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A caneta (e voz) afiada de Elisa Lucinda

Nova colunista da Bravo!, a atriz faz um balanço da carreira e fala da longevidade da peça "Parem de Falar Mal da Rotina"

Por Amauri Terto
19 jul 2024, 10h00
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Elisa Lucinda no palco com a peça "Parem de falar mal da rotina" que encena há 22 anos (Jonathan Estrella/divulgação)
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Elisa Lucinda vive em estado de poesia. Dentre as várias funções que exerce, uma delas é a de professora de poesia falada no seu Instituto Casa Poema, que faz um importante trabalho com quilombolas e jovens em situação de vulnerabilidade.“Ensinamos pessoas a descobrir seu próprio discurso através da poesia falada”, revela a autora em uma deliciosa conversa com Bravo!. 

A descoberta do que é poético veio cedo, ainda na infância, no bairro de Itaquari, em Cariacica, no Espírito Santo, quando se maravilhava com o inédito das coisas. Da xícara de café à estrela no céu, tudo lhe causava um impacto no peito. Era uma contemplativa imperativa. Em casa, a palavra era valorizada. Os pais, filhos de operários, haviam ascendido social e intelectualmente, proporcionando o ambiente ideal para que o encanto ganhasse ainda mais força. 

Aos 11 anos, Elisa descobriu o que era um poema e, consequentemente, a tradução do seu constante espanto. Dali até os 17 anos, teve aulas de declamação, desenvolvendo seu jeito ímpar de dizer versos e guardando consigo os escritos de Mário Quintana, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade e outros nomes emblemáticos da poesia brasileira como poderosas ferramentas.

A escrita dos textos autorais veio na adolescência, assim como o aumento do desejo de se tornar uma atriz. Sob influência dos pais, o futuro nas artes foi deixado de lado para dar lugar ao jornalismo. “‘Nós seremos os novos pretos. Participaremos da nova abolição através da educação’, dizia meu pai. E criaram cinco filhos, todos formados em universidades federais. Apesar de ser a menos estudiosa, fui aprovada em sexto lugar. Em casa, a palavra tinha muito poder”, afirma ela, que se formou na Universidade Federal do Espírito Santo, trabalhou como jornalista e professora, teve um filho, mas, no fim dos anos 1980, resolveu seguir seu desejo e tentar a sorte como atriz no Rio de Janeiro.

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(Jonathan Estrella/divulgação)

Já estudante da tradicional CAL (Casa de Artes de Laranjeiras), a poeta cheia de magnetismo conquistou público e amigos nas areias da Praia de Ipanema, dando início ao que se tornaria uma carreira prestigiosa como poeta, escritora, atriz (na TV e no cinema) e cantora — feito incomum para uma artista negra do seu tempo. “Não esperei por convites. Fiz teatro, lancei livros como “Sósias dos Sonhos” e “Semelhante”, e contei com o apoio de Mauro Salles. Meu diferencial? O jeito de falar poesia, como uma conversa.”

Um dos inúmeros pontos altos da carreira de Elisa Lucinda é o espetáculo “Parem de Falar Mal da Rotina”, uma ode à capacidade humana de renovação e à beleza na vida cotidiana. Levado ao palco pela primeira vez em 2002, o monólogo arrebata público por onde passa, com sua combinação poderosa de crônicas sobre temas comuns, sensíveis e universais — tais como o ato de se apaixonar, o ritual do trabalho e o onipresente racismo que rasga nossa sociedade —, com música e poemas da artista.

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Mas nem sempre foi assim: “Esta peça só está aqui por causa do público. Não por causa das críticas. Os intelectuais da época não foram ver. Os críticos de teatro tinham desprezo”, recorda-se. Há 22 anos circulando pelos palcos brasileiros com o espetáculo, Elisa Lucinda faz rir e chorar com a facilidade que só os grandes da dramaturgia conseguem. Por isso, não é incomum que na interação da atriz com a plateia, uma das bases da peça, apareçam espectadores que já tenham assistido sua performance mais de cinco, dez, quinze, trinta vezes. 

“Quero passar minha vida inteira fazendo teatro. Enquanto minha memória permitir. A peça não é a mesma sem a cumplicidade da plateia”

Elisa Lucinda 
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(Jonathan Estrella/divulgação)

Bravo! conferiu uma sessão de “Parem de Falar Mal da Rotina” no Teatro Liberdade, em São Paulo, onde Elisa Lucinda faz curta temporada. Na plateia, públicos de diversas idades, casais e famílias, além de personalidades, como a cozinheira e empresária Paola Carosella, e o diretor de cinema Beto Brant, a quem a atriz fez questão de agradecer a presença nominalmente. Não faltaram também os fãs que repetem sua presença na plateia, como uma moça que levantou a mão no meio da peça para relatar sua alegria em rever o monólogo quinze anos após sua primeira experiência e sair tão extasiada quanto da primeira vez.

