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5 anos sem Beth Carvalho: Os últimos serão os herdeiros

A colunista Luana Carvalho escreve sobre herança e luto

Por Luana Carvalho
1 Maio 2024, 09h00

Herança. Do grego, genetikos: relativo à origem (Genos: raça, espécie). Do latim, hereditas: condição de estar apto a receber bens, direitos e obrigações (atenção à esta última) de um ente falecido. Do meu coração: o luto que vivo há 5 anos e que me surpreende o tempo todo. Sim, eu falo muito da minha mãe e não tenho a menor pretensão de parar. Aos que pensam que isso é um fardo ou uma ligação limitante, difiro: não sei se existe algo mais inteiro, justo, constitutivo e evolutivo do que se reiterar parte: herdeira. E ainda, representante de um legado. Porque herança, pra mim, é, acima de tudo, ancestralidade, narrativa genética e cultural, passado e futuro. Hoje, dia 1º de maio, 5 anos atrás, Beth Carvalho foi velada no gurufim mais comovente que já vi, no clube do Botafogo (ao qual sou eternamente grata), no Dia do Trabalhador, como não poderia ser diferente em se tratando de sua trajetória. Depois desta data, minha vida nunca mais foi só a minha vida.

São comuns as chacotas sobre herdeiros. “Preciso trabalhar porque não nasci herdeiro”. Como se alguém pudesse não ser herdeiro ao nascer. Da naturalidade, nacionalidade ou classe social em que se está inserido, que seja. Você pode nascer numa prisão, numa favela ou num castelo. E talvez isso marque toda a sua existência. Mas a brincadeira costuma ignorar a amplitude da palavra e suas consequências. Todo mundo quer uma herança. Será? Bom, pra início de conversa, todo herdeiro perdeu alguém. Cuidado, conteúdo sensível. É em detrimento da morte, a herança. Pasmem! Então, quando forem usar de humor com isso, tentem separar as naturezas. Porque, dependendo do momento, pode ser chocante até pra órfãs como eu que tenho sempre uma piada no meio do pranto (“Amor-Humor”). Mas parece que esse tipo de escárnio não entra no grupo condenado de falas constrangedoras que sobrepõem o dinheiro a uma vida humana. Aí talvez vocês discordem: se é inevitável, melhor perder alguém mas ganhar alguma coisa em troca. Troca?

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Herança não é sempre dinheiro na conta. E mesmo quando é, não só o é (apesar da solidão ser resultado inevitável). Herança pode ser uma ferra. Sobrenomes: dor e delícia. Sabem lá o que é ser herdeiro de um político condenado, por exemplo? De um abusador, um pedófilo, um racista, um fazendeiro genocida, um ruralista xenófobo? De um policial jurado de morte ou de um bandido na mira de uma facção que quer eliminar sua família para dominar uma comunidade? Taí a série sobre os bicheiros carimbando a sina: pode ser inclusive fatal. E não há muitos milhões nesse país que não devam ser questionados moral e legalmente. Pra alguém ser muito rico aqui, alguém tá morrendo de fome ali. Então mesmo no amor incondicional, se o herdeiro tem consciência de classe, já complica um bocado a noite de sono.

Nada disso passa perto da minha circunstância. Minha verdadeira ‘troca’ foi do orgulho que sempre tive da presença de quem se foi, pelo orgulho que sigo tendo na ausência de quem parece nunca ter ido. Esses dias ouvi o Luiz Antônio Simas citando um verbete africano que diz que só morre quem não vira história. Enquanto Beth Carvalho for história, não me cansarei de ajudar a contá-la. O Samba é igualmente um dos patrimônios mais precípuos e mal remunerados desse país. Portanto, o que ganhei de fato foi a implacável honra de colaborar com a manutenção de um legado extraordinário que ficou, não só pra mim, mas pro Brasil, e pro mundo. Um novo emprego pro qual não apliquei, mas que vale qualquer sacrifício pra que o samba agonize mas não morra e, quem sabe, ganhe o quanto pesa. Uma falta irreparável que compartilho com meus concidadãos, o que muitas vezes é um imenso consolo, uma grande companhia, “obrigada do fundo do nosso quintal”!

Seria interessante se o significado da palavra que inicia esse texto pudesse finalmente se aproximar do que ficou deveras finado no Brasil: a reverência aos nossos antepassados. Herança fundamental é a cultura de uma nação, a que dignifica os que vieram construindo nossa história, nossa identidade – muitas vezes a custo de milhares de vidas, como as de pretos e indígenas – pra que possamos compreender a urgência das retratações, da inclusão, das novas políticas, da formação antirracista. O consentimento da herança é o que permite que vejamos a verdadeira cara do nosso país, cujo espelho reflete desde a invasão portuguesa uma imagem bastante equivocada. Essa herança, sim, deveria ocupar os trending topics nas redes sociais. Piada de bom gosto. Essa que nos une a todos.

Fora isso, quando forem postar um même querendo “ser herdeiro ao invés de trabalhar”, tentem pensar que, se vocês têm bons pai e mãe vivos, vocês não deveriam querer trocá-los por nada. Aproveitem, saiam da internet e deem uma ligada pra eles, ou façam uma visita, que era tudo que eu queria estar fazendo agora.

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