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O amor e o estranhamento de Elis Regina e Tom Jobim

Documentário 'Elis & Tom - Só Tinha De Ser Com Você', de Roberto de Oliveira, rememora os momentos do encontro histórico entre os dois gênios da música

Por Humberto Maruchel
24 ago 2023, 22h27
Cena do documentário "Elis & Tom".
 (Roberto de Oliveira/divulgação)
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Em 1974, o diretor Roberto de Oliveira conseguiu realizar o que parecia impossível: reunir dois dos maiores gênios da música brasileira para criar um álbum icônico. Roberto tinha sido empresário de Elis Regina e mantinha uma relação próxima com Tom Jobim, que naquela época vivia nos Estados Unidos. Para viabilizar o encontro, era necessário levar Elis até Los Angeles, uma escolha estratégica, já que a cidade abrigava os principais estúdios de cinema e os melhores músicos disponíveis. Vale ressaltar que esse encontro se deu em meio aos tempos sombrios da ditadura militar brasileira.

Cena do documentário
(Roberto de Oliveira/divulgação)

O clima no estúdio era tenso quando chegaram. Elis estava acompanhada de seu arranjador musical e também companheiro, Antônio César Camargo Mariano. Tom, conhecido por sua perfeccionismo extremo, temia que os arranjos não saíssem conforme sua visão artística. Poucos imaginavam que aquelas duas personalidades tão distintas poderiam se harmonizar, não apenas, musicalmente, mas no temperamento . “Era o encontro de Apolo e Dionísio”, afirma João Marcelo Bôscoli, filho de Elis, em depoimento no novo documentário Elis & Tom – Só Tinha De Ser Com Você. Tom gostava do minimalismo, e Elis, da exuberância, da dramaticidade. No entanto, a magia da música prevaleceu, e o disco Elis & Tom nasceu de uma relação de amor e respeito mútuos entre os artistas.

Enquanto as conversas, os acertos e os momentos criativos se desenrolavam, Roberto, munido de sua filmadora 16mm, capturava cada instante, sem imaginar que, décadas depois, daria um destino tão especial para aquele material. Mais de 40 anos se passaram até que decidisse compartilhar com o público brasileiro as imagens daquela ocasião única, e agora Elis & Tom – Só Tinha De Ser Com Você chega aos cinemas em 21 de setembro. “Não entendi até hoje por que você guardou essa história”, diz Roberto Menescal, ex-diretor musical da Polygram, nos primeiros minutos do filme. Em sua defesa, Roberto afirma que acreditava que a história precisava amadurecer, ganhar contornos especiais ao longo do tempo.

Cena do documentário
(Roberto de Oliveira/divulgação)

O documentário é uma viagem ao passado, um mergulho na genialidade de dois ícones da música brasileira. Revisitar esse momento único de encontro entre Elis e Tom é uma oportunidade para os fãs e amantes da música brasileira desfrutarem da magia daquele momento e celebrarem a arte que transcende gerações. Confira a conversa com o diretor de Elis & Tom – Só Tinha De Ser Com Você.

Qual foi o impulso para você fazer o resgate desse encontro histórico da música brasileira?
O impulso, na verdade, foi reverso. O filme levou 50 anos para ser feito. Eu sentia que essa história, esse filme, precisava amadurecer para ficar bonito. Eu tinha esse material guardado, e eu sabia que as histórias deles tinham que se completar, assim como a história do disco, para que ela se arredondasse e ficasse boa de ser feita. Foi algo instintivo. As histórias desses dois artistas já se concluíram e eles continuam aqui a partir de suas obras. A Elis executa mais hoje do que quando estava viva.

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Esse momento poderia nunca chegar, você poderia nunca se achar efetivamente maduro.
Pois é, mas tudo exige um tempo para se definir. Se eu falasse 40 anos atrás que esse disco entraria para a história, as pessoas poderiam acreditar ou não. Hoje em dia não existe essa dúvida. Esse momento chegou muito claro para mim. E as oportunidades foram aparecendo, o Arte 1, que apareceu, foi muito importante [para a produção do documentário]. Não é fácil fazer documentário no Brasil, é mais desafiador do que a ficção. Tem uma limitação mais restrita de até onde pode chegar em termos de público. Mas esse material é muito forte.

