Andrea Beltrão: ‘Eu gostaria muito de ter patrocínio, mas não está rolando para mim, não’
A Bravo! conversou com a atriz, que estreia o monólogo Lady Tempestade em São Paulo, sobre o novo espetáculo e sua atuação artística independente de apoio

Há uma bela passagem no livro A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera, em que uma das personagens centrais, Tereza, uma mulher introspectiva, aparentemente frágil e passiva, vive uma verdadeira revolução. Na trama, ela se muda para Praga para acompanhar o marido, Tomáš. Até que, durante a invasão soviética da Tchecoslováquia, em 1968, muda completamente seu temperamento e começa a fotografar sem medo, movida pelo desejo claro de denunciar a violência e a opressão.
Aquela virada na vida da personagem lembra a trajetória de uma figura real — brasileira, diga-se de passagem: Mércia Albuquerque Ferreira (1934–2003). A advogada nascida em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, também viveu uma transformação radical.
Era uma mulher tranquila, tímida, que sonhava ser professora da educação infantil. Já casada, nos seus 30 anos, na carreira sonhada, presenciou uma cena de violência que a marcou a ponto de redirecionar por completo o rumo de sua história. Era o início da ditadura militar, em 1964. Como parte de uma rotina absurda que se instalou com o golpe de 64, os militares espancavam um senhor em plena luz do dia, na praça pública de Casa Forte, bairro de elite do Recife. Por um desses acasos que parecem ter hora marcada, a cena aconteceu bem em frente à escola onde Mércia dava aula.
O homem era Gregório Bezerra, dirigente comunista, com 64 anos na época. Ele já era figura marcada pelo DOPS de Pernambuco muito antes de 1964. Desde o levante comunista de 1935, tinha sua vida vigiada de perto. Assim que o golpe foi deflagrado, não houve dúvidas: Gregório foi preso.
Passou por interrogatórios, e em seguida transferido ao quartel de Casa Forte. A operação foi feita às pressas, sem protocolos oficiais, conduzida por um agente do DOPS com a ajuda de dois civis sem qualquer vínculo com o Estado, os chamados “araques de polícia”, uma espécie de milícia auxiliar da repressão.
Em Casa Forte, o tenente-coronel Darci Villocq arrastou Gregório pelo pescoço pelas ruas e o torturou ali mesmo, à vista de todos. A imagem daquele homem sendo violentado diante da escola onde Mércia trabalhava gerou uma fúria inédita. Indignada, ela foi atrás de Gregório e se colocou à disposição para ajudá-lo.
Veja só: por mais uma coincidência do destino, Mércia era formada em Direito, mas até então não pretendia exercer a profissão. O curso fora um capricho de seu pai, que sonhava vê-la médica. Acontece que ela tinha pavor de sangue. A alternativa que poderia oferecer prestígio semelhante, na época, era o Direito.
Depois daquele dia, a vida pacata da professora foi por água abaixo. Mércia assumiu a postura de uma advogada destemida e se dedicou a mais de 500 casos envolvendo perseguidos políticos durante a ditadura militar, a maioria deles no Nordeste.
A história é fascinante, a trajetória, admirável e, ainda assim, por muito tempo permaneceu pouco conhecida. Isso começou a mudar quando duas artistas se depararam com suas memórias.
Yara de Novaes e Andrea Beltrão procuravam uma desculpa para trabalharem juntas. Encontraram o motivo nos diários de Mércia, descobertos por Yara, que logo compartilhou o material com Andrea. O impacto foi imediato. Do encontro entre as duas e do encantamento com Mércia nasceu um espetáculo: Lady Tempestade, monólogo com Andrea, dirigido por Yara.
