15 anos sem Pina Bausch e um longo futuro para Tanztheater Wuppertal
Bravo! entrevistou Boris Charmatz, o novo diretor artístico da Tanztheater Wuppertal fundada por Pina Bausch há mais de 50 anos
Era junho de 2009, às vésperas de uma nova temporada de dança promovida pelo Teatro Alfa. A companhia da bailarina e coreógrafa alemã Pina Bausch, Tanztheater Wuppertal, havia sido anunciada como parte da programação. Desde que ela se tornou conhecida internacionalmente, criou-se um grande entusiasmo em volta de Pina Bausch, especialmente entre os artistas brasileiros, não apenas da dança, mas também do teatro, das artes plásticas, da música e do cinema. Pina Bausch comovia a todos com muita facilidade.
Para a coreógrafa, o Brasil também ocupava um lugar especial. Ela criou “Água”, em 2001, como uma homenagem ao nosso país. Quando veio para cá, mergulhar na cultura, buscando inspiração para criar o balé, teve ao seu lado outra lenda, Caetano Veloso. Havia admiração mútua. Na época, a brasileira Regina Advento integrava o elenco da companhia.
Pina e Tanztheater Wuppertal já haviam passado pelo Brasil em suas turnês. Mas um novo anúncio de sua vinda ao país gerava burburinho e disputas, e os ingressos em pouco tempo se esgotavam. Só que no fim de junho de 2009, uma notícia chocou artistas do mundo inteiro: Pina havia falecido, apenas cinco dias após ser diagnosticada com câncer no pulmão. Em luto ainda em processo, a companhia enfrentava incertezas sobre seu futuro. Mas mantiveram seu compromisso e vieram ao Brasil dançar duas das mais importantes peças de seu repertório: “Café Müller” e “O Rito da Primavera”, uma releitura do balé homônimo coreografado por Vaslav Nijinsky em 1913.
Ao fim das apresentações, com mais de 20 dançarinos em cena, houve um momento de grande cumplicidade entre a plateia sensibilizada e os bailarinos, que processavam a perda de sua líder. O que estaria por vir?
A história continuou. Alguns dançarinos abandonaram a companhia, outros decidiram permanecer. O grupo teve diferentes diretores, que buscaram manter o legado e reputação da companhia. Vieram Dominique Mercy, Robert Sturm, Lutz Förster – três veteranos da companhia –, Adolphe Binder e Bettina Wagner-Bergelt, no que parecia ser uma crise sucessória sem fim. Até que em 2022 foi anunciado um novo diretor artístico, um francês, dançarino e coreógrafo, assim como Pina. Restava a Boris Charmatz recuperar a emoção, a intensidade e o furor criativo. De início, quando foi convidado para assumir a direção artística do grupo, pensou que essa se tratava de uma missão irrealizável, mas logo foi conquistado pelos integrantes. Para o bailarino, tornou-se claro que o desafio não estava apenas em olhar para o passado e preservar a memória de Pina, mas também em se emancipar do luto, ainda que o horizonte continue nebuloso.
No entanto, 2024 segue sendo promissor para a companhia. Em junho, Tanztheater Wuppertal retorna ao Festival D’Avignon, com três novos projetos: “Forever”, “Liberté Cathédrale” e “Cercles”. E estão com uma temporada cheia até o segundo semestre deste ano, que inclui obras recriadas de Boris, como “Liberté Cathédrale”, “Aatt enen tiononBoris” e “Herses, Duo”. O novo diretor irá acompanhar também a criação de outro grande empreendimento, o Centro Pina Bausch, que deve ser inaugurado em 2026, espaço que será sede da companhia, mas também um lugar de ensaios, apresentações, workshops e, claro, de memória. E irá abrigar a Fundação Pina Bausch.
Boris mantém sua estrutura na França, Terrain. Não se trata exatamente de uma companhia, mas de um núcleo independente, que realiza projetos pontuais e tem como conceito a criação de espaços públicos e abertos. Algo que ele deseja introduzir na companhia alemã.
