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Arte musical de Hermeto Pascoal, o bruxo dos sons, no Sesc Bom Retiro

O multi-instrumentista vive um momento especial, com o lançamento de um novo álbum, uma biografia e uma exposição em São Paulo

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 12 jun 2024, 10h56 - Publicado em 5 jun 2024, 09h01
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O músico Hermeto Pascoal (Pedro Dimitrow/divulgação)
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É uma quinta-feira, um dos últimos dias de maio. São Paulo está mais fria do que de costume. Apesar de ser outono, o frio tem custado a chegar. O dia começa cedo no Sesc Bom Retiro, na região central da cidade. Uma sala de oficinas foi improvisada para uma reunião com a imprensa. Alguns poucos jornalistas de cultura aguardam ansiosos por uma presença especial. Então ele entra, um senhor barbudo que ostenta 87 anos com graça; de cabelos fartos e brancos, usando seu habitual chapéu. É Hermeto Pascoal.

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Chapéus de Hermeto, em exposição no Sesc Bom Retiro (Sesc Bom Retiro/divulgação)

Ele entra sério, acompanhado de sua equipe, e para por alguns instantes em frente aos jornalistas, que o aplaudem. Então faz um anúncio: “Hoje fui contratado pelo Palmeiras F.C. como treinador.” O tom é sisudo, mas, claro, trata-se de uma brincadeira. Embora ninguém mais duvide do talento e da capacidade de Hermeto em se aventurar e dominar qualquer área de interesse, sua paixão primordial continua sendo a música. Hermeto é daquelas figuras que temos facilidade de gostar, mesmo quando não se entende sua música na totalidade. Aquela reunião tem pelo menos três bons motivos para acontecer.

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(Gabriel Quintão/divulgação)

O primeiro motivo é a biografia de Hermeto, Quebra Tudo – A Arte Livre de Hermeto Pascoal, lançada em meados de maio pelo jornalista Vitor Nuzzi, o mesmo autor de Geraldo Vandré – Uma Canção Interrompida, obra finalista do Prêmio Jabuti em 2015. O segundo é o novo álbum de Hermeto, “Pra Você, Ilza”, lançado exatamente naquele 28 de maio. Ilza foi ninguém menos que a esposa de Hermeto, com quem ele dividiu a vida por 46 anos e teve seis filhos. O disco de inéditas é uma carta de amor, composta por 13 canções escritas entre 1999 e 2000, todas dedicadas a Ilza, falecida há 24 anos. Os arranjos do disco instrumental, no entanto, foram criados para o lançamento, em estúdio. “O nosso amor, o nosso espírito, a nossa alma continua junto”, afirma o instrumentista. A dedicação é capaz, convenhamos, de inspirar até mesmo os mais desacreditados no amor.

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(Sesc Bom Retiro/divulgação)
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Maio parece ter um significado cósmico para o artista. Em 2023, nesse mesmo mês, ele foi condecorado doutor honorário da Juilliard School, de Nova York (EUA), a mais prestigiada universidade de música e dança do mundo. Hermeto recebeu o título das mãos do trompetista Wynton Marsalis.

Mas ali no Sesc, a principal razão é apresentar outra vocação do gênio, que se desdobra de seu amor pela música: a arte. Pela primeira vez em São Paulo, Hermeto ganha uma exposição de arte individual, Ars Sonora – Hermeto Pascoal, que reúne desenhos, pinturas, objetos, proto-instrumentos musicais e até vídeo-performances, como é o caso da obra “Brincando de Corpo e Alma”, de 2012, em que o artista produz sons no próprio corpo. O que todas essas peças têm em comum? A música, que parece escorrer do compositor de forma incontida, como água. “Temos que esconder cardápios, papéis, porque senão ele sai desenhando partituras em tudo”, brinca Adolfo Montejo Navas, curador da exposição e, mais importante, amigo de Hermeto.

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nstrumentos criados por Hermeto e que fazem parte da exposição (Sesc Bom Retiro/divulgação)

Em 2019, uma versão compacta desta exposição ocupou espaço da 14ª Bienal de Curitiba. Nessas peças do cotidiano que ocupam a mostra, em quase todas elas há registros de partituras. Há um pouco de tudo ali: panos de prato, chaleiras, caixas de presente, guardanapos, brinquedos, roupas, etc. Poderia ser apenas uma transposição da sua atividade diária, fluida, de composição da folha para os objetos. Mas vai além disso; essas criações, para Hermeto, estão profundamente conectadas ao olhar e dão um novo sentido para o conceito de “música visual”. “Por não enxergar como os demais enxergavam, eu não usava óculos, então eu usava o meu sentir. O sentir se adiantava na minha mente. E o que é o sentir? Você vê uma coisa mais forte que o real. Você está vendo com a sua alma. E eu conseguia ver coisas que as pessoas não viam”, questiona Hermeto. “Sempre disse: ‘Sou 100% sentir, sou 100% intuitivo.’ É por isso que chamo a minha música de ‘música universal.'”