“Quando eu li, fiquei muito envolvida na história, não consegui mais parar de pensar. Tenho 61 anos, conheço bem essa história [da ditadura], vivi parte dela, embora fosse criança na época. Fiquei muito impactada com a Mércia, uma mulher que eu nunca tinha ouvido falar”
conta Andrea, em entrevista à Bravo

O título veio de uma frase escrita por Mércia em um de seus cadernos: “Minha mãe é bonança, eu sou outro negócio, eu sou tempestade.” Foi a dramaturga Sílvia Gomez, responsável pelo texto da peça, quem escolheu o nome, e que hoje também funciona como uma homenagem à advogada que desafiou a repressão.
O solo, que estreia nesta sexta-feira (30), no Sesc Consolação, em São Paulo, já está com a temporada de pouco mais de um mês esgotada. Reforçando o impacto de Beltrão sobre as audiências, seja na televisão ou no teatro; seu lugar caro.
Tão caro que Andrea e sua companheira de profissão de longa data, Marieta Severo, materializaram o amor pelo palco com a construção de um espaço cênico no Rio de Janeiro, o Teatro Poeira, fundado em 2005. Desde então, tornou-se um dos polos das artes cênicas mais importantes da cidade e, mesmo com a trajetória de suas gestoras, segue sem patrocínio. Assim como o espetáculo Lady Tempestade, que ainda busca apoio para continuar seu percurso.
“O Poeira não tem patrocínio. Mandamos projeto para quase 50 empresas, não fomos pessoalmente, mandamos só o projeto. Antes a gente ligava, falava com secretárias, marcava uma conversa, levava o projeto, conversava olho no olho. Hoje nem telefone mais tem para isso. Muitas vezes é só um sistema eletrônico, você envia o projeto por e-mail. Depois, “Infelizmente, seu projeto é muito bom, mas não está no escopo da nossa empresa, não se encaixa”, declara a atriz. Confira abaixo a nossa entrevista com Andrea.
Andrea, conversei rapidamente com a Yara hoje, e ela disse que você é uma atriz de alta performance, extremamente disciplinada.
Que frase bonita! Eu fico muito feliz com o elogio. Diria que ela é uma artista de alta performance, porque além de ser uma grande atriz, é diretora, trabalha no cinema, na televisão, é uma mulher incrível. Mas sim, sou bastante disciplinada.
Como foi esse encontro entre vocês? O espetáculo surgiu dessa vontade de trabalharem juntas, certo?
Sim. Foi há uns dois anos, quase três. Eu procurei a Yara e começamos a falar sobre fazer algo juntas. Convidei ela para tentarmos encontrar um projeto, começamos a trocar ideias, pensar em textos. Encontramos duas possibilidades que gostamos muito, ficamos animadas, mas não aconteceram. Depois veio esse filme, chamado “Zé”, que é um filme do Rafael Conde. Baseado na história do líder estudantil José Carlos da Mata Machado.
A história é do Samarone Lima de Oliveira, um autor e poeta pernambucano. A Yara foi fazer o papel da mãe do Zé Carlos no filme, e tinha essa personagem Mércia, uma advogada que conseguiu a exumação do corpo e a devolução para a família.
A Yara ficou muito impressionada com essa personagem. No filme, essa parte acabou ficando de fora por questões narrativas, mas a Mércia ficou na cabeça dela. A ideia da peça é totalmente da Yara. Ela começou a procurar e chegou ao Roberto Monte, que é do Rio Grande do Norte, advogado, muito ligado a direitos humanos, uma pessoa incrível. Ela falou com ele, e ele confiou nela, entregou os diários da Mércia para a Yara.
A Yara leu e me enviou também, me contou o tema. No começo, eu disse: Yara, acabei de fazer Antígona por sete anos, não sei se quero mexer com mortos de novo.” Acho que ela ficou meio decepcionada, mas disse que eu devia ler. Quando eu li, fiquei envolvida na história, não consegui mais parar de pensar. Tenho 61 anos, conheço bem essa história, vivi parte dela, embora fosse criança na época. Fiquei muito impactada com a Mércia, uma mulher que eu nunca tinha ouvido falar.

Como foi o diálogo com Yara e a dramaturga Sílvia Gomez durante o processo criativo?
