Um mergulho na espiritualidade de Iara Rennó
Cantora lança álbum "Orí Okàn" dando continuidade a um trabalho profundo dedicado às sonoridades e temáticas do candomblé
É encantadora a forma como Iara Rennó consegue transitar por temáticas e sonoridades tão diferentes entre seus trabalhos. Da poesia concreta ao erotismo, das adaptações literárias para o candomblé, a cantora está sempre em busca de trabalhos marcantes e vanguardistas. Seu álbum mais recente, Orí Okàn, é um registro de seu mergulho à espiritualidade, uma continuidade das músicas que têm feito com dedicatórias aos orixás.
Lançado em junho, Orí Okàn soa como a fotografia em negativo do disco anterior de Iara, Orikì, de 2022. Isso porque aquele álbum tem uma sonoridade potente, de instrumentação rica, enquanto o atual é bastante introspectivo, com um volume vocal mais contido e acompanhado quase que exclusivamente por um violão.
Em comum, a temática do candomblé é explorada de maneiras distintas nos dois trabalhos, sendo que em Orí Okàn as letras tratam dos processos íntimos de Iara em ambientes de terreiro ou seu universo particular, muito distante das saudações de Orikì, que são, de certa forma, coletivas.
São discos muito parecidos, muito diferentes, complementares assim como a dupla Arco e Flecha, de 2016. São álbuns lançados com menos de seis meses de espaço entre um e outro, mas fascinante de verdade é saber que tudo isso começou quando Iara ainda trabalhava em seu primeiro disco solo, Macunaíma Ópera Tupi, em 2009. Na época, ela e outros 60 músicos levaram a obra de Mário de Andrade primeiro ao Teatro Oficina, mas ao longo dos anos foram apresentando o espetáculo das mais diversas formas, inclusive uma versão power trio um pouco antes da pandemia acontecer.
“As participações especiais de Curumin, Tulipa Ruiz, Carlinhos Brown e Lucas Santtana em Orikí já estavam prontas, só a Thalma de Freitas e o Criolo entraram depois. E mesmo assim havia um histórico, o Criolo tinha ido num show que fiz com o Kiko Dinucci no Studio SP, em 2010, e ficou muito impactado. Montamos uma banda que depois acabou sendo praticamente a mesma banda dele”, conta. “Na mesma época fiz uma instalação de Oríkì no Museu Afro Brasil, uma exposição imensa com 12 instalações para 12 orixás. E tinha músicas, algumas gravações que nunca saíram como disco. Então teve um longo processo, muitas músicas que tive que mexer.”
Iara explica que não pensou nas obras como um disco duplo: “Acho que tem uma relação, não sei se de complementaridade, mas de continuidade mesmo. Continua se falando de orixá, mas de outra forma. Porque em Oríkì todos os textos são muito subjetivos, descrevem atributos dos orixás, tem apenas uma música em primeira pessoa. Já em Orí Okàn a narrativa é intimista, a maioria das músicas são em primeira pessoa. Tem essa posição de pessoa de discurso.”
Confira nossa conversa:
Seu disco anterior, Oríkì, já vinha com uma sonoridade muito forte ligada ao Candomblé, enquanto este lançamento recente, Orí Okàn, vem com uma estética mais intimista. São álbuns irmãos, assim como Arco e Flecha, lançados em 2016?
Tem essa relação com Arco e Flecha, né? As pessoas estão comentando, se questionando se vou fazer os shows juntos. Quando me falavam que eu estava lançando um disco duplo, dizia que estava lançando dois discos uno. Porque eles têm uma relação de oposição e complementaridade na temática e na narrativa.
No caso de Orí Okàn, tem essa mesma diferença sonora. Acho que os discos têm uma relação, não sei se de complementaridade, mas de continuidade mesmo. Continua se falando de orixá, mas de outra forma. Porque em Oríkì todos os textos são muito subjetivos, descrevem atributos dos orixás, tem apenas uma música em primeira pessoa. Já em Orí Okàn a narrativa é intimista, a maioria das músicas são em primeira pessoa. Tem essa posição de pessoa de discurso.