São 15 anos desde a morte de Pina Bausch e 51 desde que criou Tanztheater Wuppertal. Nesse tempo, criou mais 50 peças. Nascida em 1940, Pina iniciou cedo seus estudos em dança clássica. Nos anos de 1950, continuou sua formação na Folkwang School em Essen, onde teve contato com um professor e coreógrafo do expressionismo alemão, Kurt Jooss, que iluminou e foi grande influência para o estilo que ela criaria nas próximas décadas. Nos anos seguintes, ela atravessou o mundo para se aperfeiçoar na ilustre Juilliard School.
Nos EUA, teve tempo ainda de integrar o New American Ballet e o Metropolitan Opera House Ballet. De volta à Alemanha, foi contratada para ser coreógrafa da companhia teatral Wuppertaler Bühnen, em Wuppertal, uma cidade industrial ao oeste. Foi ali que ela criou sua própria linguagem, mesclando diversos gêneros artísticos, especialmente a dança-teatro. Foi assim que nasceu Tanztheater Wuppertal em 1973, uma dança que olhava com mais curiosidade para a realidade, inclusive para aquela que girava em torno da intimidade de seus bailarinos. Em seus ensaios, ela fazia centenas de perguntas pessoais para cada um, que tinha, por sua vez, a responsabilidade de responder por meio de movimentos.
A companhia também se destacou por abraçar corpos mais maduros, acolhendo a experiência, muito além do virtuosismo.
Bravo! conversou com o novo diretor artístico, Boris Charmatz, sobre sua gestão e seus desejos para os rumos da companhia.
Bravo!: Poderia começar contando um pouco sobre você e sua ligação com o Tanztheater Wuppertal?
Boris Charmatz: Comecei a dançar aos sete anos, então foi uma jornada longa. Hoje tenho 51 anos, a mesma idade da companhia. Acho isso curioso.
É incrível ainda estar dançando após quarenta anos. E, é ainda mais surpreendente que a companhia continue forte após o falecimento de Pina. É algo em que frequentemente refletimos. Há uma magia nisso tudo – Pina se foi, mas a companhia perseverou. Todos estão aqui: o público, os críticos, os dançarinos, tanto os antigos quanto os novos. Admiro essa resiliência. Havia energia suficiente para a companhia continuar.
Sou natural de uma pequena cidade nos Alpes franceses. Minha família sempre teve forte envolvimento com a cultura; não apenas a dança, mas também a música, o teatro, a política, a literatura e o cinema.
Desde jovem, tive a sorte de encontrar um professor de dança extraordinário. Às vezes, você encontra alguém que acredita em você e isso o impulsiona. No meu caso, foi um professor de balé que eu admirava muito. Decidi seguir seus passos. Ele era do balé da Ópera de Paris, então fui estudar lá aos 12 ou 13 anos. A cultura de minha família era muito vanguardista, o que gerou um conflito entre a educação no balé e as ideias vanguardistas deles.
Por isso, deixei Paris rumo a Praga, buscando criar a vida que desejava através da dança. Vi “Nelken” e a peça “Macbeth” de Pina Bausch aos 18 anos. Levei mais de 20 anos para voltar a Wuppertal. Foi uma jornada lenta. Amava essas peças, mas na época queria criar o meu próprio trabalho. Pensava que, se fosse para Wuppertal, seria apenas mais um na companhia, talvez nem fosse escolhido. Assim, decidi permanecer na França e trabalhar lá. Eventualmente, cheguei a Wuppertal.
Você teve a oportunidade de conhecer Pina Bausch?
Infelizmente, não. Estou cercado por pessoas que trabalharam com ela por 20, 30, 40 anos, às vezes. É incrível. Houve diferentes diretores na companhia, pessoas que estavam no cerne do grupo quando ela estava lá. Depois, houve mais dois diretores. Eles buscavam um coreógrafo e alguém de fora para colaborar.
Não estou sozinho. Há um ecossistema incrível lá, mas ter um olhar externo é importante. Acho que é parte do motivo de eu ter sido escolhido. Tenho, é claro, minhas próprias conexões com Pina, assim como todos têm. Pessoas do mundo inteiro são tocadas por seu trabalho. Dançarinos ainda sonham em trabalhar na companhia. Mas nunca a conheci.