A Yara convidou a Sílvia Gomez, o que achei ótimo. No começo pensamos que talvez não virasse peça, pois um diário tem sua beleza, mas também sua crueza, e talvez não fosse suficiente para teatro, que é o que gostamos de fazer: contar histórias.
Mas a Sílvia encontrou a chave, a fórmula mágica. Virou peça e foi muito legal. Quando estreou, não tínhamos a menor ideia do que aconteceria com esse espetáculo sobre um tema bizarro, sinistro. Nem o filme “Ainda estou aqui” havia lançado ainda, estávamos muito sozinhas naquele momento.
Você acha que, depois de tudo que aconteceu com “Ainda estou aqui”, isso dá uma nova dimensão para a peça?
Não penso assim, seria leviano com o trabalho que fizemos. Estreamos numa quinta-feira, dia 4 de janeiro de 2024, e já no terceiro dia de temporada estava tudo esgotado. Na primeira semana, já abrimos sessão extra. Eu fazia duas sessões aos sábados e cinco por semana. O espetáculo foi muito bem, gerou um grande entusiasmo.
Vocês não imaginavam essa recepção?
Não. A expectativa é um veneno, porque você cria muita expectativa e nunca sabe o que vai acontecer. Quando a gente faz um trabalho, tantas variáveis entram: opinião, ambiente, crença, seja lá quem for. Quando alguém começa a desenvolver um trabalho artístico, realmente só se sabe depois como vai ser o resultado. Não tem como saber antes, exceto se houvesse uma fórmula mágica.
Você mencionou numa conversa anterior a ideia do fracasso, mas todas as suas peças fazem muito sucesso, você é sempre indicada a todos os prêmios. Então é curioso ouvir você falando sobre isso, sendo que na realidade as pessoas reagem tão intensamente ao seu trabalho.
Ah, eu fico muito lisonjeada com isso. Eu faço uma peça, as pessoas se interessam, querem ver, curtem, gostam do texto, do que eu estou fazendo — do conjunto da obra. Acho isso maravilhoso, muito legal. A gente chama isso de sucesso, mas isso é fruto de um desespero.
Eu aprendi com meus mestres — Aderbal Freire Filho, Amir Haddad, Yara de Novaes, Márcio Abreu, Kike [Enrique] Díaz — que não existe um jeito certo, não dá para saber tudo antes. E eu não tenho problema nenhum com os fracassos que tive, porque, na hora, eu gostava do que estava fazendo, estava cheia de confiança. Não se joga isso fora, é parte do caminho.

Mas você ainda sofre muito com essa antecipação?
Não, não sofro no sentido forte da palavra. Trabalho muito, gosto do ofício. É um trabalho solitário também. Na hora do estudo, quando você está sozinho preparando tudo: lendo livros, ouvindo música, pensando nos filmes e atores para se inspirar. É uma montanha a subir. Você se pergunta: por que subir a montanha? Porque ela está lá. É difícil, turbulento, mas é uma delícia.
Você chegou a falar, na última vez que conversamos, sobre deixar o texto no palco caso esqueça algum trecho. Você continua fazendo isso nessa peça?
Sim, eu deixo o texto dentro da pasta da Mércia, que é a personagem. Dentro dessa pasta, que é uma pasta de advogada, estão os textos dela, o meu texto, tudo junto. Ele está em cena comigo o tempo todo.
E você já precisou recorrer a ele?
Ainda não, estou conseguindo me virar bem. (risos)
Você saiu de um solo para outro. E no meio disso veio a pandemia. Como foi esse processo?
Pois é. Fiz o solo, depois parei com “Antígona” por causa da pandemia — o mundo parou. Quando voltamos, convidamos o Márcio Abreu e o Kike Díaz para dirigirem um espetáculo de reabertura do Poeira. O Aderbal já estava doente, então ele não pôde participar. Chamamos também Renata Sorrah e Ana Baird, e fizemos “O Espectador”, uma adaptação do texto do Matèi Visniec. Foi sensacional reabrir o Poeira com essa peça.