Assim como a própria Elisa Lucinda, multiartista em constante processo de criação, nenhuma sessão de “Parem de Falar Mal da Rotina” é a mesma. Cada dia é uma estreia, cada contato gera um desdobramento, cada ação gera uma nova reação tudo sob uma atmosfera de cumplicidade entre ator e espectador. Na entrevista que você lê a seguir, a atriz revê o seu início de carreira, fala da longevidade de seu espetáculo mais bem-sucedido, explica o que lhe deu resiliência para resistir ao racismo no audiovisual brasileiro. Claro, tudo isso entre belos poemas. Além disso, a atriz de 66 anos revela o nome de sua coluna nesta Bravo! e o que os leitores poderão esperar dela. Leia os melhores trechos da conversa a seguir:

O início improvável da carreira nas artes

Por um acaso do destino, comecei a falar poesia nos bares do Rio de Janeiro. Meu primeiro show foi “A Uma na Madrugada”, no bar Madrugada, com o músico Nestor Capoeira.

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Aos 28 anos, estudava na CAL [Casa de Artes de Laranjeiras], tinha um filho de 4 anos e precisava que tudo desse certo. Já tinha feito jornalismo e pedido demissão da TV Gazeta. Era difícil ser artista. Eu escrevia poesia e tinha um plano mirabolante: quando completasse 50 anos, iria publicar meu primeiro livro. Eu seria uma atriz conhecida e, como o Brasil não gosta muito de ler, achava que, por ser conhecida, venderia mais livros. Na minha cabeça, era bom para a literatura ser mais maduro.

Um dia, soube que haveria um lançamento de um varal de poesia na Praia de Ipanema. Quem quisesse poderia ir e pregar seu poema no varal, como se fosse roupa, e usar um megafone para ler seu poema. Eu já tinha escrito alguns poemas, mas não pensava em mostrá-los ainda. Estudei declamação dos 11 aos 17 anos. Nunca esqueci a maioria dos poemas que aprendi nessas aulas. Então, recitei um poema e foi uma experiência incrível. 

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(Jonathan Estrella/divulgação)

Falei outro poema, e as pessoas começaram a vir do mar. Já havia dez poetas na minha frente, mas, quando comecei a falar, as pessoas saíram do banho e se aproximaram. Lembro de um personagem que apareceu no meio da multidão e disse: “Você tem que abrir uma igreja”. 

O Rio me ofereceu o que minha cidade não tinha: modernidade e vanguarda. Percebi um corte epistemológico na minha vida ao recitar por quarenta minutos de Cecília Meireles a Drummond. Meu diferencial? O jeito de falar poesia, como uma conversa.

Uma mulher me convidou para uma apresentação em um barzinho em 1987, um ano após minha chegada ao Rio. Comecei a fazer shows semanais e me tornei conhecida nos bares cariocas. Conheci muitos artistas, como Renata Sorrah, Zezé Polessa, Paulo José e outros. Manoel Carlos me viu atuando e me chamou para uma novela. Zezé Polessa me incentivou a criar meus próprios projetos. Isso foi crucial para minha independência criativa em um país racista como o nosso.

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Não esperei por convites. Fiz teatro, lancei livros como “Sósias dos Sonhos” e “Semelhante”, e contei com o apoio de Mauro Salles. Zezé Polessa dirigiu meu espetáculo solo, que ficou seis anos em cartaz. Continuei avançando na linguagem teatral e explorando novas formas de expressão.

A atualização da linguagem de “Parem de Falar Mal da Rotina”

O processo de atualização foi como organizar uma geladeira em uma cozinha ativa, constantemente em uso. É como perceber o que não serve mais, o que não se usa mais, o que não se encaixa mais na dieta. Parei de comprar, entende? Ficou parado por um tempo, até que um dia decidi atualizá-lo. Desde então, o espetáculo se atualiza diariamente, de uma sessão para outra. Ele gosta de brincar em produzir algumas ilusões, revelando algumas e mantendo outras ocultas. Muitos acham que tudo é muito improvisado e essa ilusão beneficia a peça de alguma maneira. 

