Os sonhos de Luedji Luna
A cantora fala sobre "Bom Mesmo é Estar Debaixo D'Água", sobre fazer carreira independente e lembrou dos primeiros passos na música
Foi um pensamento intruso que mudou completamente a rota de Luedji Luna, 35. Nascida em Salvador, a cantora, em seus 25 anos, estava na casa dos pais, lavando louça, quando teve uma epifania: “Decidi ser cantora”. Não foi um pequeno desvio no meio do caminho, muito mais um retorno para pegar outra estrada.
Até ali, os planos eram outros, ou melhor, não havia planos. Luedji se formou em Direito, embora tenha achado o curso “um porre” e já sabia desde o início que não iria trabalhar na área. Havia, entretanto, a expectativa dos pais, ambos funcionários públicos, que aguardavam a filha seguir um rumo semelhante.
A decisão não soou muito bem para Adelaide e Orlando, os pais de Luedji. Dois anos depois, ela anunciou o segundo passo do plano: se mudaria para São Paulo. Uma escolha que, curiosamente, trouxe algum alívio aos pais. “Eles preferiram que viesse para São Paulo do que eu ficasse na Bahia. Para eles, Salvador não era uma cidade próspera, não era uma cidade grata com os artistas negros, eles só conheciam histórias tristes”, ela conta.
Nos dez anos que se passaram do momento em que lavava louça, muita coisa aconteceu. Em 2017 lançou o álbum Um Corpo no Mundo, que lhe projetou como um dos nomes mais promissores da música nacional.
Em plena pandemia, lançou o segundo disco Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água, gravado no Quênia ao lado do produtor e guitarrista queniano Kato Change. A experiência foi um mergulho em sua ancestralidade. O álbum, que fala sobre o amor do olhar da mulher negra, mistura estilos neo-soul, R&B e o jazz. Com ele, Luedji repetiu o sucesso do primeiro disco e foi um pouco além, sendo indicada ao Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira.
Um ano se passou, o mundo se desamarrou das restrições da pandemia, mas para Luedji ficou a sensação de que havia mais a ser explorado naquele álbum. Então, em novembro deste ano, apresentou a versão deluxe de Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água, com 10 faixas inéditas, de autoria própria. Para ele, chamou artistas internacionais como a produtora e compositora etíope-estadunidense Mereba e também do MC e produtor norte-americano Oddisee.
Com o filho Dayo Oluwadamisi, de 2 anos, sob seu olhar atento, Luedji bateu um papo com a Bravo sobre sua jornada até chegar na música e falou sobre suas inspirações para novo álbum.
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Luedji, me conta como nasceu sua relação com a música?
A minha trajetória é muito diferente da maioria das pessoas pretas brasileiras. Tive pai e mãe, estudei em colégios particulares e, em determinado momento da vida, tive que decidir o que fazer. Com 17, ao me formar na escola, acabei escolhendo fazer Direito, um curso tradicional.
Eu ainda não me via nesse lugar de cantora e compositora. Embora, fizesse isso desde sempre. Desde criança, escrevia e cantava. A minha brincadeira predileta era cantar e sempre tive essa inteligência criativa, mas eu não me via nesse lugar. A música era algo distante, embora estivesse tão presente. Sendo de Salvador, havia muita sub representação de cantoras negras. Os grandes nomes, as grandes divas eram todas brancas, do axé. Eu não me via possível nesse lugar de cantora.
Houve influência de sua família?
Meu pai e minha mãe têm uma relação forte com a música. Salvador é uma cidade muito musical, a minha casa era muito musical. Mas meu pai, especificamente, tocava, aos finais de semana, numa banda com seus colegas da Petrobras. Eles foram minha grande escola de música. Embora eu não tenha sido incentivada a seguir uma carreira artística, atribuo muito a minha musicalidade e referências a tudo que os meus pais ouviam. E essas experiências, aos finais de semana, em Feira de Santana, que se chamava Raciocínio Lento, que tocava música autoral, MPB, e tudo mais.
Como foi a sua entrada formal para a música enquanto profissão?
Fui fazer meu curso de Direito, negando a música até o fim. Mas aí com 25 anos, decidi, do nada, lavando os pratos na cozinha, na casa dos meus pais, que ia fazer música. Tive uma epifania. Decidi ser cantora. No dia seguinte, me matriculei na escola de canto da professora Ana Paula Albuquerque, em Salvador, que era a professora da UFBA (Universidade Federal da Bahia), e abriu uma escola particular de canto. Além de ensinar técnica, ela possibilitava a experiência de palco. Eu cantei em palcos tradicionais da cidade com músicos profissionais. Então foi uma escola que me proporcionou essa experiência e foi a partir dela que percebi que aquilo era o que eu queria fazer para minha vida.