Parece que foi uma festa!
Foi mesmo. Uma peça feérica, divertida, cheia de textos lindos e poesias. Tinha uma relação horizontal com a plateia, que era o que estávamos buscando naquele momento — trazer o público de volta com um contato mais direto, como o Aderbal e o Amir sempre gostaram.
E tem uma história muito legal no dia da eleição. No segundo turno, Lula e Bolsonaro. A gente não cancelou a peça. A sessão era às 7 ou 8 da noite, e a apuração rolando. Chegamos no teatro, liguei a TV no celular, e ficamos ouvindo. E aí a gangorra começou — aquela montanha-russa de emoções. A gente ficou sofrendo. Quando entramos em cena, o Lula ainda estava perdendo. E a gente pensava assim: “Quem é o doido ou a doida que vai vir ver essa peça hoje? Quem teria essa coragem, essa loucura, de esquecer de cancelar o espetáculo, achando que essa eleição seria uma coisa natural?” E nós, em pânico, de verdade, em pânico. Mas aí, bom, a gente decidiu fazer a peça. A plateia estava praticamente lotada.
Começamos a peça e, eu, que sou sempre muito enxerida, combinei uma coisa com a equipe técnica: combinamos que se o Lula ganhasse, o sinal era o polegar para cima. Mas se desse tudo errado, se ele perdesse, o sinal era o polegar para baixo. Aí, a gente brincava que ia cortar a própria cabeça, de tão desesperadas que estávamos. E a peça foi rolando, eu não parava de olhar para cima, esperando o sinal, mas nada vinha. O tempo foi passando, e a gente sentia que o público também estava meio apreensivo.
De repente, uma senhora na plateia, que estava olhando no celular e não conseguia se segurar, gritou: “Deu, deu!”. A gente perguntou: “O quê?”. Ela respondeu: “Lula, deu, Lula!”. E aí, foi uma loucura dentro do teatro. Foi inacreditável, um momento que só o teatro proporciona. A gente parou a peça, começou a gritar, a perguntar, nem acreditava. Todo mundo aplaudindo, chorando. Foi uma emoção enorme, sensacional mesmo.
E vocês retomaram a peça?
Claro, com a maior alegria. A gente ria, mas era aquela alegria intensa, única, porque foi um desses momentos que só o teatro oferece. Só no teatro a gente pode viver aquilo com aquelas pessoas que a gente não conhece — não sabe o nome, de onde vêm, onde moram, seus gostos, seus amores, nada disso. Público maravilhoso, que a gente não sabe quem é, mas que ama. Foi incrível, maravilhoso, uma experiência que essa peça, além de tudo, carrega como uma cereja no topo.

Que história! Imagino que essa peça foi um respiro no meio de dois monólogos que tratam de assuntos tão duros. E sobre o seu contato com a história da Mércia, o que na trajetória dela mais te tocou?
Olha, o primeiro ponto é que fiquei muito surpresa por nunca ter ouvido falar dela antes. Eu sou uma pessoa muito curiosa, leio muito, acompanho notícias mesmo sem ter rede social, leio jornais, assisto noticiários. Li bastante sobre a ditadura, mas nunca tinha ouvido falar da Mércia. Mas aí pensei: “Ah, é lá no Nordeste”. Às vezes essas coisas parecem tão distantes, incompreensíveis mesmo. Vou te contar uma história antes de voltar para a Mércia. Quando o Marieta [Severo] e eu fazíamos As Centenárias…
Eu lembro dessa peça, era maravilhosa.
Era mesmo. E talvez ela vire filme, está quase. Torce aí, porque está quase. O Newton Moreno escreveu um roteiro para o cinema, que está com o Maurício [Farias] para produzir e dirigir. O roteiro ficou maravilhoso.
