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20 anos sem o Maestro do Canão

Assassinado no início de uma manhã de janeiro em São Paulo, o rapper Sabotage permanece vivo e influente no cenário nacional

Por Artur Tavares
Atualizado em 31 jan 2023, 18h41 - Publicado em 26 jan 2023, 13h30
retrato Sabotage
 (Gustavo Nascimento e Laís Brevilheri/Bravo)
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No dia 24 de janeiro de 2003 morria o rapper Sabotage. Em franca ascensão após lançar seu primeiro álbum solo, Rap é Compromisso, era considerado o melhor da geração que inaugurava o século 21. Pouco antes, havia terminado de gravar as cenas de seu segundo filme, Carandiru, dirigido por Héctor Babenco, e naquela mesma semana por alguns estúdios de amigos para registrar vocais de músicas novas. Na sexta-feira, aos 29 anos, Mauro Mateus dos Santos levava sua esposa para o trabalho quando, às 5h50 da manhã, foi baleado em frente ao seu carro.

Nascido e criado na favela do Canão, na Zona Sul paulistana, Sabotage se envolveu com o crime muito jovem, chegando a ser chefe de boca de tráfico. Rápido com as palavras e dono de um ouvido apurado para a música, encontrou no rap uma maneira de levar uma vida diferente. Seu talento indiscutível garantiu-lhe uma saída segura da criminalidade, mas velhos inimigos nunca ficam para trás.

Rapper Sabotage –Mauro Mateus dos Santos, 2002

Embora cantasse rap desde a primeira explosão do gênero em São Paulo, no final dos anos 1980, só tornou-se figurinha carimbada na cena uma década depois. Primeiro, foi abraçado por Sandrão, Helião e DJ Cia como integrante do grupo RZO, e depois ganhou a oportunidade de lançar seu disco de estreia pela Cosa Nostra, a produtora dos Racionais MCs.

“Sabotage foi um meteoro. Aconteceu tudo muito rápido”, conta o produtor musical Daniel Ganjaman, que esteve envolvido intimamente com o rapper e toda a cena paulistana na virada para os anos 2000. “O RZO tinha uma escola de novos talentos, uma coisa meio Wu-Tang Clan, de trazer pessoas novas, agregar e aquilo se tornar uma posse gigantesca, e também um pouco Motown, de preparar todo mundo com a roupa, o jeito de se portar, a rima.”

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“Um bom lugar
se constrói com humildade, é bom lembrar”

No rap, chamam-se posses as reuniões de amigos que movimentam rodas de rimas e beats. Vai além da música, torna-se rede de apoio e zona de conforto e proteção. Quando Sabotage passou pelo RZO, conviveu com Negra Li e Dina Di, duas mulheres pioneiras no estilo musical, e também com integrantes dos grupos DBS e Função RHK.

Naquela época, os grupos de rap e os artistas em geral não se davam bem com a mídia. Demoraria para que Mano Brown estampasse a capa de uma revista de grande circulação, a Rolling Stone, em 2008, ou que Marcelo D2 aparecesse em sua persona paizão em A Procura da Batida Perfeita. Não havia Criolo para pedir amor em SP, nem Emicida para nos ensinar através dos exemplos da educação. E mesmo assim Sabotage, preto retinto de tranças nos cabelos, de físico extremamente magro, e sem muitos dentes na boca, era aplaudido nos palcos, nas salas de cinema, nas entrevistas e nas aparições que fazia.

“Sabotage tinha uma característica muito importante para um artista, ele sempre chamava a atenção. Poderia estar num boteco ou em uma agência de publicidade, numa produtora de cinema, no camarim ou no rolê. Era sempre o cara que ficava todo mundo em volta admirando o quanto era engraçado e gente fina. Ele tinha um fluxo, uma coisa que o credenciava para estar em qualquer lugar”, diz Ganjaman.

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“Sabotage tinha um caderninho, uma guia das rimas que usaria nas músicas. Era muito impressionante, porque ele nunca gravava duas vezes do mesmo jeito. Sempre que pedia para voltar, vinha com algo diferente”

Daniel Ganjaman
Ganjaman
(Alexandre Gennari/divulgação)

Daniel Ganjaman assina a produção de oito músicas de Rap é Compromisso junto com Zegon, hoje no comando dos Tropikillaz, entre elas a canção que dá título ao disco, “No Brooklin”, “Respeito é pra Quem Tem”, “Cantando pro Santo”, e “Um Bom Lugar”. Estas últimas duas com participações de Chorão e Black Alien, respectivamente.

Ganjaman acompanhou de perto toda a trajetória musical de Sabotage, tendo sido, inclusive, uma das últimas pessoas a se encontrar com o rapper antes do assassinato. Treze anos depois da morte, em 2016, produziu com Tejo Damasceno um disco póstumo grandioso com onze faixas inéditas, todas com participações especiais: “Sabotage tinha um caderninho, uma guia das rimas que usaria nas músicas. Era muito impressionante, porque ele nunca gravava duas vezes do mesmo jeito. Sempre que pedia para voltar, vinha com algo diferente.”

“No Brooklin lhe lembrei sim
Foram várias leis, mil veneno,
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sofrimento passado ali dentro
Por ali tudo mudou, mas eu não posso moscar
O que é aquilo? Lá vem tiro, é os pilantra, se pá”

Na ocasião do lançamento, o disco Rap é Compromisso vendeu quase 2 milhões de cópias. Em 2001, Sabotage entrou de cabeça no projeto do filme O Invasor, de Beto Brant. Foi um sucesso que levou o rapper do top 10 da parada do Disk MTV para o Altas Horas, na Globo.