Cenas do documentário
(Roberto de Oliveira/divulgação)

Como você definiria esse encontro desses dois artistas, antológicos para a música brasileira?
Quando organizei o encontro, já previa que se tornaria algo histórico, considerando também a dificuldade de realizá-lo. Eu era muito jovem na época, com apenas 25 anos, mas não tinha dúvidas quanto à genialidade de Tom e Elis. Elis era reconhecida como uma das 10 melhores cantoras do mundo. O resultado foi um disco perfeito.

Parece inacreditável conversar com alguém que teve uma relação muito próxima dos dois.
Isso me deu uma condição muito privilegiada para fazer o filme. Desde o início eu tinha a expectativa de contar a história como ela realmente aconteceu, fui muito rigoroso com isso. Foram quase 50 anos e há diversas versões conflitantes sobre o encontro, tem livros que dizem que eu estava em tal lugar, que falei tal coisa e que não são verdadeiras. Fui muito rigoroso com isso, portanto. As questões em aberto eu coloquei de forma transparente para o público poder discutir. O porquê da morte da Elis, por exemplo, ainda é uma coisa um pouco indefinida. Então deixei várias portas abertas para as pessoas poderem discutir.

Eu tenho muito arquivo, muitas coisas, sou um acumulador de imagens e sons. Eu não guardo nada, mas isso sim. Quando estava gravando, eu não estava pensando no que faria naquele momento com aquele material. Estava sempre pensando em ter um material e preservá-lo. Eu não me conformava, por exemplo, shows que não possuíam nenhum tipo de registro. E tem momentos muito mágicos que estão apenas na memória de quem estava presente. Eu ficava muito agoniado. A genialidade da música é algo muito perecível, quando, se você não registrou, ela morre.

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A música sempre vence. Eu me acostumei com isso. Eu sabia que todo processo artístico começaria com uma dificuldade, e terminaria com o êxtase. Percebi que a dificuldade é algo normal, não é nada excepcional. Tudo se supera para que a obra de arte aflore.

O Tom e a Elis tinham perfis e personalidades muito diferentes, o que te fez pensar que esse encontro daria certo?
Acho que na música tem uma coisa que impulsiona as coisas para acontecer, na perspectiva da cabeça dos músicos. Eles são complicados, muitas vezes podiam convencer de que as coisas não iriam caminhar, mas parece que tem um objetivo artístico que impulsiona as pessoas, no final, a se entenderem. É como uma orquestra. Chega um cara com dor de dente, outro que teve uma briga no casamento, tem muitas situações que contribuem para não dar certo, mas quando junta aquelas 30, 40 pessoas, tudo sai perfeitamente. Acho que a música tem um ímã que atrai, no sentido de as coisas sempre terminarem acontecendo. A música sempre vence. Eu me acostumei com isso. Eu sabia que todo processo artístico começaria com uma dificuldade, e terminaria com o êxtase. Percebi que a dificuldade é algo normal, não é nada excepcional. Tudo se supera para que a obra de arte aflore.

Quais lembranças você guarda dos dois, para além das figuras que conhecemos através de entrevistas ou filmagens?
Eu tinha uma relação afetiva com os dois. Eu surgi na vida da Elis num momento que ela estava precisando de apoio, ela era uma pessoa muito desprotegida, por isso a complexidade do jeito dela. E isso numa área, do show business, que é muito agressiva. Nós criamos uma relação muito forte. E com o Tom, eu também tinha uma ótima relação com ele. Comecei a trabalhar com música nos anos 70, aos 19 anos, com o Vinicius de Moraes, fazendo o circuito universitário. Através do Vinicius, conheci o Tom. Eu percebia as qualidades dele a partir da convivência, e realmente ele era um músico excepcional, acima da média. Era uma pessoa também muito espirituosa, criativa. Era muito irônico, brincalhão. Gostava de estar sempre procurando uma coisa nova. Você falava uma palavra, ele prestava atenção e brincava com aquela palavra. Ele cismava como uma coisa e passava dias falando.

