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Vida e morte de Amadeo

“Amadeo”, peça dirigida por Nelson Baskerville, que discute a luta pelo direito à eutanásia, ganha encenação em São Paulo

Por Humberto Maruchel
21 abr 2023, 01h13

Em 24 de setembro de 2000, o jovem Vincent Humbert estava dirigindo por uma estrada na Normandia, no norte da França. No caminho, uma tragédia: seu carro foi atingido violentamente por um caminhão. Com apenas 22 anos, Vincent não morreu, mas chegou bem perto disso. Ficou em coma durante 9 meses e quando, finalmente, acordou, descobriu que havia perdido quase completamente os movimentos do corpo, havia perdido também a visão e audição. Restaram poucos gestos possíveis para expressar suas ideias e sentimentos: sua mente inquieta e seu polegar direito. Com esse último, foi capaz de se comunicar e escrever suas memórias no livro Eu Pedi pelo Direito de Morrer.

Como o próprio título revela, a história de Vincent ganhou notoriedade para muito além do fatídico acidente, mas pela comoção de um país com o pedido do jovem e de sua mãe: a possibilidade de encerrar sua vida de forma digna.

Amadeo
(Ronaldo Gutierrez/divulgação)

Mais de duas décadas depois do acidente, a história chega ao Brasil. Não pelos jornais, mas por uma encenação teatral. Amadeo, um texto do ator e dramaturgo francês Côme de Bellescize inspirado na história de Vincent Humbert, ocupa o anfiteatro do Tucarena, da PUC-SP.

Dirigida por Nelson Baskerville, a obra faz uma adaptação à realidade brasileira. Amadeo é um adolescente que, como muitos outros, adora jogar videogame, tem uma namorada com quem planeja de perder a virgindade, tem um melhor amigo com quem sonha em ser piloto de Fórmula 1, e uma mãe, a quem raramente escuta. É um jovem com muitos projetos, embora não pense neles com muita pretensão. Já seu pai, ausente, há tempos abandonou esposa e filho pequeno.

Amadeo
(Ronaldo Gutierrez/divulgação)

A reviravolta na história de Amadeo acontece no que parece uma simples partida de um jogo de videogame. O jovem acelera e vê os carros em sua frente como simples obstáculos que precisam ser ultrapassados, não como peças que podem transformar radicalmente sua vida. E, então, o acidente. O desenrolar da narrativa acontece de modo semelhante à história de Vincent. Amadeo, interpretado com cuidado e delicadeza pelo ator e cantor Thalles Cabral, permanece adormecido por meses. E ao acordar percebe que não é mais aquele jovem cheio de vida de antes.

“A peça é dividida em três partes. Amadeo em vida totalmente enérgico, vivendo todas as questões de um adolescente. E aí vem o acidente e com isso a imobilidade. Com ela, o medo do que está acontecendo. A terceira parte da peça é quando ele já começou a resolver algumas coisas internamente e tomou a decisão”, diz Thalles.

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Amadeo
(Ronaldo Gutierrez/divulgação)

Sentado em uma das cadeiras do teatro de arena, Thalles conta da rotina que antecede as apresentações. Costuma chegar com três horas de antecedência, se aquece e tenta se conectar com a energia inicial da peça, a de um Amadeo cheio de planos. “As pessoas só se emocionam com o final da peça se elas se identificarem e sentirem carinho e empatia por ele no início.”

Thalles conta que sempre flertou com o trabalho de Nelson Baskerville, assistiu todas as peças do diretor. Era um desejo antigo trabalhar com o encenador. Em novembro do ano passado, a vontade ganhou uma chance: recebeu um convite por telefone do próprio Nelson para tomar parte do projeto.

tor e cantor Thalles Cabral
(Gal Oppido/divulgação)

O vislumbre da montagem da peça iniciou ainda em 2012, quando o espetáculo estreou na França. A atriz franco-brasileira Janaína Suaudeau, que interpreta a namorada de Amadeo, estava de passagem por Paris e assistiu à peça, pois tinha amigos que faziam parte do elenco. Foi sem ler nada a respeito, queria ser surpreendida. E, de fato, foi, ficou fascinada com o que viu. “Eu precisei de uns 15, 20 minutos para me recompor. Ali eu já sabia que queria traduzir e trazer o texto para o Brasil.”

Havia uma identificação e experiência pessoal da atriz com a situação da peça. Seu avô paterno ficou 16 anos tetraplégico numa época em que nem mesmo os cuidados paliativos eram autorizados na França. “Para mim é uma questão muito íntima, e foi como trazer o íntimo para a sociedade, para o coletivo.” Janaína comprou os direitos autorais e em 2016 contatou Nelson, que, imediatamente, se conectou com o texto. “Eu tinha certeza que ele era o diretor para dirigir essa peça. Eu sabia que ela ia conseguir trazer a delicadeza, os momentos lúdicos e até mesmo os engraçados”, diz Janaína.