Como têm sido esses primeiros anos como diretor artístico?
Sinto que é apenas o começo. Apesar de meu nome estar associado há dois anos e meio [à direção artística], meu contrato começou a valer apenas há um ano. Esta é a primeira temporada em que fiz a programação.
A companhia tem 50 anos, então, depois de apenas um ano de programação, ainda não se pode afirmar: ‘Ah, sei exatamente o que fazer’. Claro, neste primeiro ano, trabalhamos bastante, criamos a peça “Liberté Cathédrale” e recriamos “Nelken”. No verão, iremos ao Festival d’Avignon com três projetos diferentes.
É um ano incrível de criações, mas vejo isso apenas como o primeiro passo. Estou pensando a longo prazo. Uma coisa importante para mim é que quero ser uma ponte franco-alemã. Portanto, continuo trabalhando com dançarinos e estruturas no norte da França. Pina é muito importante na França. O segundo teatro da companhia fica em Paris. Portanto, acho muito importante que eu, sendo francês, esteja trabalhando em Wuppertal. Ela era alemã, mas foi acolhida e reconhecida na França primeiro. Portanto, quero continuar essa cooperação entre os dois países.
Há algo muito especial sobre a companhia ser global, no sentido de que vocês não apenas viajam muito, mas também têm pessoas de todo o mundo trabalhando ali.
É impressionante, pois essa característica da companhia existe desde o início. Posso dizer que o cenário da dança, hoje, é internacional, mas essa companhia começou há muito tempo com uma enorme diversidade. Ela queria uma companhia diversificada. Claro, isso ainda é importante; que nossa companhia esteja alinhada com o mundo atual, em termos de gênero, orientação sexual e muitas outras coisas.
Teve tempo para adaptar seu processo criativo à companhia? Você está trabalhando com pessoas que dançaram com Pina por muito tempo.
A adaptação está acontecendo gradualmente. Estamos aprendendo enquanto fazemos. “Liberté Cathédrale” e “Aatt enen tionon” são as primeiras peças que realizamos. É um desafio, mas também é algo muito empolgante. Ontem foi a estreia de “Sweet Mambo”, onde os dançarinos mais experientes da companhia se apresentam brilhantemente. Muitos deles têm mais de 60 anos. Somos uma companhia híbrida, com duas cabeças. Pina está muito viva; ela é o presente e o nosso futuro, não apenas o nosso passado.
A companhia tem uma forte conexão com a memória de Pina Bausch, mas não se limita a isso. Que direção você vê o grupo tomando no futuro?
Vim aqui para criar novas peças. Realizamos novos projetos, mas também estou aqui para abrir janelas e trazer ar fresco. A companhia é conhecida por apresentar obras-primas em óperas e grandes teatros. Mas a primeira coisa que fiz foi trabalhar nas ruas de Wuppertal, no metrô, com 200 amadores e o ensemble. É uma tarefa dupla, mas eu gosto. É uma mistura de passado, presente e futuro. Acabamos de realizar “Aatt enen tionon”, um trio de peças que levamos ao Brasil muitos anos atrás, acho que foi há 20 anos. É uma composição que foi apresentada 80 vezes em toda parte: Coreia, Japão, Brasil, Canadá e Europa, é claro. E que agora é apresentada pelos dançarinos de Wuppertal.
Claro que estou aqui para fazer novas obras, mas algumas outras serão novas versões das peças de Pina Bausch. Acredito que fazer novos projetos é muito bom para continuar apresentando os antigos. Isso mantém os dançarinos em estado de improvisação, invenção, olhando para frente. Não somos um museu. Estamos super vivos, e acho que estamos no caminho certo.
Como vocês trabalham peças de repertório da companhia?
Depende de quem está no comando. Cada um tem seu jeito de criar, de pensar e vislumbrar a peça. Não existe apenas uma maneira de fazê-lo. Neste ano, temos diretores antigos, que já apresentaram “Nelken” centenas de vezes, mas são novos no papel de colocá-lo de volta no palco na direção. E fazemos “Viktor” com Héléna Pikon e Julie Shanahan, que são diretoras antigas.