Algo interessante sobre a Elis é que ela era muito diferente da imagem pública que ela tinha, uma imagem mais agressiva. Ela era uma pessoa muito doce, muito fácil de lidar. E uma artista completa, ela tinha uma sensibilidade absurda. Era muito bom conviver com os dois.

Cena do documentário
(Roberto de Oliveira/divulgação)
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Fico imaginando como eram as conversas entre os dois. A Elis com um perfil muito político, e o Tom aparentemente mais tranquilo, envolvido em suas criações.
As conversas não se cruzavam. Era o contrário. A Elis estava numa fase muito conturbada, ela tinha acabado de se separar do Ronaldo Bôscoli. E era uma briga constante. No fundo, eu acho que eles se amaram até o fim.

Então, quando ela chegou em Los Angeles, ela estava muito carregada com esse caldo da separação e o Tom era um personagem que lembrava um pouco o Ronaldo. Os dois eram aqueles cariocas bonitões, simpáticos, que encantavam as pessoas. Acho que a Elis chegou sem muita vontade de aproximação. Pelo contrário, talvez estivesse hesitante. O tempo todo foi assim, eles não se batiam. Tem aquela famosa história, quando fizeram o “Pobre menina rica”, um musical com o Vinicius de Moraes, e o Tom teria rejeitado a Elis e feito o comentário “Essa gaúchinha deve estar cheirando a churrasco, não está pronta”. Eu duvido que ele tenha falado isso, alguém deve ter inventado essa história e essa fofoca correu no Rio de Janeiro. E, claro, ela ficou muito brava quando soube disso. Então imagina, chegar em Los Angeles com esse clima.

Cenas do documentário
(Roberto de Oliveira/arquivo)

Tinha também o problema dos arranjos. O Cesar vinha de uma corrente muito popular de música brasileira. O Tom fazia um trabalho mais sofisticado. Isso foi um horror; 18 dias de tensão em que o Tom não sabia o que iria sair de arranjo, ele não conhecia direito o trabalho do Cesar. E o Tom já tinha uma carreira pronta, as músicas dele haviam sido gravadas pelo Frank Sinatra. Ele ficou muito em cima do Sergio para que não saísse do que ele queria. E o César vendo o tamanho da coisa, respeitou a sonoridade, o jeito dos arranjos, e a orientação que o Tom dava a ele. No fundo, os arranjos são de autoria do Tom e do César.

O César não gostava muito desses especiais da Elis, quando ela saía daquela bolha da sonoridade que eles tinham, e que ele era o responsável. Ele era o maestro dela. Então, quando ia para outro som, acho que ele tinha um ciúme meio escondido. No fim, ele ficou super feliz com o resultado e tem até hoje muito orgulho do disco.

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Um dos aspectos mais importantes do documentário diz respeito à carreira internacional de cada uma dessas partes. E me chamou a atenção a resistência da Elis. O que você acha que explica esse não querer de se expandir internacionalmente?
A Elis teve uma carreira muito sofrida, embora estivesse sempre sorrindo, alegre. A vida dela não foi fácil. Primeiro, ela era uma menina prodígio, com 5 anos era uma cantora impressionante. Ela vivia em uma vila operária, em Porto Alegre, e em todo lugar que ela fosse, ela colocava uma cadeira para cantar. E juntava muita gente. Então, ela sempre foi muito assediada, todos os tipos de assédio que você pode imaginar. Foi uma carreira muito doída. E, justamente, por ela não ter uma rede de proteção familiar mais poderosa, ela tinha que se defender sozinha o tempo todo.

