Jota.pê reflete sobre a vida e a carreira após o Grammy
Vencedor de três prêmios no Grammy Latino no ano passado, o músico relembrou sua trajetória e afirmou o desejo de continuar compondo para o resto da vida

Qual é a sensação de vencer um Grammy? Para muitos que estão fora do meio musical, parece outra realidade, talvez apenas um exercício de imaginação ao inventar um discurso de agradecimento. Para os músicos, representa o máximo reconhecimento, uma espécie de imortalidade, é quase como tocar o céu. O Grammy, por vezes, revela histórias de transformação e mostra como a vida de um artista pode mudar em pouco tempo. No último domingo, essa trajetória foi ilustrada por Doechii, que, em 2020, postou um vídeo anunciando que havia sido demitida de seu último emprego e, por isso, tentaria a sorte na música. Cinco anos depois, foi premiada com o Grammy de Melhor Álbum de Rap.
No Brasil, histórias como essa também acontecem. No ano passado, durante o Grammy Latino — premiação em que o país tem forte presença —, um jovem artista da MPB foi surpreendido ao vencer três prêmios, incluindo o de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira/Música Afro-Portuguesa-Brasileira. O artista em questão é Jota.pê. O álbum premiado, Se Meu Peito Fosse o Mundo, seu segundo trabalho, superou discos de Djavan, Marisa Monte, Elza Soares, Milton Nascimento e Chitãozinho & Xororó. Está longe de ser qualquer coisa. E, apesar do reconhecimento, a carreira artística é sempre marcada por incertezas, e ele tem plena consciência disso. “Beleza, ganhei três Grammys, mas e agora?”, declarou em entrevista à Bravo!
Além desse prêmio, Jota.pê também recebeu os de Melhor Álbum de Engenharia de Gravação e Melhor Canção em Língua Portuguesa, com “Ouro Marrom”.
Nascido e criado em Osasco, São Paulo, o artista de 31 anos chegou a cursar Design Digital e passou por diversas funções antes de se dedicar integralmente à música. Fez bicos e cantou em diversos bares. Durante a adolescência, montou bandas de rock com amigos, tratando a música como um passatempo. Com o tempo, foi descobrindo seu próprio estilo e passou a se dedicar mais intensamente à composição. Em 2015, tomou a decisão definitiva de seguir na música e lançou seu primeiro disco, Crônicas de um Sonhador. No ano seguinte, participou do The Voice Brasil, onde ganhou reconhecimento do júri e do público.
“Meu maior medo era não sobreviver, não conseguir viver de música. Quando fiz o show de lançamento do disco em 21 de novembro de 2015, levantei uns R$ 5 mil só com a venda de ingressos. Era um dinheiro que eu nunca tinha ganho. Pera aí, me disseram que não dava dinheiro, mas em uma noite eu levantei 5 conto.”, relembrou.
Em 2025, o cantor será homenageado no teatro com o musical Quem é Juão?, projeto dramatúrgico de Vivi Moraes. A obra não retrata a vida de Jota.pê, mas dialoga com ela ao contar a história de um jovem que abandona tudo para perseguir seus sonhos. “As músicas do Jota.pê têm essa capacidade de traduzir sentimentos cotidianos de forma poética, e foi isso que busquei na dramaturgia: um olhar íntimo e humano sobre o amadurecimento. Além disso, gosto de brincar com um tom mítico, trazendo elementos que transformam essa jornada em algo quase lendário, como se estivéssemos ouvindo uma história que se conta há séculos, mas que, de alguma forma, continua acontecendo agora”, disse Vivi à Bravo!.
Previsto para o segundo semestre deste ano, o musical reforça o músico como um dos principais nomes da MPB contemporânea. “Ele transforma o cotidiano em algo maior, carregado de significado. Sua música capta o presente, atravessa contextos e, ao mesmo tempo, fala do universal com uma profundidade absurda. Poucos artistas equilibram tão bem o pessoal e o coletivo”, acrescenta Audi Arruda, diretora criativa do musical.
À Bravo!, Jota.pê falou sobre sua trajetória, suas influências e os desafios após o Grammy. Confira o papo.
Bravo!: Como está se sentindo neste momento?