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(Jonathan Estrella/divulgação)

O desafio de manter uma peça ao longo de 22 anos

Esta peça só está aqui por causa do público. Não por causa das críticas. Os intelectuais da época não foram ver. Os críticos de teatro tinham desprezo. Alguns jornalistas famosos, como um que conheci, disseram que não viram a peça, mas achavam que sabiam como era. Isso era difícil de explicar. Hoje vejo isso como uma bandeira de resistência. Quero fazer isso enquanto tiver condições cognitivas, lúcida. Quero passar minha vida inteira fazendo isso. Enquanto minha memória permitir. A peça não é a mesma sem a cumplicidade da plateia. Ela se repete mil vezes. No Rio de Janeiro, encontro pessoas que viram cinquenta vezes, o que acho um absurdo. Apenas cinquenta vezes. Mas as pessoas tratam como um show, vão ver de novo porque curtiram.

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(Jonathan Estrella/divulgação)

A poesia como lente para ver o mundo

A poesia é realmente uma lente. Fui exposta a ela muito jovem. Eu já era uma criança que se maravilhava com as coisas. Não no sentido de surpresa, mas pelo impacto. “Mãe, você viu aquela estrela linda no céu?!” Tudo era extraordinário para mim. As coisas mais simples me encantavam e ainda me encantam.

Minha mãe e todos me chamavam de menina que reparava. Eu notava tudo. Se uma mulher me servia café em uma xícara, eu perguntava: “Que xícara bonita! Existem mais assim?”. O homem que Eu sempre fui assim, até mesmo com a chuva. “Olha, mãe, tem chuva caindo com gotas mais fortes…” Eu era uma contemplativa imperativa.

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Quando descobri a poesia aos 11 anos, foi incrível porque com ela encontrei a tradução para o meu espanto e percebi que a porta, a janela, a borboleta, o mosquito… tudo era poesia. Às vezes, a vida é uma busca por algo que traduza esse espanto, e muitos não encontram. Reafirmo que o espanto é o impacto da vida no peito.

Quando comecei a escrever poesia aos 17 anos, só sabia ver a vida através de várias lentes. Mário Quintana… Mário Quintana tem um poema que fala assim:

Na minha rua há um menininho doente.Enquanto os outros partem para a escola,Junto à janela, sonhadoramente,

Ele ouve o sapateiro bater sola.

Ouve também o carpinteiro, em frente,Que uma canção napolitana engrola.E pouco a pouco, gradativamente,

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O sofrimento que ele tem se evola…

Mas nesta rua há um operário triste:Não canta nada na manhã sonoraE o menino nem sonha que ele existe.

Ele trabalha silenciosamente…

E está compondo este soneto agora,

Pra alminha boa do menino doente…

Escrever poema é um ato solitário, mas de uma liberdade incrível. Já escrevi poemas para pessoas desagradáveis na minha frente, em meu caderno de pensamentos, pensando: “Aguarde”. E também para pessoas por quem me apaixonei, que nem sabiam que eu estava escrevendo.

Para mim, a poesia é uma lente. Vejo a vida e tudo é muito inspirador. Isso não diminuiu com o tempo; pelo contrário, aumentou com minhas experiências e os lugares que visitei. Meu caderno de pensamentos é vasto. Embora compacto quando fechado, ele se ilumina assim que é aberto, mas é claro para mim. Aliás, é um bom nome para minha coluna na Bravo!: Meu Caderno de Pensamentos.

Recentemente descobri, e estou dizendo isso pela primeira vez, que meu próximo livro de poesia se chamará “A Pequena Escritora”. Escrevo desde que não sabia que estava escrevendo. É minha criança que protejo, a artista que você vê. As crianças estreiam tudo com a capacidade de experimentar o inédito, o incrível. Por isso, preservo minha criança. Porque a criança é a poeta primordial da humanidade. Só continua sendo poeta quem mantém a criança viva. Sem a criança, não há poesia.

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(Jonathan Estrella/divulgação)

A relação profunda com a escrita

Eu tive cadernos por muitos anos. Cadernos lindos. Mas como produzo muito e meu pensamento é veloz, a grafia não acompanha. Tenho uns 70 cadernos para serem decifrados. Eu e minha assistente estamos nesse processo. Às vezes, só se salva um verso. Para resolver isso, escrevo muito no celular. Meu bloco de notas tem mil notas. Também dito, e minha assistente digita. “Cavaleiro de Nada”, a autobiografia do Fernando Pessoa, foi editado assim. Tenho prazer em escrever; é meu conforto, minha alforria.