Cena do documentário
(Roberto de Oliveira/divulgação)

Quando fui fazer Elis e Tom, eu fui empresário dela por um tempo muito curto, a ideia era essa mesma. Depois do circuito universitário, ela me convidou para ser empresário dela, eu topei, e disse que não era empresário, mas produtor, apresentador de shows. Mas não ia recusar o convite da Elis. A ideia era fazer um projeto, para mexer na carreira, e aí ficamos um ano e meio até ela montar uma estrutura própria para cuidar da carreira. Nesse período, quando terminamos o disco, eu lembro de me despedir da Elis, era aniversário dela, 18 de março, ela estava fazendo 29 anos. Eu disse que ia ficar em Los Angeles para resolver outros compromissos e ia procurar oportunidades para ela lá. Ela disse que tudo bem. Eu me movimentei bastante, fiquei umas três semanas conversando, porque tinha essa expectativa de que a Elis seria um sucesso fora do Brasil. Consegui alguns contatos, mas todos me diziam que ela teria que cantar em inglês, e teria que passar seis meses por ano nos EUA. E teria que começar do zero. Quando voltei, ela falou que não queria cantar em inglês, ela até pediu para tirar uma música do disco em inglês, porque achava que não falava o idioma perfeito. Ela não falava nenhuma língua, mas era capaz de cantar até em alemão, com 80% de qualidade, porque tinha um ouvido excepcional. Mas ela não quis, e se recusou a ficar fora do Brasil. Ela foi muito categórica.

Deve ser um golpe escutar que precisa recomeçar tendo conquistado o auge aqui no Brasil.
E ela queria sossegar, cuidar da família, ter uma vida mais tranquila. Ela nunca conseguiu ter uma vida normal. A obra, a genialidade dela, eram coisas tão importantes que o resto não se realizava, pois aquilo consumia muito dela.

Cena do documentário
(Roberto de Oliveira/divulgação)
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Já o Tom se sentia muito tranquilo com isso, né?
Ele era o brasileiro mais conhecido do Brasil. Ele e o Pelé. Era tão conhecido a ponto de o Sinatra fazer um disco com música dele, com ele. O Sinatra era o maior cantor do mundo. E como a música do Tom era muito soft, então em qualquer lugar que você entrasse, tocava Tom Jobim. Até hoje, todos os ambientes que querem dar um ar de sofisticação acabam tocando Tom.

E como ficou a relação dos dois depois desse encontro?
Ficou linda. No meio do disco, quando eles começaram a cantar juntos, já foi uma paixão. É uma forma de amor que transcende todos os outros tipos de amor. Foi um negócio incrível, eles nunca tinham cantado juntos. A Elis já tinha cantado “Águas de Março” dois anos antes, teve uma repercussão pequena. Mas quando os dois sentaram juntos, foi o encontro do melhor compositor e a melhor cantora. Foi uma paixão. Depois nós fizemos dois shows em São Paulo e no Rio de Janeiro. Esses shows tinham um papel estratégico de reposicionar a Elis, porque o prestígio dela caiu depois que ela fez um show para as Olimpíadas do Exército Militar.

E esses shows eram para repercutir muito, não para ganhar dinheiro. Embora fosse um show muito caro e sofisticado. Mas, na verdade, era para mostrar que a Elis pertencia ao primeiro time da música brasileira. E foi lindo, estavam “apaixonados” um pelo outro. Terminaram a história no auge, como tudo na vida da Elis. A carreira dela acabou no auge, ela morreu no auge.

Cartaz de divulgação do documentário
(Roberto de Oliveira/divulgação)

E qual foi a sua opinião sobre o comercial utilizando a imagem da Elis com inteligência artificial?
Eu não levo as coisas ao pé da letra, como algumas pessoas levaram. O que importa é o que aconteceu, que foi uma maneira de relembrar e relançar a Elis. Explodiu o número de execuções dela depois do comercial. Ela já era popular, mas se popularizou ainda mais. Cresceu o número de possibilidades de veiculação de música. O comercial é muito bonito, mostra as duas juntas. É engraçado que no comercial a Maria Rita está com 41 anos, e a Elis com 28. Quem é a mãe ali? O João Marcelo poderia ser pai da Elis. Acho que o comercial trouxe a Elis de volta, trouxe Belchior de volta, trouxe a boa música de volta. Mas é justo que as pessoas comentem, problematizem. Óbvio que deve haver uma proteção de direitos autorais, ninguém pode usar a imagem de alguém que não está aqui e que faça mal uso. Mas acho que nesse caso foi bom para a história da Elis.

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