Fazemos até um terceiro projeto para o Festival d’Avignon chamado “Forever”, uma imersão em “Café Müller”, de Pina Bausch. Este é um projeto muito diferente, onde apresentamos “Café Müller” diversas vezes. Apresentamos seis vezes durante o dia. É uma peça de sete horas de duração. Muitos dançarinos diferentes, velhos e jovens, estão dançando os mesmos papéis. A plateia está muito próxima. É mais como um trabalho de estúdio. Então são três maneiras muito diferentes de trabalhar na peça.
Mas é claro, temos muito material, não começamos do zero, temos muitos vídeos, temos anotações de Pina. Após resgatar todos esses materiais, começamos a trabalhar. Temos muitos ex-dançarinos que conhecem a peça, que podem vir e ensinar seus papéis. Mailou Airado vem para ensinar ou ajudar a trabalhar. Dominique Mercy está lá para ensinar, etc. Alguns dançarinos morreram, mas ainda há vários deles muito ativos e ainda liderando Wuppertal. Então é realmente um ecossistema muito forte em torno dessas peças. Não estou sozinho nessa. Estou cercado por pessoas que dedicaram suas vidas a isso.
Como é o seu processo criativo? Se puder nos contar um pouco sobre essas duas produções.
“Club Amour” é um programa triplo, com “Café Müller”, “Aatt enen tionon” e um dueto chamado “herse, duo”. Então é uma noite em três partes, mas nenhuma peça é nova e elas nunca foram apresentadas juntas. Mostra também a história e a complexidade do meu trabalho e do trabalho de Pina em torno do desejo, da saudade e do amor. É uma noite muito emocionante.
“Liberté Cathédrale” foi a primeira criação que fiz para o grupo e para os dançarinos do Terrain, a minha estrutura. Ensaiamos e criamos a peça numa igreja em Wuppertal. Isso teve uma influência forte em como trabalhamos porque criamos com música de órgão, com sinos tocando. Há uma partitura de sinos de 33 minutos. Algumas pessoas adoram, outras não suportam. É quase uma festa de techno com sinos, sinos de toda a Europa. Foi uma pesquisa que fizemos juntos.
Eu tinha algumas ideias, mas os dançarinos tiveram que trazer sua própria carne, sua própria maneira de fazer, e isso é o que me interessa. Tenho uma estrutura, tenho uma direção, mas como fazer isso? Mesmo que sejamos um grande grupo, cada dançarino está encontrando sua própria maneira de incorporar e de desenhar seus movimentos. Por um lado, é minha coreografia, mas eles têm seus próprios caminhos, sua própria maneira de olhar nos olhos da plateia, de se aproximar, de entregar um poema ou uma música.
Sinto que a companhia quase se assemelha a um time de futebol, com as pessoas de Wuppertal muito orgulhosas de sediarem o grupo. Poderia compartilhar um pouco sobre essa relação com a cidade?
É uma analogia excelente. Na Alemanha, o futebol é importante, assim como no Brasil, claro. Há uma forte identidade com a companhia [em Wuppertal]. Eles amam Pina Bausch e têm uma grande paixão pela dança. Por muitos anos, assistiram às peças de Pina.
Agora estamos realizando um novo projeto, justamente em um campo de futebol. Estamos dançando no campo com 200 pessoas, profissionais e estudantes, de 16 a 88 anos.
É uma cidade pequena, mas temos um impacto global. Temos muito orgulho de ser de Wuppertal, e acho que a cidade se orgulha de Pina e da companhia.
Quando entrei em contato com a companhia, me disseram que seria importante realizar esta entrevista em abril porque muitas coisas estariam acontecendo. O que está acontecendo agora?
Atualmente, estamos em Paris por cinco semanas. Estamos apresentando “Liberté Cathédrale” e “Sweet Mambo”. A companhia irá voltar ao Festival d’Avignon depois de muitos anos. É uma história muito importante entre Pina e o festival, mas a companhia não esteve lá por um longo tempo porque este é um festival de estreias. Vamos apresentar três projetos diferentes. Portanto, é um momento muito significativo para nós.