Já sofri muitos impedimentos e perdi trabalho por racismo. Fui julgada por usar saia curta e transparente. Mas o racismo não conseguiu me calar. Continuo produzindo. Quanto mais provocada, mais produzo contra isso. A questão desigualdade do mundo, o fundamento das guerras, tudo que me incomoda, alimenta minha poesia.

Mesmo falando de guerras, não deixo de perceber que a borboleta parece um papel que voa. Então, no mesmo livro que tem uma porrada, pode ter uma borboleta, um papel que voa. Faço isso há muitos anos e gosto de fazer. É como alguém que pinta muito bem há 40 anos e pinta uma parede brincando, até de olhos fechados. 

Tenho prazer e disposição para escrever. Faço com tesão e com o perigo de não ter feriado para mim. Isso me dá uma imperatividade. Muitas vezes, escrevo só para dormir, para descansar meu pensamento. Faço isso como se acabasse de amamentar. 

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(Jonathan Estrella/divulgação)

A solidão e a resiliência de uma mulher negra no audiovisual 

Percebo que fazer meu espetáculo foi uma grande estratégia de sobrevivência. Sempre estive em cartaz, o que gerava uma certa confusão, pois eu pedia trabalho para existir. Dizia: “Estou em cartaz, com patrocinador”. Embora antipático para as grandes corporações, isso gerou respeito, pois não ficava com agenda livre esperando convites desesperadamente. Negociava meu cachê de forma firme e isso mudou meu lugar no tempo. Mas também houve angústias.

Uma das maiores delas foi quando eu e uma colega preta sabíamos, na fila do teste para um determinado papel, que seria uma ou outra. Torcíamos para ser escolhidas e nos sentíamos culpadas, pois ambas precisávamos do trabalho para sustentar nossos filhos. Tenho muitas amigas brancas atrizes que enriqueceram rapidamente. Isso sempre aconteceu e ainda acontece, mas agora estamos falando sobre desigualdade salarial e as implicações disso. Imagine um ator preto, com amigos e um filho pequeno, sendo desencorajado de seguir na profissão. Queríamos papéis com arcos dramáticos, mas só nos ofereciam papéis de escravizados, empregadas domésticas ou bandidos. Meus espetáculos me deram a oportunidade de explorar outros arcos e fazer o que gosto.

Já pensou passar a vida inteira como grande atriz negra em papéis limitados, dizendo: “Boa tarde, Sr. Augusto. Quer café, Dona Guiomar? Os meninos já dormiram, Sr. Afonso”, e terminando a novela assim? No último capítulo, ela participa da festa da família, como se fosse realmente parte dela. Isso foi o que vimos. Precisamos falar sobre essa disparidade: muitos intelectuais, especialmente do teatro, nos anos 1970, 1980 e 1990, não se importavam com o assunto. Grandes diretores montavam Shakespeare ou Nelson Rodrigues e não éramos considerados. Muitas vezes ouvi: “Não tem papel para você,” ou “Não tem seu perfil”.

Isso adoeceu nosso audiovisual e criou uma memória distorcida do Brasil. Renata Sorrah já afirmou uma vez que sua geração assistiu à exclusão dos negros no audiovisual e teatro sem protestar. Domingos de Oliveira fez “Todas as Mulheres do Mundo” sem nenhuma atriz preta, e ninguém achou estranho. Zezé Motta, com todo o seu talento, deveria ter desembarcado diretamente na novela das nove. Agora, essa questão está em ebulição e não será mais ignorada. Isso virou uma lacuna na dramaturgia.

Houve um momento em que já não dava para me chamar para qualquer papel. Então, fui fazer a Pérola, do Manoel Carlos; a dra. Selma, amiga da Regina Duarte. Para muitas jovens atrizes brasileiras, eu sou uma referência. Já ouvi mais de um relato de mulheres falando o quão incrível e libertador foi me ver com cabelo crespo há 20 anos, sendo ex-mulher do Tony Ramos e mãe da Camila na novela da Rede Globo. O que elas não sabem é que eu lutei muito nos bastidores por aquele cabelo, por aparecer na TV com o meu cabelo natural, sem escova, sem progressiva. 

Quase não fiz papéis de escrava. Mas também tem o negócio: nunca fui preta o suficiente na cabeça deles para ser escrava e nem branca o suficiente para outros papéis.