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Partituras de música visual (Sesc Bom Retiro/divulgação)

Sua arte, pelo que se vê ali, traz a mesma convicção que o seu fazer musical; é possível fazer música a partir de qualquer coisa. Mas, além disso, enxerga-se música em tudo.

Já não se sabe mais ao certo quantas partituras ele criou, mas já passou ao longe da casa dos milhares. Na peça exposta “Obras-Arquivo” temos uma pequena amostra dessa imensidão. Nela, está o “Calendário do Som”, um livro de mais de 400 páginas com registros das músicas compostas diariamente, ao longo de um ano, entre 1996 e 1997. A cereja do bolo é o glossário “Hermetologia”, coleção de verbetes e reflexões de Hermeto sobre música, arte e vida.

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(Sesc Bom Retiro/divulgação)
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Um dos momentos mais especiais do encontro se deu quando Hermeto se pôs a falar sobre intuição. Ele repete em seu discurso que não gosta da antecipação. No sentido de que se sente mais à vontade com o improviso, com a despretensão e com o acaso. Essa, talvez, seja uma boa chave para compreender a raiz de sua música. “A minha criação é minha respiração. Eu fico esperando o que eu não sei, mas sinto aquela certeza de que vai vir na minha música. Acho que tudo é música. Não precisa tocar um instrumento convencional para ser considerado músico. Esta na maneira de ver.”

“A minha criação é minha respiração. Eu fico esperando o que eu não sei, mas sinto aquela certeza de que vai vir na minha música. Acho que tudo é música. Não precisa tocar um instrumento convencional para ser considerado músico. Esta na maneira de ver”

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(Gabriel Quintão/divulgação)

Conhecido como “bruxo dos sons”, Hermeto nasceu em 1936, num povoado de Olho d’Água, em Arapiraca, Alagoas. As primeiras músicas que descobriu foram os sons do mato, dos pássaros, da natureza em movimento. Aprendeu a música tradicional com menos de 10 anos. Começou sua carreira artística em meados dos anos 1950, ainda menino, com o trio “O Mundo Pegando Fogo”, tocando nas rádios Tamandaré e Jornal do Commercio. Uma condição fez com que Hermeto escapasse dos trabalhos da roça: o albinismo. Mais tarde, na vida adulta, quando já havia encontrado Ilza, aprendeu a tocar piano e explorou instrumentos de sopro. “Eu pegava as coisas no mato, gostava de pegar o talo da mamona, pegava uma faquinha, cortava o talinho e fazia uma flautinha. Não tinha instrumentos na rocinha. Até os 15 anos, eu morava bem no mato. Então eu saía tocando para impressionar.”

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(Sesc Bom Retiro/divulgação)

Quando criança, lá no meio do mato, foi exercitando sua sensibilidade pela sua forma particular de sentir. “Minha intuição é como o vento. Você não sabe a quantidade de vento que vem. Desde muito novinho, sempre gostei de me deitar no chão e olhar para as estrelas. Eu escutava os caçadores, os mais velhos conversando. As pessoas não entendiam e perguntavam aos meus pais: ‘Por que aquele garoto fica deitado no chão se ele não enxerga nada?’ Ali, eu descobri: se você se deitar no chão, independentemente de onde estiver e do som que houver, se você se concentrar, vai escutar algo diferente, vai escutar pessoas distantes. Aquilo que eu fazia tem muito a ver com o que sou hoje, como pessoa e como músico.”

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(Paulo Popo Rapoport/divulgação)
Ars Sonora – Hermeto Pascoal

Curadoria Adolfo Montejo Navas
Sesc Bom Retiro – Espaço expositivo/2º andar – Alameda Nothmann, 185 – Campos Elísios, São Paulo – SP
de 29/5 a 3/11/2024
Terça a sexta, das 9h às 20h
Sábado, das 10h às 20h
Domingo e feriado, das 10h às 18h

 

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