Também estamos realizando uma oficina para 200 pessoas em um campo de futebol. E estamos trabalhando em um projeto específico em torno de “Café Müller”, chamado “Forever”. Veremos como será, se será bem recebido pelo público ou não. Neste momento, a companhia está muito ativa. No verão, vamos tentar reduzir o ritmo, para dar aos dançarinos um período de descanso.
A companhia tem algum envolvimento com o Centro Pina Bausch?
Sim. Em Wuppertal, existe a Fundação Pina Bausch, que detém os direitos da companhia, e o Centro Pina Bausch, projetado para abrigar a fundação e a companhia. Estamos trabalhando em estreita colaboração com os futuros arquitetos. É um escritório americano, eles venceram a licitação para o futuro prédio e estamos colaborando com eles. Mas levará muitos anos. Espero estar em Wuppertal quando for inaugurado. Será um grande marco para a companhia reabrir o antigo teatro, que está fechado há 10 anos, e expandi-lo com mais estúdios de dança e espaços de encontro. Será a nossa casa no futuro.
Planejam oferecer cursos e oficinas lá?
Trata-se de um projeto internacional. Haverá espaços para a companhia trabalhar e se apresentar. Estará profundamente conectado à cidade, aos artistas, ao público e aos estudantes de Wuppertal. Esperamos que este Centro não seja apenas uma joia para nós, a companhia, mas para todos na cidade. Criará um grande movimento em torno dela, com workshops, aulas, é claro, e com outras companhias ensaiando. Acho muito importante que a herança deixada por Pina continue se desenvolvendo. Não são apenas suas obras que são excelentes, mas ela nos deixou com muita energia e desejo de dançar.
No site e perfil do grupo nas redes sociais, vocês adicionaram uma nova palavra ao nome da companha. O que é Terrain?
Terrain é o nome de minha estrutura na França. Digo que Tanztheater Wuppertal e Terrain trabalham juntos. É uma forma de dizer que não quero e não estou lá para substituir Pina. Ela continua presente na companhia, mas quero ver o que podemos fazer juntos. Terrain vem de uma utopia de ter um espaço verde urbano na cidade, sem paredes, sem telhado. Já que o Centro Pina Bausch não será inaugurado tão cedo, isso me dá tempo para desenvolver esse conceito de Terrain em Wuppertal. É uma região muito chuvosa, mas ainda acredito que podemos trabalhá-la ao longo do tempo.
Posso dizer que não é apenas meu desejo. Também é um desejo desta cidade de se tornar mais verde. Tem uma floresta incrível. É uma cidade em constante movimento. Temos um teatro de ópera incrível, mas há muito mais para explorar. Acho que esse era um desejo de Pina, pois ela filmava por toda Wuppertal, sua paisagem, a floresta. E em suas peças, ela sempre projetava água, rochas, árvores, folhas, etc. Então, a natureza também faz parte de seu trabalho, mesmo que ela se apresentasse principalmente em teatros. Quero que a companhia também esteja na cidade, esteja fora, encontre as pessoas nas ruas. Isso é o que é Terrain.
O Centro Pina Bausch também será projetado com muitos espaços ao ar livre, um estúdio que se abre para o rio, um terraço, um pátio. O prédio futuro oferecerá muita permeabilidade entre o interior e o exterior.
Acha que Pina revolucionou a maneira como vemos e entendemos a dança?
Ela é tão importante para tantos artistas. Trabalhou por 40 anos. Portanto, existem diferentes períodos, momentos distintos, dançarinos que mudaram dentro da companhia, mas ela foi muito importante para pessoas do teatro, das artes visuais. Acho que o que ela criou foi capaz de alcançar a todos. Isso, para mim, é muito importante, e hoje trabalhamos coletivamente em torno de sua herança.
Então, venho com muita humildade para Wuppertal, porque há tantas pessoas que sabem mais sobre Pina do que eu. Gosto de pensar que estou a serviço de seu trabalho. É um teste duplo: de memória, de dedicação ao seu trabalho e de criação de novas obras, com minha energia e minha própria história trazidas para Wuppertal.
Como acha que é importante para a companhia dialogar com todas as coisas que estão acontecendo no mundo?
