o resultado e a emoção das pessoas. Fazer Martírio se tornou uma compulsão necessária para mim, que tenho a vida atada à dos povos Guarani Kaiowá, além de um compromisso moral, ético, político, e sobretudo afetivo. O filme foi feito ao longo de três anos, num processo laborioso, a coleta de material da pesquisa histórica foi bastante demorada, mas contamos sobretudo com a Tita, montadora do filme, com o Ernesto de Carvalho, antropólogo e fotógrafo e uma equipe técnica voluntária. Ele vem sendo exibido em vários festivais na Europa e aqui no Brasil ganhamos muitos prêmios do júri popular, o prêmio de público, o que é muito gratificante.

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Martírio, de Vincent Carelli. Sessões previstas: em Belo Horizonte, dias 27, no Cine Humberto Mauro, e 28, no Sesc Palladium. No Rio de Janeiro, dia 30, na Estação Net Botafogo. Em São Paulo, em junho, estão programadas exibições no Cine Matilha e Espaço Itaú Augusta. Além disso, seguirea circulando em mostras e festivais como Ecofalante e CineOP.

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