O amor do Brasil por Alcione
A sambista celebra 50 anos de carreira com turnê nacional, trazendo ao público suas canções mais conhecidas
O Brasil vive uma longa e fiel relação de amor com Alcione. Uma relação difícil de dizer com precisão quando e como surgiu, mas que segue inabalada e atravessa gerações como uma herança deixada através dos famosos discos de capas gastas, como A Voz do Samba (1975), Alerta Geral (1978) e Estranha Loucura (1987). Alcione faz os brasileiros chorarem antes mesmo de Adele nascer. Por sorte, a sambista continua a todo vapor cantando seus maiores sucessos, celebrando uma carreira que chegou aos 50 anos. E com ela, tem percorrido o Brasil com sua turnê de comemoração e feito participações em alguns festivais.
Uma pequena, mas valiosa, amostra do gesto de amor – recíproco, diga-se de passagem – foi exibida na sua apresentação recente em São Paulo, na nova casa de shows Terra SP. Nela, a cantora maranhense, com seu jeito seguro e também afável, faz do palco sua sala de estar. Logo após começar a apresentação, ela pede licença ao público para continuar o restante do show sentada.
Recentemente, passou por uma cirurgia e não pode ficar tanto tempo de pé. Nem por isso sua performance perde em energia. E mesmo se faltasse, há de sobra por parte do público, que, com um olhar apaixonado, repete cada letra de suas canções. Após mais algumas músicas, ela interrompe o fluxo e pede uma xícara de café. Essa é apenas a primeira dose de cafeína de muitas outras que virão pela noite.
O público conhece de cabo a rabo suas músicas, um aprendizado que não se deu apenas por ouvi-las repetidamente, mas por meio de um conhecimento de causa. Alcione canta, com exatidão, as dores do desamor, daquelas paixões doídas que acabam. Mas, sejamos justos, ela fala também sobre recomeço. “Quando volto, volto com os peitos empinados para o céu”, ela brinca durante a apresentação. No meio da multidão que entoa sem perder o fôlego, há aqueles que limpam as lágrimas de canto de olho. Ninguém é tímido quando escuta Alcione. Esse é o seu efeito.
Uma pequena licença para voltar no tempo. Antes do show começar, a cantora está em seu camarim, cheio de pessoas da equipe, mas também de fãs que fazem fila para tirar fotos com Marrom, como é conhecida. Ela está sentada, com olhos atentos, observando toda a movimentação a sua volta. Há também uma alegria que não faz questão de esconder. “Estou muito feliz neste momento, de ver aos 50 anos de carreira, um público que continua comigo. Coisas muito bonitas estão acontecendo para mim. Ano que vem serei enredo da minha escola, a Mangueira, na qual eu desfilo desde que comecei a cantar.” Quais canções do repertório não podem faltar? Sem titubear, ela diz “A loba” e Você me Vira a Cabeça”. Aí dela se esquecer: o público não perdoa. Além dessas, há também “Faz uma loucura por mim”, “Separação”, “Meu ébano” e “Não deixe o samba morrer”.
Ela conta que fica satisfeita quando vê um público tão diverso, em idade ou origem, acompanhando suas canções. “Quero isso, quero paz, quero poder conciliar”, ela diz. “Acredito que isso é coisa de Deus.”
Nessa rápida visita, não há tempo para falar de muitas coisas, mas um assunto, guardado com carinho na memória, não pode ser deixado de fora nesse momento tão especial: a influência de seu pai na sua paixão pela música. Afinal, foi por ele que ela começou a cantar. E foi ele, seu João, quem ensinou a jovem Alcione a tocar instrumentos de sopro. “Em casa, todos os dias, eu via ele cantando escrevendo partituras, sua orquestra ensaiando na sala de casa. A caligrafia musical dele era linda, nunca vi ninguém escrever música tão bonita e tão rapidamente quanto o meu pai.” A sambista também era muito ágil, com apenas 12 anos, apresentava-se profissionalmente junto à orquestra.
Conforme foi crescendo, o gosto pelo palco também se desenvolvia. Ela lembra aos risos que durante sua curta carreira como professora, foi expulsa de uma escola por subir na mesa e começar a cantar. Não foi uma ação aleatória, fez aquilo a pedido dos alunos. “Eu não podia ver um palco. Daí quando o diretor chegou, ele disse: ‘Isso aqui não é um teatro. ‘E então ele me despediu.”
Desavisado, aquele diretor fazia um grande favor ao Brasil.