“[O texto] É a cara do Nelson, pois ele permite uma liberdade na encenação, que tem uma questão realista, mas como a gente vai contando essa história não é, traz um universo lúdico”, redobra Thalles. “Quando veio o convite eu não tinha uma opinião sobre eutanásia, porque a gente coloca esse tema num lugar distante de nós. Mas depois me abriu esse universo. Isso [a eutanásia] acontece e acontece com muita frequência. Fiquei encantado com a peça porque eu acho que é um tema pouco falado”, diz o ator.

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Amadeo
(Ronaldo Gutierrez/divulgação)

Escrito pelo movimentar do polegar direito, Vincent conseguiu publicar Eu Pedi pelo Direito de Morrer com a ajuda de um jornalista, que soube da história assim que ela ganhou espaço na mídia.

Quando tomou a decisão que gostaria de partir dessa realidade, Vincent pediu ajuda da mãe, Marie. Ao invés de buscar motivos para fazer o filho a mudar de ideia, ela decide ajudá-lo. Não havia sustentação jurídica para o desejo de Vincent (ainda não há). Na época, recorreram ao presidente Jacques Chirac. Em uma carta enviada a Chirac, a mãe cheia de dor faz um apelo e um aviso. “Meu filho me diz todo dia: ‘Mãe, não consigo mais suportar esse sofrimento. Eu imploro a você, ajude-me’. O que você faria? Se tiver de ir para a prisão, irei.”

Amadeo
(Ronaldo Gutierrez/divulgação)

Com o pedido rejeitado, a mãe decide concretizar o pedido do filho com as próprias mãos com ajuda de um dos médicos. Marie foi presa logo após, para em seguida ser solta. Naquele contexto, uma pesquisa mostrou que 80% dos franceses entrevistados acreditavam que deveria haver uma mudança na lei de eutanásia voluntária, beneficiando pessoas como Marie e Vincent.

Thalles foi atrás do livro, que possui tradução para o português de Portugal, mas que já estava esgotado. Havia apenas um exemplar num sebo no Rio de Janeiro: “Eu li numa noite. É um livro muito precioso porque é a perspectiva dele. Acho que primeiro desafio foi buscar fazer jus à história do Vincent e representar essas pessoas, raramente representadas. A peça é toda do ponto de vista do Amadeo, da mente dele.”

Amadeo
(Ronaldo Gutierrez/divulgação)

É a partir dessa imaginação que a peça ganha novas camadas. Vemos as fantasias de Amadeo que luta incansavelmente para se reconectar com a vida, como num campeonato de boxe. É, então, que Clóvis, seu alter ego, interpretado por Claudia Missura, surge. Carregada de humor, essa outra faceta de Amadeo, zomba, e, ao mesmo tempo, se compadece da situação do jovem. São suas fantasias que o tiram do constante sentimento de estar isolado do resto do mundo: “Clóvis é o desejo do Amadeo, e, ao mesmo tempo, seu inconsciente, seu alter ego, subconsciente, amigo imaginário, uma espécie de gênio bom e mau. É aquela voz que nunca sai da nossa cabeça, que pode ser o paraíso ou o inferno.”

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Um grande desafio ao desempenhar Amadeo estava em perder o controle sobre o próprio corpo. “Quando fomos para a sala de ensaio que vi que o buraco era bem mais embaixo. Parece fácil a ideia de ficar totalmente imóvel, mas é muito difícil. A gente não percebe, mas movemos o corpo o tempo todo. Quando escutamos alguém, movemos nossa testa, nossa boca, estamos o tempo todo reagindo. A imobilidade foi um desafio gigantesco.”

Amadeo
(Ronaldo Gutierrez/divulgação)

Além disso, havia também a preocupação de criar uma encenação que não fosse caricata. “Minha preocupação era não fazer uma coisa extremamente fiel, porque poderia cair no lugar do mau gosto, imitar alguém com braços e mãos atrofiadas. Então fomos encontrando um meio termo. Toda a atuação se concentra no olhar.”

Em Amadeo, não está em jogo os acontecimentos ou, tampouco, a surpresa do desfecho da história, mas no como a discussão é feita, por um lugar empático, tanto na perspectiva do jovem quanto de sua mãe, interpretada por Chris Couto.

No Brasil, assim como na França, a eutanásia não é permitida. Pode, mesmo, ser caracterizada como homicídio ou mesmo omissão de socorro àqueles que ajudarem.

Amadeo fica em cartaz até 28 de maio, no Tucarena. Também fazem parte do elenco César Mello (chefe dos bombeiros responsável pelo resgate de Amadeo) e Thomas Huszar (o melhor amigo do protagonista).

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Amadeo

Tucarena – Rua Bartira, 347 – Perdizes, São Paulo
De 10 de março a 28 de maio.
Sextas e sábados às 21h; domingos às 18h
Ingressos: R$ 100 (inteira) e R$ 50 (meia entrada para estudantes e idosos, portadores de necessidades especiais, professores da rede pública). Estudantes e professores da PUC: R$ 20

elenco da peça Amadeo
(Gal Oppido/divulgação)
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