Lições sobre o fracasso com Andréa Beltrão
Ouvir Andréa Beltrão falar sobre fracasso é um grande paradoxo, mas para ela é inevitável começar um novo trabalho sem esse medo presente
Andréa Beltrão está sentada em um banco, no canto da semi arena do teatro Poeira, no Rio de Janeiro. Já está caracterizada, observando o público entrar. Sorri para alguns, dá boa noite. Ela está só, afinal trata-se de um monólogo que será apresentado em instantes. A peça é Antígona, não o texto integral da tragédia grega, escrito por Sófocles, mas uma adaptação contemporânea. Andréa aceitou a missão de enxugar o texto e contá-lo de uma maneira que não fique dúvidas sobre quem é essa personagem histórica e qual é a sua linhagem familiar.
Quando Andréa disse, há quatro anos, a Amir Haddad, diretor do espetáculo, que queria adaptar a tragédia que conta a história de uma mulher que luta pelo direito de enterrar o irmão, ela não sabia o por quê e nem ao certo como fazê-lo. Parecia uma tarefa árdua demais. No texto original, são 15 personagens. Sem falar que foi escrita há 2.500 anos. Só sabia dizer que era uma narrativa que a comovia demais, e que parecia ter profundas relações com o presente apesar de tão antiga. No ano seguinte, o mundo foi atingido pela pandemia e muitos, de fato, se viram, impedidos de enterrar os seus. Sua intuição parecia correta.
A atriz sentada observando a plateia chegar pode parecer encenação, uma parte não declarada do espetáculo. Mas muito mais do que isso, é o jeito como Andréa encara seu ofício. Para ela, não há diferença entre ela e o público que a assiste. A única, talvez, é que ela tem uma história para contar, e o público está ali para ouvi-la. Uma diferença grande, sem dúvidas, mas o que ela quer é que aqueles que a assistem saibam é que ela é só mais uma pessoa, com uma casa e família para onde voltar. Acima de qualquer coisa, aquele é um encontro, onde tudo pode acontecer e não há como lutar contra isso.
Quem já assistiu Andréa Beltrão em cena pode concordar em uma coisa: seu absoluto controle sobre seu corpo, sua voz, o espaço, a cena, suas emoções, e se bobear, até mesmo a emoção dos espectadores. Mas não é bem assim que ela enxerga. Ela tem uma profunda crença de que sua profissão, como qualquer outra, está sujeita a erros, deslizes e até mesmo fracasso. Mais importante: ela não está interessada em iludir ninguém. E está disposta a voltar atrás quantas vezes forem necessárias. Mesmo que isso signifique esquecer sua fala em cena e ter que recorrer ao texto, jogado no canto do palco, naquele mesmo instante. “Já tive brancos em cena que tive que voltar e falar ‘Gente, só um minuto, eu esqueci o que tenho que dizer agora, vou olhar aqui no texto.’ Aí fui e olhei no texto.”
Esse jeito de lidar com as coisas é o mesmo fora dos palcos. Ser atriz não fazia parte de seus planos. Pode soar uma surpresa para quem há décadas acompanha seus trabalhos no cinema, no teatro ou na televisão. Durante 9 anos invadiu a sala de milhões de brasileiros com a série A Grande Família, um dos maiores sucessos do gênero da TV aberta. Desde muito jovem, ela sonhava em ser uma nadadora. “Eu queria ir para as Olimpíadas. Aos 11 anos, parei de nadar porque não conseguia acompanhar os tempos necessários. Vi que não ia chegar onde imaginava”, ela conta. Esse foi o primeiro desvio de rota.
Tirou da cartola um plano b. Começou a jogar vôlei, chegou a treinar no Clube Flamengo, ao lado de grandes figuras do esporte, como Isabel Salgado e Jaqueline Silva. Mas machucou o joelho e viu que aquele também não era seu lugar. A régua nos esportes é um pouco menor do que em outras profissões, é possível antecipar o quão viável será uma carreira diante de variantes físicas. E pela segunda vez, Andréa precisou abrir mão de um sonho. O encontro com o teatro surgiu ao acaso, como uma atividade que apareceu para preencher os espaços que ficaram vazios
“Já tive brancos em cena que tive que voltar e falar ‘Gente, só um minuto, eu esqueci o que tenho que dizer agora, vou olhar aqui no texto.’ Aí fui e olhei no texto”
Andréa Beltrão
“Foi num período de limbo, sem saber o que fazer, em que só estava estudando e o meu padrinho, que é meu tio materno, falou: ‘Você está muito largada. Você vive aí contando histórias, imitando todo mundo, por que não faz teatro?’.” Então, seguiu o conselho. Foi ao Tablado fazer uma aula e de lá não saiu mais. “Fiquei encantada com aquilo tudo, em estado de choque de subir no palco e representar.”
Nos esportes havia um fator concreto que a impedia de continuar. No teatro, as variáveis eram mais subjetivas. “Muitas vezes você pode fazer um trabalho que não é bem sucedido, por exemplo, de público ou de crítica, mas de alguma maneira alguém pode enxergar em você alguma coisa que vai vestir bem em outro trabalho, e você consegue uma nova chance.”