“Isso que fiz foi uma maluquice. Você investe a vida toda no seu filho, a pessoa faz uma faculdade de Direito, que tem várias oportunidades de trabalho, funcionalismo público que era o que eles conheciam, para ser artista? Eles não conhecem nenhum artista bem sucedido baiano. Estavam todos no ostracismo ou lutando para sobreviver. Quem que vai querer isso pro filho?”
Luedji Luna
E o que fez a partir disso?
Fui tomando coragem de contar para os meus pais, mas aí com 27 anos, dois anos depois, decidi vir para São Paulo cantar. Vim com a mala de mão e o violão. Na época não sabia que tinha parente aqui, não sabia nada, não conhecia ninguém.
E vim fazer músicas, viver de músicas. Eu tive experiências ótimas em São Paulo que me deram feedback muito bom. Conheci o Maurício Tagliari, da YB Music, que era o maior selo de música alternativa e independente no Brasil. O primeiro disco que lancei foi através desse selo. Vim para São Paulo e cá estou, no terceiro disco lançado.
Qual foi a resposta que você teve quando contou aos seus pais que queria seguir a carreira de artista?
Não reagiram bem. Continuaram me apoiando, mas não acenderam fogos. Isso que fiz foi uma maluquice. Você investe a vida toda no seu filho, a pessoa faz uma faculdade de Direito, que tem várias oportunidades de trabalho, funcionalismo público que era o que eles conheciam, para ser artista? Eles não conhecem nenhum artista bem sucedido baiano. Estavam todos no ostracismo ou lutando para sobreviver. Quem que vai querer isso pro filho? E eu não julgo, sou muito pouco romântica. Depois que virei mãe, entendi que os pais têm seus limites. É uma grande falácia que pais têm que aceitar tudo. Eles têm expectativas, sonhos, investimentos como todo ser humano.
Você acha que seria tomado outra decisão se fosse hoje, sendo mãe?
Eu vou adorar se meu filho se tornar médico. Mas comigo, já não tem mais jeito. A gente é o que é. Eu poderia ter escolhido outra coisa, mas não seria feliz ou não me sentiria capaz. Mas se eu fosse escolher algo para o meu filho, eu diria ‘Ah, meu filho, já chega de artista nessa casa. Vai fazer outra coisa’.
Aterrizando em 2022, o que te levou a retomar o álbum Bom mesmo é estar debaixo d’água? Havia a impressão de não ter esgotado o tema do primeiro disco?
Sim, eu não esgotei o tema. Muitas músicas que poderiam ter entrado no primeiro álbum ficaram de fora. E é um tema muito profundo, cheio de camadas. Foi nesse sentido que nasce a ideia de fazer o deluxe. Como ele foi produzido e lançado na pandemia, num momento tão crítico, senti que o primeiro lado do disco não nasceu de fato, então quis prolongar essa história.
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Sua música tem esse diálogo forte com a música negra estadunidense. Esse álbum em especial…
Os meus pais ouviam muito Djavan e Luiz Melodia, artistas negros que beberam da música norte-americana. E em casa a gente ouvia muito Jazz, muito reggae. Meu pai é rasta até hoje, meu tio tinha uma banda de reggae. Por isso, a minha música tem um baixo muito presente. O sopro está sempre ali. Acho que essa foi a minha escola.
Você compõe suas canções e disse que escreve desde muito pequena. Sobre o que você gosta de escrever?
Ultimamente, estou mergulhada nesse disco, então não ando escrevendo nada. Muitas das canções que estão nesse deluxe são de quando eu era adolescente. Eu me debruçava muito sobre o amor platônico, sobre o desejo que poderia se concretizar ou não, sobre a solidão. Isso era muito presente naquele período.
Quando eu vim para São Paulo, a minha escrita se voltou muito para o meu olhar sobre a cidade. Foi São Paulo que me deu um corpo no mundo, foi São Paulo que me trouxe a reflexão sobre o que é ser um corpo negro na diáspora. Então tem muitas canções sobre sonho, sobre a angústia de estar na cidade e querer fazer música. Tem temas que não necessariamente aconteceram comigo, mas que me atravessam, como o genocídio da juventude negra.
A escrita para você tem um potencial de cura, de se rever e se conhecer?
Essas músicas já estavam escritas, estavam num caderno antigo, então não precisei examinar a fundo esse passado para escrever, mas me forçou, sim, a olhar com mais generosidade para ele. Estou num momento da vida em que me sinto plena no amor, construí uma família, tenho um marido incrível. E pensei: ‘Nossa, o quanto eu caminhei, o quanto eu errei, o quanto eu acertei, o quanto eu amei e desamei, o quanto me machuquei, quantos buracos me enfiei, quantos buracos eu saí e renasci para estar nesse momento agora.’ Acho que as canções desse disco me trazem essa reflexão.