Cansado, mas muito feliz com tudo que aconteceu. E empolgado em compor coisas novas.
Bravo!: Eu estava perguntando aqui, como você prefere ser chamado?
Jota: Pode chamar de Jota, Jota.pê.
Bravo!: Esse é um apelido da infância ou surgiu depois?
Jota: Vem da infância. Meu professor de geografia começou a me chamar assim na quinta série, e aí todo mundo na escola começou a me chamar desse jeito também. Quando vi, já estava tarde demais para pensar em outro nome, aí ficou assim.

Bravo!: Conheço um pouco da sua trajetória a partir do que acompanho na mídia, mas gostaria de ouvir de você. Como você chegou à música?
Jota: A música sempre esteve à minha volta, presente na minha família. Meu avô tocava, minha avó cantava na igreja, meu pai teve banda, meu tio é maestro. Muita gente na família do meu pai tem ligação com a música. Então, nas festas de família sempre tinha muito som rolando e isso me deu vontade de tocar.
Aprendi a tocar violão já morando fora. Com uns 8, 9 anos me mudei para Sobral, no Ceará, depois fui para Fortaleza e foi lá que comecei a tocar. Aí, aos 12, 13 anos, comecei a compor. Depois, voltei para São Paulo e tive várias bandas de rock. Quando decidi trabalhar com música, foi um processo meio que natural, depois de tentar várias outras coisas e não dar certo.
Bravo!: Como foi a reação da sua família quando você decidiu seguir a carreira musical?
Jota: Com exceção do meu tio, nenhuma delas vivia de música. As pessoas na minha família que estavam envolvidas com música não viam isso como profissão, era mais um hobby, uma brincadeira em festa de aniversário. Mas sempre conversei com meus pais sobre isso, e era um misto de incentivo e preocupação. Trabalhar com cultura no Brasil é complicado, então tinham suas dúvidas. Ao mesmo tempo em que me deram meu primeiro violão, me perguntavam se eu tinha certeza de que iria trabalhar com isso. No fim, me incentivaram bastante e, durante os primeiros quatro anos de carreira, eles foram em todos os meus shows. Sem esse apoio, não teria rolado.
Bravo!: Você começou com uma proposta mais autoral desde o início ou foi uma transição gradual?
Jota: Foi mais gradual. Comecei com várias bandas de rock, porque era isso que meus amigos curtiam. Depois montei uma banda com uma amiga da minha irmã, e começamos a compor nossas próprias músicas. Essa banda ensaiava muito, mas não fazia show nenhum (risos). Foi quando decidi focar mais nos meus projetos autorais, que tinham um pouco mais a cara do que eu crio hoje, até que em 2015 lancei o disco “Crônicas de um sonhador” e foi ali que decidi seguir só com música e jogar as coisas para o alto.
–Bravo!: Você costuma citar artistas como Djavan, Maria Bethânia e Adoniran Barbosa como suas referências. Como essas influências surgiram e o que você queria trazer delas para a sua música?
Jota: Eu fui criado em um ambiente musical bem diversificado. Meu pai ouvia MPB no carro, minha mãe ouvia MPB e pagode dos anos 90 em casa, e minha tia gostava muito de Elis Regina, mas me apresentava muitos sambistas. Também ouvi muito rock com meus amigos e, mais tarde, comecei a curtir rap. Então, tudo isso se misturou muito. Acho que no meu primeiro disco fica muito nítido o quanto eu escutava Charlie Brown Jr., e ao longo do tempo, fui descobrindo novas influências, como o forró, que me ajudou a compor músicas como xote (cadência mais lenta e marcada). Mas as minhas primeiras grandes referências são Djavan, Gilberto Gil e Lenine. Sem eles, eu não faria o som que faço hoje. O jeito que penso a música, envolve muito esses três artistas.
Bravo!: E como foi a evolução do seu primeiro disco para o segundo? Você sente que houve um amadurecimento, ou melhor, uma mudança de vontades?