A gente estava apresentando As Centenárias no Sul. A peça fala de duas carpideiras que vivem no sertão do Cariri, no Nordeste. Saiu uma crítica num jornal dizendo que aquele espetáculo não tinha lugar ali, que era um tema que não dizia respeito àquela cidade — que a região retratada era muito distante e não se conectava com a cultura local.
Uma demonstração de preconceito.
Foi um absurdo. E, mesmo assim, a plateia estava lotada. Tudo vendido, quase tivemos que fazer sessão extra. Havia fila, briga na porta. A relação com a Mércia é que ela era nordestina, do Recife. Me senti mal pela minha ignorância de não conhecê-la.
Os relatos dela são muito impressionantes. Ela fala com detalhes: nomes, sobrenomes, horários, quem fez o quê, quem entregou, quem torturou. E, dentro disso, tem uma coisa muito marcante: a relação dela com as mães e pais dos perseguidos políticos e torturados. Ela começa contando como se envolveu juridicamente com Gregório Bezerra, que ela viu ser colocado na rua, apanhando com barra de ferro, vestido só de cueca, com os pés queimados com ácido sulfúrico, a cabeça com os cabelos arrancados com alicate, recebendo pancadas de um general.
Era uma cena chocante: Gregório amarrado pelo pescoço e pelos pés, enquanto passava diante de uma escola cheia de crianças. A Mércia era professora nessa escola. Apesar de já ter diploma de advogada, porque a família insistiu que ela fizesse medicina, mas ela não quis; tinha nojo de sangue e de gente morta, não conseguiu seguir. Ironia da vida, vai entender.
Ela não conseguiu fazer medicina, negociou com o pai, que era um homem autoritário. Ele disse: “Então você faz Direito, e depois será professora.” Ser professora de crianças era o sonho dela. E lá estava ela, vendo aquelas crianças e aquele homem amarrado, e foi atrás para oferecer ajuda. Disse: “Olha, eu sou advogada, posso cuidar do seu caso.”
Gregório disse que já tinha advogado, mas ela se dirigiu ao escritório desse advogado e se ofereceu para estagiar. Depois disso, avisou o marido em casa: “Agora vou defender todo mundo que precisar. Presos políticos, presos comuns, quem bater na minha porta, eu vou defender. Vou mudar minha vida.” O marido aceitou e ela começou essa trajetória.
Esse relato é impressionante.
É muito bonito, porque para quem tinha medo de sangue, de corpos mutilados, ela se revelou uma mulher de coragem impressionante. Ao mesmo tempo, era uma pessoa que adorava receber gente em casa. A casa dela era uma loucura, de tão cheia que estava. O Samarone entregou uma fita para a Yara, que a gente ouviu, era uma gravação de quase duas horas de entrevista que ele fez com a Mércia, na casa dela, para ajudar a fazer o livro.
Naquele ambiente, parecia que havia 80, 100 pessoas. A casa da Mércia era um lugar onde todo mundo podia tocar a campainha, entrar, se esconder, tomar banho, pegar comida, almoçar, tomar café, conversar, chorar, desmaiar, dormir. E essa fita é recriada musicalmente na peça, de forma muito bonita. Trabalho do meu filho (Chico Beltrão), que vou revelar aqui, porque não tem por que esconder.
A relação da Mércia com as mães e pais dos perseguidos é avassaladora, emocionante, atordoante. Ela não abre mão disso. É muito forte. E, além disso, ela vivia intensamente a vida. Todo ano, no auge da ditadura, ela pintava o cabelo de verde, roxo, rosa, azul, turquesa, se fantasiava para entrar nos hospitais, às vezes de enfermeira, para conseguir passar pela batida e visitar alguém que estava preso ou torturado, levava bilhetes.

Sensacional! A história dela não é tão conhecida, e é incrível pensar que, se fosse um homem, em São Paulo ou Rio, talvez tivesse muito mais visibilidade.
Tem muitas questões, mistérios dessa invisibilidade. O importante é que agora a história está aí, disponível para quem quiser conhecer. O livro, editado pelo Roberto Monte, que reúne os Diários, está vendendo muito. As pessoas saem da peça e a maioria acaba comprando o diário da Mércia, que é um verdadeiro soco no estômago, uma leitura difícil, intensa.