“Ultimamente, estou mergulhada nesse disco, então não ando escrevendo nada. Muitas das canções que estão nesse deluxe são de quando eu era adolescente. Eu me debruçava muito sobre o amor platônico, sobre o desejo que poderia se concretizar ou não, sobre a solidão. Isso era muito presente naquele período”
Luedji Luna
Recentemente, você disse em uma entrevista que estaria disposta a se tornar um pouco mais pop se houvesse mais investimentos na sua música. Seria mesmo o caso?
Eu acho esse meu último disco mais pop, mas eu não faria o pop convencional, o estilo pop. Quando eu falo pop, quero dizer no sentido de alcançar mais pessoas, não necessariamente entrar no gênero pop. Isso eu não faria. Esse disco, por exemplo, traz elementos mais eletrônicos e flerta mais com o R&B, um gênero mais universal. Por isso, considero mais pop do que os outros.
Como é ser artista independente no Brasil?
Cansativo. Nós não temos recursos necessários para abarcar o sonho que temos. Então é um enorme quebra-cabeça conseguir recurso para fazer clipes, lançar álbum, fazer toda a produção. Se eu tivesse uma estrutura, não precisa ser uma gravadora, mas capital para poder entregar tudo que a gente entrega, mas com mais facilidade e menos dor de cabeça, seria ótimo. Mas ainda estou nesse processo de me virar com o recurso que conseguimos, que às vezes tiramos do próprio bolso, dos shows. Tiro do meu caixa para cobrir o que falta, para cobrir o meu sonho. Afinal de contas, é sobre isso: bancar o sonho.
Você tem o costume de pensar em toda a composição do álbum, de todos os nomes que irão integrar. Se tornar mais pop implicaria perder um pouco da sua autonomia criativa?
Ah não, eu só quero dinheiro e a fama do pop [risos]. Eu sei muito bem o que quero. Então, a escolha de todos os produtores, de quem ia fazer os remixes foi minha. Eu faço questão de ter completa autonomia nesse processo criativo, afinal de contas eu faço parte do processo desde o início, desde quando a música era só uma ideia. Para mim, é muito fácil saber como eu quero que a música nasça. Roteiro de clipe, de vídeo, sou eu que faço. É um processo muito íntimo, então é natural que eu me envolva em tudo.
Você acha que o mercado musical brasileiro é ainda muito restrito à soul music, ao jazz, à música negra em geral? Gêneros com os quais a sua música se conecta.
Que mercado musical brasileiro hoje? Está tudo solto na plataforma do ar, como diz Luiz Melodia. Por exemplo, o rap foi um movimento que nasceu nos Estados Unidos, se consolidou no Brasil, e ele parte de um movimento com caráter social e de protesto, muito ligado à consciência de raça etc. Então, os anos vão passando e esse rap foi se ressignificando. A gente já fala de amor, de cotidiano, de sonhos. O rap já não fica mais no lugar de realidade nua e crua do que é ser uma pessoa pobre e preta no Brasil. A gente vai para uma fase mais ostentação e começa a importar outros estilos.
A MPB também foi se modificando. A canção tinha uma importância muito grande nessa poesia cantada. As cantoras sempre super afinadas, super técnicas e super intérpretes. Os músicos sempre excelentes, os instrumentos eram mais eruditos. O violão era muito presente na MPB. Hoje em dia, vários artistas dessa nova MPB já fazem outra MPB, sem o eruditismo, sem ser o que era antes.
A música é sinérgica, ela se transforma o tempo todo e, consequentemente, o mercado também muda. Percebo hoje o mercado mais rico e tem muito mais coisas para ouvir. Só uma coisa que não muda nesses anos todos que é o racismo estrutural, que atravessa todas as tomadas da sociedade e consequentemente a cultura.
Mesmo sendo impossível e impensável há alguns anos ver tantos corpos dissidentes, uma cantora branca, que surge há menos tempo, desponta, tem mais sucesso e dinheiro do que uma cantora negra. Isso mesmo em um cenário em que houve uma mudança de paradigmas no mercado.
Você acha que esses outros gêneros, a sua música, seriam mais populares não fosse o racismo estrutural?
Não sei dizer. Hoje em dia temos as redes sociais e plataformas de internet. As pessoas fazem muitas músicas para internet. Estamos numa dinâmica de singles e não mais de álbuns robustos. A preocupação não é mais tão técnica e o jazz e esses outros gêneros pedem um aprofundamento, um estudo, uma técnica, que não precisa ter se você está fazendo uma música para botar no Tik Tok, que é o que faz sucesso hoje em dia. E está tudo bem, uma hora passa. A música é sinérgica e o mercado vai se adaptando também. Eu só posso fazer o que eu sei fazer.
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