Não trabalho muito com temas, mas gostaria de citar um comentário de uma crítica de arte, filósofa. Ela veio ver “Liberté Cathédrale” e disse que, pelo fato de não querermos ser contemporâneos, estamos muito conectados ao momento presente.
Começamos na igreja, usamos sinos e música de órgão. Cantamos Beethoven, usamos o silêncio. Então, não é uma peça que discute inteligência artificial. Não é uma peça com o tema da migração, da guerra na Ucrânia ou em Gaza. Tampouco sobre as mudanças climáticas. Por esse motivo, de alguma forma, a peça se torna muito contemporânea. É uma peça muito existencial nesse sentido. Está muito conectada à respiração, ao estar vivo, aceitar a morte, aceitar os conflitos. É muito emocional e muito ligada a Pina Bausch. Isso acontece porque deixamos o estado do mundo nos influenciar. Digamos que estamos abertos ao que acontece.
Na companhia somos bastante diversos, em termos de gêneros, de culturas, de formação, de corpos e estamos neste mundo agora. Somos permeáveis ao que está acontecendo.
Na igreja, houve tantos abusos sexuais por padres em todo o mundo. Dançar era proibido. Por séculos, era pecado dançar. E, agora, temos um padre incrível abrindo sua igreja para nós e nos permitindo apresentar lá.
Há uma parte na peça em que estamos com a boca aberta, mas estamos em silêncio. Talvez essa seja a melhor conexão que temos com as vítimas da Igreja. E para isso, não precisamos de um texto, é apenas um estado físico. A dança nos conecta com o mundo. Pode-se dizer que este é um tema: a violência na Igreja. Mas há um instinto que diz ‘Vamos primeiro criar a peça dentro da igreja e deixar os movimentos surgirem’.
Esta é a primeira peça desse novo momento da companhia; é um ritual, um luto. Pina Bausch morreu há muito tempo, mas ainda não digerimos isso. Não sou católico, mas mesmo assim a igreja é o lugar onde você pode meditar, pode acolher sua emoção e pode pensar nos momentos importantes da vida.
Como a companhia se sustenta economicamente? Faço essa pergunta porque estou muito curioso sobre política cultural em outros países. No Brasil, há muitos equívocos sobre como funciona e há muito preconceito com leis de incentivo. Então, se puder contar um pouco sobre como funciona na Alemanha ou na França.
Temos um suporte muito especial, um apoio excepcional da cidade e da região, que apoiam a companhia há 51 anos. Sempre esteve lá, mesmo após a morte de Pina. Portanto, o apoio continuará lá. Você pode mudar o prefeito, pode mudar a coalizão [política], pode mudar o diretor, mas o apoio estará lá. Essa é o tipo de confiança que Pina criou. Essa confiança fez a companhia ir para o mundo todo.
Por outro lado, a companhia gera muita receita para a cidade. Muitas pessoas vêm à cidade para nos ver. Os espetáculos estão sempre esgotados. Portanto, uma grande parte de nosso orçamento também vem de nossas turnês. É uma mistura de um apoio público permanente muito forte e de nossas apresentações pelo mundo, de encontrar co-produções e colaboradores. Apoio sempre traz apoio.
Na primeira reunião no Zoom, quando estávamos pensando sobre qual poderia ser o futuro da companhia, havia 15 pessoas ouvindo, incluindo o prefeito. Ele estava lá para me ouvir, um dançarino francês talvez não tão conhecido. Ele sabe que não sou candidato, ele está apenas lá para ouvir. Isso é um exemplo para a França e para muitos outros países. E também é uma exceção na Alemanha. É um modelo muito específico que foi criado em torno de Pina.
Por fim, quando a companhia virá para o Brasil novamente?
Adoraria isso. Então, por favor, nos convide, nós adoraríamos. Temos um diretor de iluminação que vem do Brasil, Fernando Jacon, e também Naomi Britto, que é uma dançarina incrível, uma das dançarinas mais jovens da companhia. É muito pesado trazer toda essa estrutura, precisamos de muito apoio, mas eu amaria. Estamos sempre acompanhando de perto o que está acontecendo no Brasil, amamos seus artistas e seus coreógrafos.