Jota: Sem dúvida. Ao escutar os dois discos, é nítido o quanto eu evoluí como cantor. Em todos os processos, eu evoluí muito. O primeiro disco foi mais um aprendizado, e no processo de produção eu não tinha muita noção de como fazer um disco. Eu deixava os outros decidirem, porque eu pensava que eu não sabia nada, mas com o tempo fui aprendendo o que eu queria para a minha música. A maturidade mudou tudo: de saber o que eu queria e o que não queria. Quando o meu primeiro disco ficou pronto, eu percebi que gostava dele, mas que eu não me via nele. Então passei muito tempo ouvindo músicas, testando coisas diferentes para entender de que jeito eu queria falar. E nesse disco, foi onde eu realmente entendi tudo isso, acho que é uma ótima fotografia de quem sou hoje. Ele representa o que eu quero transmitir musicalmente.
Bravo!: Quanto tempo você dedicou para criar o segundo disco? Como foi o processo?
Jota: Comecei a montar a playlist de referências para o disco há cerca de três anos. Ouvi muitas músicas, fiz anotações sobre o que gostava e o que não gostava e, aos poucos, fui refinando. Eram mais de 200 músicas; então, comecei a ouvi-las e a analisar o que me interessava ou não. Fui reduzindo a quantidade até chegar a uma seleção mais precisa. Quando escolhi o nome do álbum, foi quando comecei a compor.
Bravo!: E o que tinha ali que ficou?
Jota: No final, ficaram três grandes referências: Emicida, Mayra Andrade e Tom Misch. Esses músicos foram fundamentais para a construção do som que o disco tem hoje.
Bravo!: Em 2015, você decidiu lançar o seu trabalho de forma definitiva. O que foi importante para dar esse passo?
Jota: Meu maior medo era não sobreviver, não conseguir viver de música. Quando fiz o show de lançamento do disco em 21 de novembro de 2015, levantei uns R$ 5.000 só com a venda de ingressos. Era um dinheiro que eu nunca tinha ganho. Pera aí, me disseram que não dava dinheiro, mas em uma noite eu levantei R$ 5.000. Fiquei com o dinheiro? Não, gastei pagando a banda e um monte de despesas, mas levantei. Foi então que percebi: “Se eu entender como isso funciona, talvez isso pague minhas contas”. Aí decidi focar exclusivamente na música e largar as outras profissões.
Bravo!: Você também mencionou a rede de apoio, essas conexões. Queria saber mais sobre como a sua família e amigos ajudaram nessa trajetória. O quanto eles foram importantes para você continuar?
Jota: Sem eles, não teria sido possível. Quando comecei a gravar vídeos para o YouTube, eu não tinha uma câmera nem entendia de redes sociais. Um amigo chamado Artur me ajudou, me ensinou sobre algoritmos, os melhores horários para postar, e sugeriu que eu gravasse vídeos toda semana. Falei que não tinha nem um celular legal para isso, e ele me disse: “Eu gravo para você. Vamos lá todo domingo”. Ele organizava tudo: “Traz uma troca de roupa, vamos gravar três vídeos hoje”. E ele me ajudava com a gravação na varanda da casa dele. “Posta domingo às 9 da noite no YouTube e compartilha no Facebook depois”, ele dizia. Fiquei nisso por um tempo.
Depois, entrei para uma escola de dança, uma escola de forró, e o pessoal de lá começou a curtir minhas músicas. Antes das aulas, que começavam mais tarde, eles iam aos meus shows. Eles garantiam o meu couvert, essa galera me sustentou por um tempo.
Outras escolas de dança começaram a me chamar para shows, até mesmo fora de São Paulo. A primeira vez que viajei para Belo Horizonte foi para me apresentar em uma escola de forró que adorava minhas músicas. Sem meus amigos acompanhando e ampliando esse movimento, nada disso teria acontecido.
Bravo!: E você mencionou algo interessante sobre o impacto que a música tem no público. Como você percebe isso ao longo desses anos, desde 2015, e como cria suas músicas pensando no público?
Jota: Eu não costumo compor pensando no que o público vai sentir. Normalmente, componho sobre o que estou sentindo em relação a alguma coisa. Se estou muito feliz, estressado ou apaixonado, escrevo sobre isso da forma mais honesta possível. E a sorte é que as pessoas acabam se identificando, reconhecendo o sentimento. Acho que compor é isso: traduzir sentimentos que as pessoas nem sabem que têm, mas que acabam se conectando de alguma forma. O artista é um pouco disso.
