Psica de Nazaré: quando a fé encontra a festa
Conheça o Círio de Nazaré pela perspectiva de um dos maiores festivais de música de Belém
“Inexplicável, só vivendo para saber”. Não há uma pessoa que descreva o Círio de Nazaré de outra forma — e Bravo! foi conferir de perto esse que é um maiores eventos multiculturais do Brasil e faz com que a população de Belém praticamente dobre. Nada menos do que 2,5 milhões de pessoas se movem de todos os cantos para ocupar as ruas da cidade e celebrar — cada qual a sua forma — Nossa Senhora de Nazaré, a padroeira do Pará.
Há quem diga que a igreja já perdeu a posse do Círio. Muito mais do que um evento de fé católica, fica nítido que trata-se de acolhimento, pertencimento e representatividade. “Faz tempo que o Círio é uma festa cultural”, reforça Gerson Junior, um dos fundadores do Festival Psica e que, pelo segundo ano consecutivo, promove junto com seu irmão e sócio Jeft Dias o Psica de Nazaré.
O que se vê e vive na cidade nos dias que antecedem o segundo domingo de outubro são provas cabais disso. “Antigamente, o Círio de Nazaré era só pros católicos, hoje em dia a gente vê todo mundo junto: da umbanda, do candomblé. Eu sou devota e pago minha promessa todo ano. Ela me deu minha casa, me curou”, conta a artista Leona Vingativa.
“A periferia é muito presente no Círio, mas acaba que não ocupa lugares de destaque. Quando a gente traz nosso evento para uma casa dessas, para uma varanda dessas, é trazer todo mundo que sempre esteve às margens para esse protagonismo”, completa Gerson.
Ele fala especificamente da Casa Dourada, equipamento cultural pré-inaugurado pela dupla de irmãos e que deve abrir oficialmente durante a COP30. Da varanda, com vista para a Catedral Metropolitana de Belém, sua avó, sua mãe, amigos e personalidades negras, periféricas, indígenas e LGBTQIAPN+ da cidade acompanharam a chegada e a saída da santa nos dias do Círio.
O Brasil a partir do Norte
“Viva Senhora de Nazaré! Viva a Rainha da Amazônia!”. O grito de saudação à Nazaré – Nazinha, Naza ou mãezinha – ecoa por todos os cantos. Desejos de Feliz Círio, abraços, lágrimas completam o cenário. A energia quase palpável paira no ar e arrepia a cada segundo. Seja na fé ou na festa, na mistura de crenças ou nas celebrações festivas, a emoção não passa batida até à mais ateia das almas.
O começo de tudo já mostra muito dessa fluidez entre o religioso e o pagão. O Auto do Círio, que abre os trabalhos na sexta-feira que antecede a romaria, já está na 32a edição, é Patrimônio Cultural e Imaterial do Estado do Pará. É uma das partes mais lindas da programação do evento, um cortejo que mistura teatro, carnaval e fé, numa homenagem dos artistas paraenses à santa. Tem carimbó, samba-enredo, cor, luz e toda a estética e cultura paraense desfilando entre pontos históricos da cidade-velha.
O auto é sincretismo puro, unindo pessoas de todas as religiões nesse cortejo que toma as ruas combinando teatro, dança, música e performances visuais. É um espetáculo que conta a trajetória das pessoas desse território — essas mesmas que fazem o evento acontecer, como apontaram Gerson e Jeft. A narrativa mistura ancestralidade, resistência e celebração. É um momento de ver a Amazônia pr’além da floresta e abrir os trabalhos do Círio.
Nesta primeira noite, também acontece a Lambateria, um dos festivais de música mais esperados da cidade. Neste ano, a edição foi menor por conta da falta de patrocínios, mas sua importância está marcada na memória de todos que vivem a cultura da cidade e anseiam por edições futuras.
Na manhã de sábado, Nazinha inicia a romaria pela maior rua da cidade: o rio Guamá. À bordo do barco do Psica, ao som dos Africanos e Icoaraci, embalados pelas saias rodadas do carimbó, flutuamos em romaria fluvial, seguindo dezenas de outras embarcações. As águas da Baía do Guajará viram uma grande procissão, levando a santa até a Escadinha da Estação das Docas, ponto emblemático com o melhor pôr-do-sol da cidade.
Dali ela parte ainda para a Motoromaria, procissão das motos, que acontece paralelamente a outra grande manifestação cultural da cidade: o arrastão do Arraial do Pavulagem. A sequência, já no final do dia, é chamada de Trasladação, ou procissão das luzes. Nesta passagem, os romeiros acompanham a Berlinda de Nazaré até a Catedral, onde ela passa a noite ao som de missas para seguir a procissão no domingo de manhã.
Assim que Nazinha passa, a Praça da República é tomada por esta que é a primeira festa LGBT+ do Brasil. Completando 49 edições neste 2025, a Festa da Chiquita é um dos pontos altos do evento. Patrimônio Cultural e Imaterial do Brasil, a celebração coordenada há 35 anos por Elói Iglesias é um espaço de acolhimento às pessoas marginalizadas pelo conservadorismo da igreja católica.
Em contraponto ao personagem escolhido para representar a COP30, o símbolo da Chiquita deste ano foi uma Curupira queer de salto para representar a luta LGBTQIA+ e a diversidade cultural. A personagem folclórica ilustra os troféus “Veado de Ouro” ofertados a pessoas que contribuem com a inclusão da comunidade. Neste ano, Gaby Amarantos, Sônia Guajajara, Keila Gentil, Fábio Porchat, entre outras personalidades receberam a honraria.
O Carnatal do Círio
A manhã de domingo é marcada pela saída da Berlinda em sua maior romaria até a Basílica de Nossa Senhora de Nazaré. Entre as muitas formas de pagar promessas, a mais intensa é a corda. Muitos dormem colados nela para não perder lugar e seguir com a mão fincada neste elo durante toda a procissão. São quase 4km e mais de 6 horas num trajeto feito de pés descalços e espremidos entre milhares de fiéis. Te desafio a ver tudo isso e segurar o pranto quando a santa cruzar seu caminho.
Um “carnatal”, como descreveu um motorista de aplicativo à jornalista Julia Reis. A mistura perfeita entre um momento de fé, de sentar-se às mesas fartas, mas também de celebração, de festa. “É realmente o Natal dos paraenses, tem maniçoba e pato no tucupi na casa de todo mundo, as famílias se reúnem. É muito além de uma procissão religiosa, envolve muitas camadas culturais. É muita emoção. A gente tá falando de fé, de energia”, explica a cantora e produtora Aíla.
Segurando as lágrimas, Jeft define o sincretismo: “Eu pedi tanta coisa pra Nazinha ano passado. Muita saúde mental, força espiritual, sem saber o que vinha pela frente, mas como um bom filho de Exu e de Nazinha, pedi e ela me deu. E cheguei aqui com a força dessas duas entidades que abrem caminhos”.
Em meio às romarias, joelhos no chão, pés descalços, promessas e agradecimentos, o que fica é de fato a energia. Dá para sentir no ar a vibração emanada por todos que estão nas ruas e que a cada ano voltam para Belém, guiados pela fé e pela festa. “A gente não sabe onde vai parar. É a maior procissão a céu aberto do mundo. Toda vez que as pessoas conhecem o Círio, querem voltar, querem ir na corda, fazer uma promessa. É muito emocionante. Só vivendo para saber”, conclui Aíla.
*Bravo! viajou para Belém a convite do Festival Psica, que acontece 13 e 14 de dezembro no Estádio Olímpico do Pará
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