Agora, mesmo com certo atraso, Mércia chega e desperta o interesse do público, que corre para comprar ingressos e conferir a peça. Eu acho isso demais, é algo realmente incrível. Fico muito feliz com esse acontecimento, que veio de forma inesperada, sem que a gente buscasse ou imaginasse.
Que tipo de escuta você espera provocar no público com Lady Tempestade?
Quando você está fazendo um trabalho, quer que ele ganhe corpo, vida, sangue, como se tivesse carne; mas o sucesso é algo que não dá para forçar, porque ele é rebelde. O teatro, aliás, é muito rebelde, selvagem. Quando percebe que você está cheio de intenções, ele rejeita. O teatro exige pagamento imediato, ele cobra ali na hora. Isso foi o que aconteceu com a Mércia, e foi muito legal.
A propósito, a OAP (Ordem dos Advogados de Pernambuco) criou uma medalha linda em homenagem à Mércia, uma medalha de honra que será entregue a alguns advogados do estado. Eu achei muito bonita essa iniciativa. Não sei se já estava sendo idealizada antes, mas de alguma forma coincidiu com o espetáculo, e isso foi bem legal.
E, Andrea, em algum momento você encontrou pessoas na plateia que tiveram familiares, amigos desaparecidos durante a ditadura?
Toda noite, Humberto, toda noite. Era uma experiência muito difícil, porque essas pessoas traziam muita emoção e histórias delicadas. Muitas vezes, nem me deixavam sair do palco sem me abraçar, me contar sobre seus maridos, filhos, parentes.
Recebi também a visita de pessoas que se identificavam diretamente com os personagens da peça, como uma neta do Cândido (Cândido Pinto de Melo, estudante, assassinado aos 22 anos), que eu tinha acabado de mencionar. Foi muito forte e bonito. A família do Ramires (Ramires Maranhão do Valle, estudante, desaparecido em 1973, aos 23 anos), um jovem que Mércia defendia com muita paixão, também veio assistir. A Mércia era completamente apaixonada pelos jovens que defendia. Ela era uma mulher louca pela juventude. Ela ficava indignada com a matança de estudantes e camponeses igualmente. Mas com os jovens, ela ficava fora de si. A família do Ramires me entregou um livro chamado Revolução e Guitarra, contando a história dele, e me pediu para ler. Foi muito emocionante.
Durante cerca de uma semana, sempre que eu falava o nome do Ramires em cena, sentia um nó na garganta. Para mim, que trabalho com criação de imagem e formação, é fundamental acreditar e dar vida a esses nomes, para que eles se tornem pessoas reais para o público.
Quando alguém chega e diz: “Eu sou neta, irmã, filha, mãe de um deles”, ou “Eu era companheira deles à noite”, isso torna tudo mais forte, mais vivo. Mas é importante saber a medida certa para contar essa história, não é para ser dramático ou lacrimoso, porque a realidade já é terrível por si só.
Há um pensamento que achei bonito, talvez do Italo Calvino ou outro escritor, que diz o seguinte: a primeira lágrima do ator é porque ele está emocionado; a segunda é porque ele está emocionado por ter se emocionado. Isso pode parecer estranho, mas é uma maneira de enxergar a atuação — embora, claro, todo mundo seja humano e frágil, e as emoções venham naturalmente.

Você mencionou no início da nossa conversa que foi adolescente na época desses acontecimentos. Tem lembranças fortes desse período?
Tenho muitas lembranças pessoais, sim. Foi muito próximo da minha casa. Apesar disso, o trabalho de revisitar essa história não me abala emocionalmente. Eu participei, acompanhei, sofri de certa forma, mas isso é uma coisa pessoal, ligada aos meus próprios demônios e fantasmas, que não têm nada a ver com o espetáculo.