A relação com o palco foi amadurecendo como um relacionamento estável, apaixonado, também inesperado e repleto de perguntas. “Nunca tive um pensamento de que teria uma carreira. E estava cheia de dúvidas. ‘Será que vai dar certo? Será que eu vou continuar? Será que vai pintar outro trabalho?’ O desejo era imenso, mas eu sabia que aquela era uma carreira difícil de ser continuada.” O forte pé na realidade fez com que Andréa não apenas tivesse que rever os planos de carreira, mas também se movesse com uma preocupação que até hoje a acompanha: o medo do fracasso. “Não consigo imaginar começar um trabalho sem pensar na possibilidade do fracasso, da vergonha. Tudo isso é um terreno do qual você não consegue escapar. Você tem que contar com aquilo, de não conseguir fazer, de não acertar”, declara.
Pensar no quão bem sucedidas são nossas escolhas faz parte do cotidiano do cidadão comum. Quem nunca se revirou pela madrugada repensando os fracassos da profissão? Parece algo inerente ao ser humano. No entanto, testemunhar uma artista extremamente popular, que tem domínio absoluto de seu ofício e que é reconhecida por tal, ter essas mesmas preocupações, parece um grande paradoxo. No caso de Andréa Beltrão, aquilo que se estabelece como um obstáculo, o medo do fracasso, o medo do descontrole, é também um fator que impulsiona sua arte, sua força. Como se houvesse uma harmonia no caos. E há um exemplo concreto de como isso se ocorre. Todos os dias, ela acorda bem cedinho para nadar no mar. É um hábito que adquiriu e que a mantém sã, ela diz. Quando entra na água, ela sabe que ali quem manda não é ela. É preciso flutuar conforme o temperamento e ritmo das ondas. É necessário se desprender da urgência de controlar tudo em sua volta, até mesmo o tempo. Nenhuma obrigação tem impacto ali. Quase como se o controle ali fosse mínimo. E ela gosta.
Para ela, o palco é um pouco como o mar. Certa vez, Andréa estava chegando ao fim de seu monólogo Antígona até que um senhor na segunda fileira se levantou. Ela olhou para ele e viu que o homem estava muito pálido. Num instinto, perguntou se ele estava bem. “Eu estou me sentindo muito mal”, ouviu em resposta. Ela, então, disse que o ajudaria, deu a mão para ele e caminharam juntos para fora do teatro. “Seria terrível deixá-lo sair na minha frente e fingir que não estava vendo. Teria perdido tudo que tentei abordar nos 50 minutos anteriores. Eu havia acabado de falar a seguinte frase: ‘Os limites do homem são dois: a morte e o outro, seu semelhante, aquele que ele vê e não enxerga’. Tinha dito essa frase 10 minutos atrás. Então como é que eu não ia ver uma pessoa passando mal na minha frente?”.
“Muitas vezes você pode fazer um trabalho que não é bem sucedido, por exemplo, de público ou de crítica, mas de alguma maneira alguém pode enxergar em você alguma coisa que vai vestir bem em outro trabalho, e você consegue uma nova chance”
Andréa Beltrão
Em outro dia de apresentação, Andréa foi novamente atravessada por alguém da plateia. “Tinha um rapaz na plateia, que entrou muito contente com a namorada, olhou para mim e deu um sorriso que me atravessou, e eu fiquei super emocionada. Durante toda a peça, quando eu olhava para ele, me dava vontade de chorar. Por quê? Não sei exatamente. Perdi um irmão que tinha 19 anos, na época eu tinha 30. Será que eu estava vendo nele o meu irmão? Não sei, mas ele me emocionou muito em alguns momentos. Eu ficava com os olhos cheios d’água, com a voz embargada, em momentos que não era para eu estar chorando.”
Sempre que ela se emociona fora de hora, sente que está traindo um de seus ídolos, Marcello Mastroianni, que dizia que quem deve chorar é o público, não o artista. Mas ela é pura água, chora sempre, não dá pra controlar. Aos poucos, no entanto, ela vem aceitando essas particularidades. Se libertar da obrigação de alcançar a perfeição foi um trabalho conquistado a duras penas com o diretor Amir Haddad. “Diante do medo, da angústia de estar sozinha ali, eu tive que abrir mão rapidamente da busca da perfeição, do não errar, do acertar todas as noites. Eu me liberei dessa obrigação.”
Recentemente, Andréa viveu uma das alegrias de sua carreira. Dividiu o palco com Ana Baird, Marieta Severo e Renata Sorrah, na peça O espectador, dirigida por Enrique Diaz e Marcio Abreu. Ali, a delícia era, justamente, compartilhar o erro e fazer dele algo leve. “Muitas coisas aconteceram durante a peça, muitos erros, muitos tropeços muitas gargalhadas. O público via que a gente estava errando e ria junto. Foi muito maravilhoso. E as amizades que você faz no palco, quando verdadeiras, elas são para sempre.”
E como num momento de redenção, quando questionada sobre o que faz um bom ator e uma boa atriz, é justamente aquilo que tem feito quando está em cena. “Prestar realmente atenção, ouvindo as outras pessoas e observando o que está acontecendo. É um lugar singelo. A observação sincera do outro sem julgamento, sem querer imitar, mas buscando entender. Tudo isso, sem esquecer de si mesma.” E, assim, o erro virou acerto.