“O carisma foi fundamental para a carreira de Sabotage no cinema. Seu papel em O Invasor vai muito além da trilha sonora ou de sua participação. Ele praticamente reescreveu todas as falas do Anísio, o traficante protagonizado pelo Paulo Miklos, lembra Ganjaman. “Quando fui assistir ao filme, foi uma loucura ver o Paulo falar da mesma forma que o Sabotage. Era ele ali falando, o olhar, o bico. Além das falas, acabou ensinando os trejeitos também. O Sabotage foi muito disruptivo nesse sentido, transgressor. Ele foi para as cabeças.”

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Em 2002 continuou lançando músicas inéditas. Seu segundo disco, Uma Luz Que Nunca Irá se Apagar tem participações de BNegão, Sepultura, Z’África Brasil, RZO e Instituto – grupo de Ganjaman com Tejo Damasceno e Rica Amabis. Sua foto de capa vinha acompanhada de uma mensagem profética: “Podem matar o homem, mas nunca sua ideologia.” Entre a correria com as apresentações e as filmagens de Carandiru, Sabotage ainda encontrava tempo para passar na casa dos amigos e dos produtores musicais com quem trabalhava para deixar uma gravação sempre que surgisse uma nova ideia ou rima em sua mente.

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“Teve uma entrevista que o Ice Blue disse que ‘o Sabotage é nosso infiltrado no meio dos boys’. Era engraçado ver como estávamos acostumados com esse rolê dele no cinema, trazendo participações com outros artistas, como Sepultura. E ele estava disposto a trabalhar, fazer coisas diferentes. Era um cara que ouvia música muito diversa, não tinha preconceito com nada. Isso é muito evidente quando ele faz samba, como em ‘Cabeça de Nego’ e ‘Dona Tereza’. Ele criou um negócio, não era um rap com samba, e sim uma coisa só. Não tem nome. É um dos MCs mais habilidosos que já vi na vida”, lembra Ganjaman.

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O rapper sempre deixou seu passado claro em entrevistas, inclusive o fato de que foram outros integrantes do crime que o incentivaram primeiro a buscar a vida no rap. Também nunca escondeu o fato de que havia muitas inimizades no caminho. Por isso, sua rotina cotidiana consistia em acompanhar diariamente sua esposa ao trabalho logo nas primeiras horas da manhã.

“Ele nunca tinha escondido a história de nós, mas contava do jeito dele. ‘O bagulho tá louco, pá, não sei o quê. Os caras ficam de olho em mim, mano, ficam na minha cola. Querem me ver no veneno.’ Quando ele foi assassinado, sofri um trauma muito grande, mas que trouxe também uma forma de eu conseguir dimensionar o que aquilo tudo significava. Comecei a compreender melhor porque ele estava agindo daquele jeito, porque tinha uma urgência tão grande, porque havia uma preocupação com a família”, conta Ganjaman.

“Canão foi tão bom, poder falar pro Dom
Que aprendi com o Jão como obter mais alegria
Cara, sempre informação, sangue puro e bom
Pras drogas basta um simples não, o dom da opinião”

Nos vinte anos desde a morte de Sabotage, o culto sobre sua vida e obra nunca diminuiu, pelo contrário. Até hoje sua habilidade com as construções em triplet flow é invejada e perseguida pelas novas gerações de MCs. Graças a sua incansável correria, ele também garantiu um legado de músicas inéditas exploradas em 2016 com o lançamento do álbum póstumo Sabotage.

Ganjaman e Tejo haviam seguido em frente com outros projetos desde a morte do rapper, mas haviam retornado com o Instituto, então surgiu uma ideia: “Quando Tejo foi procurar o que havia sido perdido, que tipo de material o Sabotage tinha guardado e quem nem sabíamos, entendemos também que onde ele passava, deixava uma voz, uma ideia, uma letra. Tinha muito a ver com essa história, com esse perigo iminente, a sensação de que alguma coisa poderia acontecer e ele não estaria mais aqui.”

Ganjaman
(Alexandre Gennari/divulgação)

Sabotage gravou em jungle, samba e heavy metal. Estava muito disposto em experimentar novas estéticas musicais. Quando pegamos um acapella dele e damos nas mãos do Tropkillaz e eles fazem trap, é muito louco, porque ele está rimando já com uma levada antes daquilo de fato se popularizar, ou quase existir”

Daniel Ganjaman

O material encontrado foi suficiente para gravar um álbum de onze faixas, todas elas com participações especiais: “Em 2016, quisemos explorar como ele era à frente do tempo. Sabotage gravou em jungle, samba e heavy metal. Estava muito disposto em experimentar novas estéticas musicais. Quando pegamos um acapella dele e damos nas mãos do Tropkillaz e eles fazem trap, é muito louco, porque ele está rimando já com uma levada antes daquilo de fato se popularizar, ou quase existir”, afirma Ganjaman.

Em 2022, o Instituto voltou a olhar para as gravações de Sabotage. No disco Originals Demo (2002), Ganjaman e Tejo apresentam novas roupagens para quatro músicas do rapper, “Quem Viver Verá”, “Mosquito”, “País da Fome” e “Canão Foi Tão Bom”, além de versões instrumentais dos sons. “Chega a ser não só impressionante, mas também incompreensível, como ele estava apresentando aquilo na época. Ele era muito fora da curva, e o fato de ele ser esse cara abre espaço para exploração das acapellas dele de forma muito diversa, o trabalho dele pode servir de matéria-prima para muita coisa”, conclui Ganjaman.

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