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A doçura de viver no mar

Adriano Grineberg lança “Eufótico”, disco de regravações da primeira fase musical de Dorival Caymmi, e estreia turnê em São Paulo

Por Artur Tavares
Atualizado em 19 fev 2024, 18h33 - Publicado em 2 fev 2024, 09h00
Adriano-Grineberg-música-caymmi-eufotico
 (Matheus Leite/divulgação)
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Uma vibração sonora de toques oníricos sobe devagar, torna-se um ruído e explode. Como num big bang, esse caldo primordial se abre cheio de vida. De dentro dele vêm a percussão, o compasso marcado, as cordas e, por fim, a voz. A momentânea melodia espacial aterrissa e, então, Adriano Grineberg começa a cantar a sua versão de “A Lenda do Abaeté”. Pelos próximos 40 minutos de Eufótico, seu novo disco, as músicas de Dorival Caymmi ganham outros ares: polifônicos, místicos, potentes. Há um certo aconchego também, fruto de uma invocação de entidades que são de além daqui.

Lançado no finalzinho de janeiro e com o primeiro show marcado para esta sexta-feira, 2, Eufótico é o quinto álbum do artista. São nove canções de Caymmi regravadas por Adriano. Além de “A Lenda do Abaeté”, que abre o disco, o paulista interpreta “É Doce Morrer no Mar”, “Promessa de Pescador” e “Canoeiro”, entre outras. Todas são da primeira fase da carreira de Dorival, suas “músicas praieiras”.

Com trajetória fundamentada no blues – tendo aberto shows de artistas internacionais grandiosos, como B.B. King –, Adriano tem se afastado das formalidades da vertentes há um bom tempo. Seu trabalho anterior, Xamã, insere as levadas do ritmo afro norte-americano nas canções meditativas dos trabalhos de ayahuasca – os quais ele é condutor. Ao mesmo tempo que estava na banda de apoio da cantora Ana Cañas em seu projeto que revisita Belchior, ele próprio decidiu homenagear um grande mestre da música brasileira. Chegou a Caymmi por uma série de coincidências – ambos são filhos de Xangô – e afinidades.

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(Matheus Leite/divulgação)

A ideia de gravar Caymmi data de 10 anos atrás, revela Adriano. Foi preciso uma década para maturar a sonoridade de Eufótico, elevar a música de Dorival a uma potência inédita que resgata uma negritude que os brasileiros dificilmente percebem na música do compositor. Mais do que nunca, essas “canções praieiras” tornam-se músicas de santo, escancarando aquilo que sempre esteve diante dos nossos ouvidos.

Nós conversamos com Adriano sobre a gravação de Eufótico, seu novo momento de vida e sobre a obra de Dorival Caymmi. Confira:

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Vou começar pela pergunta que você mais tem ouvido nos últimos tempos. Você toca blues há muito tempo… Por que escolheu interpretar Dorival Caymmi neste momento?
Eu já cantei em muitas línguas. Tenho um trabalho de pesquisa com música africana, já morei na Índia, e o que senti é que Caymmi é um compositor que faz um paralelo com várias das minhas preferências. Então, por exemplo, Caymmi era um cara que ouvia música do mundo todo, tinha acesso a muitos discos. Ouvia jazz, blues, muitas coisas. Essas canções praieiras, essa primeira fase dele, são músicas que têm mais de 80 anos, e acho incrível como acabam soando atuais. Acho que foi um compositor que me vestiu muito bem.

E existe um paralelo entre ele e o blues. Ele foi a primeira pessoa que falou de blues em entrevistas. Seus caminhos musicais levam para o blues. Falando de maneira técnica, a maneira como ele usa o quarto grau com a sétima menor… músicas como “Promessa de Pescador”, “Canoeiro” e “Noite de Temporal” jogam com esse quarto grau como dominante.

Outra coisa que também foi um terreno que me senti muito à vontade, é que nosso show vai ser totalmente diferente do disco. É um raciocínio do blues, de gente como Eric Clapton, B.B. King, que faziam diversas versões de suas próprias músicas. E o Caymmi tocando ao vivo era totalmente diferente. Mesmo em regravações de suas próprias músicas, ele fazia diferente. Quando você consegue ter um domínio sobre essa linguagem, então migra fácil para muitos outros gêneros. E acho que minha história é propriamente essa. Porque não me considero um bluesman raiz, mas vejo como uma música do mundo, que dialoga com várias outras músicas do mundo.