A experiência como Marlene em “Vai na Fé”

“Vai na Fé” foi um presente, com roteiristas pretos como Fabrício Santiago, Pedro Alvarenga e Renata Sofia. Era um trio imbatível da Rosane Svartman, muito inteligente e realmente antirracista. Tinha medo de ser uma novela evangélica, mas não era. A família heroína era evangélica, e me senti com uma oportunidade imensa de fazer uma personagem muito diferente de mim. Fiz com muito amor, como exemplo para pararem de queimar terreiro. Se eu, macumbeira, interpretei uma evangélica com tanto amor e verdade, exijo respeito com a minha macumba.

Levei a sério, estudei os louvores, amava fazer com a dona Marlene. A novela abordou assuntos pesados como estupro, filho de estupro e racismo na universidade. Mesmo sendo uma novela das sete, foi um sucesso absoluto. Pessoas que nunca tinham visto novela, jovens de 15 e 16 anos, começaram a assistir e esperar ansiosamente pelo próximo capítulo. “Vai na Fé” foi uma ousadia.

Nunca tinha visto tanta diversidade nos bastidores da TV. Brincávamos: “É tudo nosso!”. Foi bem emblemático para mim. Carolina Dieckmann teve seu primeiro par preto, entende? “Vai nap Fé” foi uma pedagogia para o audiovisual brasileiro e espero que a aula tenha sido aprendida. Porque somos 56% da população e ainda estamos enfrentando sistematicamente um pensamento racista que se renova.

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(Jonathan Estrella/divulgação)

A nova coluna na Bravo! 

Sempre quis escrever na Bravo!, mas não sabia como. Era um desejo antigo até que surgiu essa oportunidade com a nova direção. Estou realizando um sonho antigo com muito prazer. Sou jornalista e escritora de uma geração que leu Clarice Lispector no jornal. Quero ser lida, como poetas e cronistas…como Drummond.

O leitor pode esperar por muita poesia, crônicas e contos. Gosto de saber que, como diz um verso do Drummond, “Ó vida futura, nós te criaremos.” Isso é um estímulo e uma alegria para mim, como ir para um ensaio. Adoro. O nome da coluna deve ser “Meu Caderno de Pensamento”. Espero que gostem do título, pois será uma leitura contemporânea brasileira de uma mulher que teve a poesia como mestra até aqui.

Quero agradecer profundamente à Maria Filina, uma professora que hoje tem 94 anos e recita poesia lindamente. Ela me ensinou a falar poesia de um jeito coloquial, dizendo que a forma não pode ser maior do que o conteúdo. Ela é a mãe da minha poesia.

Agradeço também a Mauro Salles, um publicitário de São Paulo, que me viu em 1993 e disse: “Você quer viver de poesia? Dependendo de mim, você vai viver de poesia”. Ele abriu todas as portas para mim, me apresentou à Marília Gabriela e ao Jô Soares, e tirou-me de uma possível invisibilidade.

Outros novos projetos

Tenho um novo livro que vai sair pela editora Palas chamado “Encontro com a Invenção”. São vários poemas contando a história da escrita. Também vai sair o “Diário do Vento”, uma parceria da Casa Poema com a Malê, durante minha festa literária em outubro, a Festa da Palavra, que será de 16 a 19 de outubro em Itaúna, Espírito Santo.

Haverá um documentário sobre minha vida, dirigido por Ary Rosa e Glenda Nicácio, da Rosa Filmes. Eles são incríveis e Glenda dirigiu a novela “Fuzuê” e o premiado “Café com Canela”. Estamos em processo de produção ainda e já estou adorando.

Também mencionei dois livros ontem no palco: “A Vida da Edite”, que vai virar série, e “Quem Me Leva Para Passear” e “O Livro do Avesso”, ambos sobre o pensamento da Edite, uma personagem incrível.

Também está em cartaz no Rio de Janeiro a peça “Perigosas Damas”, que escrevi com Geovana Pires e Denise Stutz, que dirige a peça. É sobre as subversões femininas, abordando como as leis feitas por homens impactam as mulheres. Está em cartaz no Rio e em breve virá para São Paulo. 

Novos ventos em São Paulo

Gostaria que você colocasse na matéria, sei que já está imensa, mas esse sopro que às vezes o vento sopra para um lugar, está soprando para São Paulo. Tenho várias propostas de trabalho aqui. E meu único filho, Juliano Gomes, veio morar nesta cidade. Ele é crítico de cinema, diretor e professor. Ele me organiza em várias coisas, suas observações são muito sensatas.

Vou contar uma cena para finalizar, para você ver como ele funciona. Um dia, terminei uma entrevista e falei: “Meu filho, não falei isso, não falei aquilo”. Ele respondeu: “Mãe, toda abordagem é recorte”. Não dá para querer que o infinito caiba em uma entrevista. Libertador, né?

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