Isso porque o Oríki é esse poema de saudação, ele descreve esses atributos dos orixás, mas pode ser um tipo de poema que pode ser feito para uma família ou uma cidade. É um poema-brasão, é assim que funciona dentro da literatura iorubá e da tradição oral, que acho que combina muito com essa coisa do instrumental mais cheio, uma coisa grandiloquente. Mais para fora mais.
Então foi um processo de composição pensado?
Não foi uma coisa premeditada. Aconteceu. Achei que combinava com essa sonoridade de pouca coisa, de mais espaço, mesmo que seja para o vazio, para a introspecção.
Você cita abrir espaço para o vazio, e sinto na sua música muito dessas sonoridades da mata, da floresta, dos zunidos, das cigarras, dos seres. Esses sons são influências para você?
Sim, bastante. A natureza é isso, sempre muito inspiradora. Inclusive os orixás são manifestações da natureza. Tem essa parte sensorial, imagética que é muito forte também. Então isso está presente, gosto de explorar.
Mas você se refere a um tipo de psicodelia?
Não sei se uma psicodelia, mas dos sons que vêm dela. Porque as pessoas falam “som de orixá” e pensam em um tambor. Você vai além, não está nesse lugar, então quero entender de onde vem a percepção desses elementos.
Acho que tem duas coisas. Um pouco porque no passado o povo sudestino, ou sulista, sei lá, meio que classificou o som da minha família materna como uma psicodelia florestal. Tem essa influência. E, por outro lado, tem também o ato de processar a tradição. Dar um outro olhar, colocar alguma coisa…
“Acho que os discos têm uma relação, não sei se de complementaridade, mas de continuidade mesmo. Continua se falando de orixá, mas de outra forma. Porque em Oríkì todos os textos são muito subjetivos, descrevem atributos dos orixás, tem apenas uma música em primeira pessoa. Já em Orí Okàn a narrativa é intimista, a maioria das músicas são em primeira pessoa. Tem essa posição de pessoa de discurso”
Iara Rennó
De onde vem essa pesquisa sonora e o interesse pelo candomblé?
Essa relação começou faz muito tempo, na adolescência, em contatos episódicos, mas que foram se intensificando. À medida que já estava mais envolvida, começou a me influenciar. E começou a trazer também umas ligações mais antigas, umas referências mais antigas que não estavam racionalizadas pra mim. Então eu fui procurar saber mais, tem um efeito ímã, né? Esse magnetismo, assim. E eu comecei a produção musical de Oríkì ainda em 2009…
2009? Mas o disco saiu só em 2022!
Eu estava fazendo turnê de Macunaíma lá no Oficina, aquela coisa toda, um caos. Mas a maioria das gravações do disco são de 2009. As participações especiais de Curumin, Tulipa Ruiz, Carlinhos Brown e Lucas Santtana já estavam prontas, só a Thalma de Freitas e o Criolo entraram depois. E mesmo assim havia um histórico, o Criolo tinha ido num show que fiz com o Kiko Dinucci no Studio SP, em 2010, e ficou muito impactado. Montamos uma banda que depois acabou sendo praticamente a mesma banda dele.
Na mesma época fiz uma instalação de Oríkì no Museu Afro Brasil, uma exposição imensa com 12 instalações para 12 orixás. E tinha músicas, algumas gravações que nunca saíram como disco. Então teve um longo processo, muitas músicas que tive que mexer.
Você acha que o público e a crítica colocam o que a gente pode chamar de “música de santo” em um lugar diferente da música popular brasileira? Isso dificulta pra fazer shows ou tocar em festivais?