Como você disse, Caymmi tem essas músicas com mais de 80 anos e que já foram interpretadas por muita gente, mas sinto que você está ressignificando esse compositor com novas harmonias e levadas…
Acredito que sim. Essa obra, principalmente a obra das canções praieiras, têm um desafio muito grande. São músicas que mudam de andamento, que são muito difíceis de colocar dentro de um groove, um ritmo uniforme. O sentido de reunir essas canções é trazer esse conceito de pegar uma música que tem três, quatro andamentos diferentes, que tem a parte recitativa, a parte mais rítmica, e colocar isso dentro de um andamento.

Caymmi surge e existe em um momento da música brasileira… acho que até hoje ele é interpretado como uma pessoa branca, e não como uma pessoa negra. Ele nunca teve sua obra racializada. Da maneira que você coloca essas músicas, os instrumentos que aparecem, as levadas, é também um debate que você propõe de olhar essas composições sob outra ótica?
Sim. É engraçado… muito legal essa colocação. Porque eu sou branco, conheci o blues como a maioria dos caras brancos que moram na América do Sul, através do rock no final dos anos 1980, quando eu tinha 15 anos. Havia programas de rádio, os videoclipes. Comecei a ouvir B.B. King, John Lee Hooker, aquilo me pegou em uma época que não tínhamos essa noção de negritude, nenhuma mesmo. O Brasil não tinha essa noção que nós temos hoje, né?

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Então, eu fui pego pela música, realmente. Foi uma questão de música de alma mesmo. Aí comecei a pesquisar o Delta do Mississipi, como o som foi dali para New Orleans, subiu para Chicago e se tornou mais elétrico. Então fui mais longe, até a África. Estive na África algumas vezes e comecei a perceber que realmente o blues é uma música africana. 70% africana, pelo menos, e um elo perdido dentro dos próprios Estados Unidos.

Dorival Caymmi se liga com essa egrégora através da espiritualidade, através dessa matriz africana. Ele era um Obá de Xangô, um título muito importante dentro do candomblé. Ele tinha um conhecimento muito forte como um grande sacerdote, guardava muita coisa dentro dele e transmitia através do som, da poesia, do ritmo, da música, da espiritualidade.

Viver isso… a minha música não seria a mesma sem a presença disso, é algo que procuro honrar. Trazer o blues para a obra dele é, como você percebeu no disco, uma conexão com minha pesquisa, meu álbum Blues for Africa, que incorpora ritmos do norte da África, as melodias de países como Mali, Senegal, Mauritânia, de onde saíram muitos escravizados que não chegaram no Brasil, e, por isso, trazendo um outro contorno de melodia.

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(Matheus Leite/divulgação)

Você fala muito em músicas praieiras de Caymmi, mas essa denominação também esconde que muitas delas são músicas de santo, não é?
Sim, elas falam de uma integração. Porque a música de santo, a matriz africana na espiritualidade, fala de um Deus diferente de como vemos no Ocidente, um Deus que é o próprio corpo universal, com o próprio criador se manifestando dele mesmo. Então, os elementos, os Orixás são os próprios símbolos, os próprios elementos da natureza. É muito legal essa conexão que existe entre o candomblé, a própria umbanda, o xamanismo e o hinduísmo, que são caminhos muito ancestrais, que são uma forma de você cultuar a natureza.

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Então, você tem linguagens diferentes de uma mesma realidade acontecendo, e foi, sim, um lugar que me senti muito bem recebido pela obra dele, pra poder expressar isso da maneira como eu também me sinto. E de trazer ritmicamente, de trazer isso melodicamente para esse universo.