O que realmente é difícil é lidar com a força que a peça provoca. É preciso saber o que fazer com essa força para que ela se transforme em algo bom, e não em uma exaltação descontrolada.
Tocar nessa história agora também é revisitar suas memórias?
Não é só para mim, não, de jeito nenhum. Não é um negócio pessoal, é algo muito maior, envolve muita gente, muitos nomes. Então acaba sendo algo que transborda para todo mundo. É realmente uma coisa coletiva. E aí, olha, a Yara foi a cabeça desse projeto desde o começo.
Como foi ser dirigida pela Yara?
Ah, na minha opinião, ela é simplesmente extraordinária, genial, uma coisa fora do comum. É muito bom, muito leve, muito alegre, muito feliz, mesmo tratando de um assunto tão pesado, tão difícil, que chegava a nos deixar sem fôlego. Mas é muito legal, de verdade. Eu adoraria, de coração, trabalhar com ela de novo imediatamente.
A peça ganhou uma adaptação para o cinema, o que muda nessa maneira de contar a história?
A gente já viu o primeiro corte. Quando eu estava fazendo Antígona, aí veio a pandemia, e o teatro ficou vazio. Só poeira, poeirinha. E aquilo tinha tanta coisa a ver com o que a gente estava vivendo naquele momento — aquela mulher, aquela jovem querendo enterrar o irmão, e ele que ia ser devorado. Na pandemia, as pessoas tinham que se despedir dos seus entes queridos sem poder ter a família junto, só uma ou duas pessoas podiam ir. Era um absurdo, parecia até valas abertas. Uma tragédia grega muito intensa. Foi daí que a gente pensou: “Vamos fazer um texto, vamos contar isso”. Fizemos o filme, ficou muito legal.
Temos essa alegria, essa paixão de filmar as peças. E a gente fez isso, o Maurício [Farias] fez um primeiro corte, mas ainda estamos procurando o caminho. Ele não está satisfeito, está trabalhando ainda. Mas o interessante é o que ele fala: ele não quer transformar aquilo em cinema no sentido tradicional.
Para virar cinema, teria que ser tudo diferente, completamente outro formato. Esse filme não é isso. Eu não gosto muito da palavra, mas é quase um registro, uma peça filmada, mas de um jeito estranho, diferente.
É verdade que Lady Tempestade foi montada sem patrocínio nenhum?
Até hoje estamos sem patrocínio. No SESC, ele proporciona uma temporada de cinco semanas, com um apoio. Eles compram os espetáculos. Isso é uma beleza.
Foi uma escolha seguir independentes?
Não foi uma escolha nossa. Eu gostaria muito de ter patrocínio, estou lutando por isso há muitos anos, mas não está rolando para mim, não. Nem para mim, nem para Marieta Severo.
Eu confesso que imaginei que fosse muito mais fácil para vocês conseguirem apoio para os seus projetos.
Olha, Lady Tempestade não tem patrocínio, a gente já andou por aí, conversou, mas só dizem “Não, não é para a gente.” Só para deixar claro, não foi escolha nossa, não foi opção de ninguém, de jeito nenhum. E olha que, claro, tem patrocínio que a gente diz “Não, essa peça não pode.” Com certeza, não pode ter patrocínio daquela empresa ali, da tal, não rola.
Para a gente foi zero, nada. E as pessoas precisam ser remuneradas pelo seu trabalho, pelo seu tempo, pela sua dedicação criativa, pelas horas pensando no projeto, pela entrega, tudo isso.
E quanto ao Teatro Poeira, ele segue sem apoio?
Nem o Poeira tem patrocínio. Mandamos projeto para quase 50 empresas, não fomos pessoalmente, mandamos só o projeto.
Antes a gente ligava, falava com secretárias, marcava uma conversa, levava o projeto, conversava olho no olho. Hoje nem telefone mais tem para isso. Muitas vezes é só um sistema eletrônico, você envia o projeto por e-mail, aí respondem com um “Acusamos o recebimento.” Depois, “Infelizmente, seu projeto é muito bom, mas não está no escopo da nossa empresa, não se encaixa.”