Quando um ouvinte se identifica com o que você expressou, seja por meio da música ou da poesia, ele sente que encontrou uma tradução para o que está vivendo. E essa relação é o que faz as pessoas gostarem da sua música.
Nos momentos mais difíceis, quando você pensa em desistir, ver comentários de pessoas dizendo que suas músicas tocaram elas de alguma forma, é o que dá força para continuar. Tem gente que gosta disso, então talvez dê certo. Eu sempre senti esse apoio, esse incentivo do público. Isso sempre me fez continuar, mesmo nos momentos de dúvida.

Bravo!: Essa insegurança, ela ainda existe?
Jota: Sim, sempre está lá, mas melhorei em muitos aspectos.
Às vezes, com tantos amigos incríveis à minha volta, olho para o lado e penso: “Não é possível que esse gênio, essa garota incrível, esteja viajando e trabalhando comigo. Deve ser dó”, eu brinco. Acho que melhorei bastante minha autoestima em relação ao meu trabalho.
As redes sociais, com seus likes e seguidores, muitas vezes criam uma armadilha. Se os números não são tão bons, você começa a achar que o trabalho também não é, e essa relação é injusta. Demorou muito tempo para eu alcançar os números que tenho hoje, com pessoas compartilhando meu som. Mas, muitas vezes, as músicas que essa galera ama são de 2015.
A relação com as redes sociais é complexa. Mesmo com prêmios e reconhecimento, é fácil cair na comparação e se sentir inferior. Mas, às vezes, bate um medo. Beleza, ganhei três Grammys, mas e agora?
Estou, inclusive, muito feliz por estar tranquilo com essa parte, por saber que vou lançar música para o resto da vida, porque é o que amo fazer. De vez em quando, as músicas serão medianas, e isso faz parte. Não fizemos um disco pensando em ganhar um Grammy, fizemos um disco para gostar dele ao final. Eu faço música desse jeito e, se no fim vierem prêmios, ótimo. Mas esse nunca foi o objetivo.
Bravo!: Você falou sobre o Grammy. Como isso mudou sua visão sobre seu trabalho e suas ambições?
Jota: Foi muito revelador. Resolveu muitas inseguranças que eu tinha. Me mostrou que é possível alcançar certos objetivos. De ver que é possível encostar nessas coisas. Me dá tranquilidade de saber que trabalhar, fazer as músicas do jeito que eu acredito com dedicação, dá resultado. A gente ouve muito que se não tiver um investimento pesado, a coisa não rola. Claro que isso é necessário, o mercado é cruel. Sem a gravadora, eu seria incapaz de fazer esse disco. Mas é bacana saber que é possível, fazendo a coisa com carinho e com tempo, com dedicação.

Bravo!: Você mencionou a criação de um piso salarial para músicos no Brasil. Como você vê isso?
Jota: Acho que essa é uma das maiores dificuldades dos músicos geniais que já conheci: a incerteza sobre a grana. A música não é algo palpável, então é difícil atribuir um valor a ela.
Trabalhamos em um mercado onde, mesmo que eu faça 15 faculdades de música, seja o maior especialista do mundo em violoncelo, o melhor violoncelista do universo, se eu morar no Brasil, isso não significa que vou conseguir pagar minhas contas. Posso ser incrível, mas isso não garante um salário. Na música, o que define isso são os seguidores, os prêmios que você tem. No meio dessas incertezas, muita gente desiste. Não dá para esperar as coisas simplesmente acontecerem.
Bravo!: Você percebe mudanças no cenário musical brasileiro ao longo desses anos?
Jota: A música brasileira está em excelente momento, com novos talentos surgindo o tempo todo. Mesmo com todas as dificuldades que mencionei, tem muitos artistas incríveis surgindo. Luedji [Luna], Liniker, Os Garotin, Melly, Zaynara, Duquesa, tem muita gente genial aparecendo. E é muito gratificante saber que eu faço parte deste cenário de alguma forma. Claro, o mercado ainda é difícil, mas vejo que a música, em si, segue forte.