O disco se chama Eufótico, um termo que fala sobre seres que vivem sobre ou sob a água e se beneficiam da luz solar. Ouvindo o disco, eufótico me remete a outras coisas, à necessidade de tomar essa energia pra si, à vida, afinal. O que é esse ser eufótico pra você?
Eufótica é realmente essa zona do mar onde penetra a luz do sol, onde acontece a grande parte da vida marinha, uma camada de mais ou menos um quilômetro de profundidade. Tem a ver muito com meu momento de vida, um ressurgimento pessoal e espiritual que passei durante a pandemia, que foi um momento de pausa, de ressignificar muita coisa da minha vida. Está claro um antes e um depois, e me sinto num momento melhor.

E, foi o momento certo de gravar essas músicas, porque o namoro com essas canções do seu Dorival data mais ou menos de 2014, quando comecei a pensar nesse projeto. Desde então, músicas foram entrando e saindo até chegar nessas nove, fiz várias versões diferentes para cada uma delas, e agora esse momento foi realmente eufótico, um momento de plenitude, de luminescência da minha vida. Eu sinto esse momento de muita alegria, sabe? De uma resplandecência interna do trabalho pessoal, do trabalho espiritual, de como a música tem aberto meus caminhos.

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(Matheus Leite/divulgação)
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Você toca Caymmi nos seus trabalhos com as medicinas da floresta?
Toco, sim. Às vezes faço “O Vento”, sempre faço “Canto de Nanã”, que é uma música interessante porque Nanã revira nos pântanos, faz com que busquemos, dentro de nós, coisas que não queremos enxergar.

Acho que um trabalho com medicina da floresta traz muito disso. Você pode fazer um trabalho sutil e profundo ao mesmo tempo, trazendo a frequência, de orixás, de anjos, desses trabalhos universais que a fazemos.

O Brasil era o país das águas, do sol, da praia, da alegria, mas ultimamente vivemos um carrego bad vibe social e espiritual muito profundo. Cantar Caymmi é, de certa forma, invocar esses grandes mestres através da música? É um misticismo?
É uma coisa que acontece no Brasil, mas é também mundial. Nem precisamos falar sobre a Argentina, mas o Paraguai também, os Estados Unidos e a Europa. Então, é importante resgatar muitas coisas, essas canções que são de 80 anos atrás.

E estou vendo que os artistas estão ousando um pouco mais. Trazendo uma coisa… adaptando para nossa realidade essa alegria. Estão revisitando Caetano Veloso, Belchior, de maneiras muito lindas. É muito importante trazer isso. O Brasil realmente precisa encontrar um ponto de equilíbrio, pelo menos. Para que possamos resgatar muito da nossa identidade.

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(Matheus Leite/divulgação)

O primeiro show de Eufótico acontece nesta sexta. Como serão essas apresentações? Vocês tocam o álbum inteiro e acrescentam outras músicas?
Além das nove músicas, vou tocar algumas canções de Blues for Africa que estão dentro desse contexto, como “Olodumare”, que recebi a letra em um sonho e “Jingoloba”, música que inclusive foi gravada por Carlos Santana. Vou fazer “Canto de Obá” e “Meu Pai Xangô”, também do Dorival, porque também sou filho de Xangô. E vamos fazer uma versão de “Dois de Fevereiro”, que é o dia do show.

Estou saindo dessa entrevista para o ensaio geral do show. Você montar um show diferente do disco, porque me decepciono quando vou a uma apresentação e ela é igual ao disco. E quero falar sobre os músicos que me acompanham, como o Edu Gomes na guitarra, que é produtor do disco junto com o Fabá Gimenez, que também faz violão e guitarra. Além deles, temos Ayrton Fernandes no contrabaixo e Caio Lopes na bateria. A direção é da Amanda Souza. Importante falar também de Daniel Lanchinho, que mixou Eufótico e vários trabalhos meus.

Uma coisa interessante é que mantive a equipe dos últimos quatro discos, e muito legal ver como nos desenvolvemos, como a música evoluiu. Agora, a ideia é também registrar os ensaios e os shows ao vivo e lançar esse registro posteriormente também.

O espólio do Caymmi ouviu o disco? Gostou?
O disco está com 11 dias apenas, mas o Danilo ouviu, me mandou mensagem dizendo que gostou. Está acontecendo, agora é cair na estrada, e já estamos com uma prospecção de rodagem muito boa.

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(Adriano Grineberg/divulgação)
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