Sim, eu tenho visto isso. Mas ao mesmo tempo que é um nicho, e é legal que seja, existe esse outro lado. E não existe música mais brasileira que essa, aliás. Mas aí muita gente absorve como influência, e não no texto. É um orixá que aparece ali sem formalidade, sem sublinhar essa coisa do tema. Já eu sou muito temática, adoro um tema.
Você mergulha naquilo, né?
Mas às vezes me pergunto o que vou fazer depois, um outro disco totalmente nada a ver… Mas não vai ser este ano, pelo amor de Deus!
Você produziu muito nos últimos anos. Só na pandemia foram três, além de diversas participações, como a Trupe Chá de Boldo e o Lirinha. Quanto tempo você dedica à música?
Todo tempo. É… Arte e vida, né? Arte e vida severina. É uma coisa só. Eu tenho muita música, quando lanço um disco, já começo a pensar no outro. Então, é meio assustador.
Mas mesmo em Orí Okàn têm músicas que vêm antes de 2009. “Oyá Mesan” foi escrita em 2006 ou 2007, e desde então passou por umas mudanças de letra. Já “Logum” fiz só no fim do ano passado, na boca do estúdio para gravar o álbum.
“Não existe música mais brasileira que essa, aliás. Mas aí muita gente absorve como influência, e não no texto. É um orixá que aparece ali sem formalidade, sem sublinhar essa coisa do tema. Já eu sou muito temática, adoro um tema”
Iara Rennó
A consistência é impressionante, não se percebe um salto…
É isso que estou dizendo. Não inventei agora esse trabalho, estou fazendo há muito tempo, construindo essa narrativa, tendo essa experiência de arte e vida mesmo. E espiritualidade.
Você é de uma família de muitos músicos, já teve banda, montou um time impressionante de músicos para Macunaíma, seus discos solo sempre tiveram muitas participações especiais. Como surgem as participações nos seus discos, como agora do Moreno Veloso, da Karina Buhr, do Zé Manoel?
É, geralmente surge… Acho que a gente sempre tem que ouvir o que a música está pedindo. Desde arranjo, de instrumentação, até que voz mesmo. Dessa vez, queria um cello do Moreno. Ele é um amigo de muito tempo e de diversas vivências no Candomblé, e a Karina é do mesmo terreiro que eu. A música que ela participa, “O chamado de Oxumarê” conta um pouco da história de como fui parar nesse lugar, conta a linhagem da casa. Eu falo que Oxumarê me chama num sonho, é tudo verdade. A Karina é filha de Oxumarê, teve esse sonho sincrônico. Aí fiquei interessada, fui fisgada.
A criação desse show também vem desde 2009? Existem múltiplas Iaras funcionando ao mesmo tempo?
Acho que sim. No caso de Macunaíma, meu primeiro disco solo, isso veio muito forte já no nome. Uma ópera. Eu já pensei no formato para o palco, encarando o disco como uma etapa, mas ao mesmo tempo sem nunca me prender. Eu fiz muita questão de desregionalizar, porque isso também acontece no livro.
Em outros casos, lanço o disco e começo a pensar no show. Agora foi assim, porque foi tudo rápido, meio afobado, os lançamentos muito colados. Agora que fiquei lançando um disco por ano, não sei mais como é viver de outra maneira. Mas é uma loucura, porque não tenho uma gravadora
Ao mesmo tempo, não fiz shows de AfrodisíacA nem de Pra te Abraçar. Inclusive, eu pensei em seguir um conselho de um amigo e fazer uma espécie de ópera erótica com AfrodisíacA, enquanto Pra te Abraçar eu poderia ir para um lado da canção.
Já fiz muitos shows, muitas vezes toquei sozinha mostrando minhas canções, e outras fiz performances muito loucas. E elas foram em lugares com uma puta estrutura, mas também de forma bem minimal.
Tudo tem que estar conversando, como eu pensei na instalação. Gosto de pensar também nesses caminhos das artes visuais, mas me faltam oportunidades. Cinema, por exemplo. Gosto de fazer de tudo, se eu tiver oportunidade, posso fazer.