No Teatro Poeira, a exigência em relação ao escopo do projeto é ainda mais rígida. Enviamos propostas robustas, prevendo um ano inteiro de ocupação. O idealizador e principal articulador do Poeira foi Aderbal Freire-Filho, e sua presença continua viva, agora ao lado de Marieta Severo e de mim. Quando decidimos fundar o teatro, optamos por comprar e reformar duas casas contíguas, arcando com todos os custos com recursos próprios. Não houve qualquer financiamento externo.
Nem mesmo no início?
Para a reforma do Poeirão e do Poeirinha, a gente contou com o apoio de algumas empresas. Todas elas estão lá no nosso site, com o nome de cada uma. Algumas empresas cobravam metade do preço [para a reforma], porque a gente ia lá, conversava, e as pessoas se interessavam. Foi mais ou menos assim. Mas a gente queria mais, não queria só ser um teatro que recebe uma pauta. A gente queria que o teatro tivesse vida, durante manhã, tarde e noite. A gente queria uma geração de experimentação ali dentro, com erros, acertos, tentativas e erros, tudo misturado.
E queríamos chamar artistas do Brasil inteiro, e também de fora do país, para ministrarem aulas e oficinas gratuitas. E assim funcionou durante três anos, primeiro com a Eletrobrás, que apoiou e patrocinou a gente.
Quando a Eletrobrás deixou o patrocínio, conseguimos o apoio da Petrobras, que nos manteve por 11 anos. Mas, com a eleição do Bolsonaro, uma das primeiras medidas foi justamente cortar todos os patrocínios para a cultura.
Durante esses 11 anos de patrocínio da Petrobras, somados aos 3 anos da Eletrobrás, o Poeira se transformou em um polo cultural importante. Se você entrar no site, verá que muitos artistas vieram ministrar cursos no Poeira, grupos de teatro nasceram ali, aconteceram seminários sobre tragédia grega, teatro alemão, e estudos de tantos autores.
Esse patrocínio era fundamental para a produção desse tipo de saber. Tínhamos um artista residente, o Amir, que ficava três meses ocupando o teatro, todas as manhãs, no horário que escolhesse. Claro que precisava cumprir a carga horária mínima estipulada pelo projeto da Lei Rouanet, e recebia uma verba para desenvolver sua pesquisa artística.
Esse é o projeto do Poeira, mas ele não se encaixa em nenhum modelo convencional, é difícil explicar. E tudo isso ficou muito mais complicado após o governo Bolsonaro, que fragilizou ainda mais esse tipo de incentivo cultural. Hoje, estamos aguardando, sempre com confiança.
Com muita frequência, escutamos que o Poeira e o Poeirinha já são dois grandes patrimônios da cidade.
São teatros que foram pensados e construídos com simplicidade, mas feitos por pessoas que amam a arte e dedicaram a vida inteira a isso.
Andrea, sei que precisamos encerrar, mas última pergunta. Você tem uma carreira belíssima. Quais expectativas você ainda guarda? O que ainda deseja fazer?
Eu tenho muitas vontades. Às vezes, começo a planejar uma coisa, penso “vou seguir por aqui, começar a trabalhar nisso”. Mas ainda não tenho nada definido. Também não me preocupo tanto, porque às vezes surge um convite bacana no meio do caminho que muda tudo. Então, deixo as possibilidades abertas. Tenho muita vontade de fazer ainda muita coisa, só não sei exatamente o quê.
Minha ansiedade, eu joguei no mar, deixei lá, longe. O importante é continuar trabalhando, conhecer gente nova, colaborar com velhos parceiros, misturar histórias diferentes. Não importa se o papel é grande ou pequeno, desde que seja bom.
Tomara que venha mais um projeto com você e a Yara.
Ela está cheia de convites. É preciso pegar senha para conseguir uma chance! Ela deve estar com a agenda cheia até 2027 — chata, né? (risos)