Avatar do usuário logado
Usuário
OLÁ, Usuário
Ícone de fechar alerta de notificações
Avatar do usuário logado
Usuário

Usuário

email@usuario.com.br

Carolina Bianchi ganha o mundo

A artista que iniciou na cena independente de São Paulo, ela se firmou como um dos grandes nomes do teatro contemporâneo, com um Leão de Prata no currículo

Por Humberto Maruchel
15 nov 2025, 09h00
carolina-bianchi
Carolina Bianchi, fundadora do Cara de Cavalo y Carolina Bianchi (Bea Borgers/divulgação)
Continua após publicidade

Sempre que precisa se apresentar em uma entrevista ou roda de conversa, a brasileira Carolina Bianchi se introduz como escritora, diretora de teatro e performer, uma maneira pessoal de elencar aquilo que está mais próximo de seu coração. Uma espécie de inspiração tomada emprestada da dramaturga Sarah Kane, que fazia o mesmo.

Atualmente, Bianchi pertence ao mundo. Embora ainda jovem (ainda que a idade não seja uma boa régua), tornou-se uma grande referência da história do teatro — ou melhor, das artes performáticas. Seus trabalhos são estudados em universidades nos EUA e debatidos em reportagens do The New York Times e The Guardian, dois dos maiores jornais do mundo.

E não bastasse isso, em julho deste ano, ela foi laureada com o Leão de Prata na Bienal de Dança de Veneza, durante a 19ª edição do Festival Internacional de Dança Contemporânea. Algo que nunca passou por sua mente e, tampouco, ambicionava. Wayne McGregor, diretor artístico da Bienal, resumiu os motivos da escolha: “Extraordinária artista, diretora, escritora e criadora de imagens que frequentemente utiliza seu corpo como elemento central de seu trabalho, desenvolvendo experiências profundamente pessoais, viscerais e coreográficas que nos atravessam e interpelam”.

Uma de suas peças mais comentadas é A Noiva e o Boa Noite Cinderela, apresentada pela primeira vez no Festival de Avignon, em 2023. Nela, Bianchi realiza algo que parecia impensável: ela toma a droga “boa noite, Cinderela” e, aos poucos, perde o controle sobre a narrativa, ficando à mercê dos outros performers. A peça aborda temas como violência sexual e trauma, situações que a própria artista vivenciou, embora o espetáculo não seja autobiográfico. O trabalho também rememora o caso da artista italiana Pippa Bacca, violentada e assassinada na Turquia em 2008, durante uma performance em que percorreria o trajeto da Itália a Jerusalém vestida de noiva. A história torna-se ainda mais dolorosa — se é que isso é possível — ao lembrarmos que o projeto tratava justamente do encontro entre culturas, da crença na solidariedade humana e do desejo pela paz. O vestido de noiva simbolizava um emblema de transformação e esperança.

Por sua vez, a performance de Bianchi foi direta, provocando um momento inigualável de catarse coletiva durante o festival. Ainda que esse nunca tenha sido seu objetivo. Desde então, ela tem percorrido diversos países da Europa apresentando os espetáculos que compõem a trilogia Cadela Força. E, atualmente, está promovendo o segundo capítulo dessa jornada, com a peça The Brotherhood, obra que discute a masculinidade sustentada pela cumplicidade entre homens. A trilogia será concluída no próximo ano, com a estreia de um novo espetáculo.

É aquela velha máxima: “quem vê close, não vê corre.” Até recentemente, Bianchi enfrentou períodos de grande incerteza e angústia, mantendo, porém, o desejo firme de continuar produzindo e aprofundando seus estudos.

Hoje, vive em Amsterdã, nos Países Baixos. No entanto, nasceu em Porto Alegre e estudou e viveu em São Paulo, onde cursou a Escola de Arte Dramática (EAD), na USP, num período em que ainda acreditava que seria uma atriz nos moldes tradicionais. Na EAD conheceu alguns de seus maiores amigos e atuais colaboradores. Fundou seu primeiro coletivo, a Companhia dos Outros, que teve vida longa (10 anos), mas não durou. E depois criou a Carolina Bianchi y Cara de Cavalo, com a qual trabalha até hoje.

Continua após a publicidade

A noção de sua ambição como artista nasceu no período que era estudante. “Foi ali que comecei a entender que meu corpo era um lugar de experimentação — um espaço onde eu queria testar coisas, através da palavra, mas também do movimento. Acho que é aí que começa essa ‘grande confusão’ de como nomear o meu trabalho. Esse desejo de entender como encarnar esses universos literários, de transformar texto em corpo”, contou a artista em entrevista por Zoom à Bravo!

Apesar de ter um nome consolidado na cena independente de São Paulo, ela ainda vivia cercada por inseguranças comuns a muitos artistas brasileiros, que precisam pensar a cada trabalho na sua sobrevivência. Durante a pandemia, a crise se aprofundou, mas também surgiu uma oportunidade: dar continuidade aos estudos em um mestrado na DAS Theatre — Academia de Teatro e Dança, em Amsterdã. Após se debater na indecisão, resolveu ir, e desde então toda a sua trajetória mudou radicalmente.

Ainda que tenha alcançado reconhecimento internacional, ela ainda alimenta o desejo de apresentar a trilogia no Brasil. E continua à espera de um convite que torne isso possível.

Carolina, é muito bom, finalmente, poder te conhecer. Me conta como começou a sua incursão pelas artes cênicas?

Acho que a relação com a palavra, com a escrita, é o princípio do meu trabalho. É de onde tudo surge, o epicentro da minha relação com a expressão artística: é através da palavra.

Tudo o que envolve palavra também atravessa esse meu interesse pelo teatro, que vem desde cedo — a questão da invenção, da história. Nasci em Porto Alegre e vivi lá até o começo dos meus vinte e poucos anos. Depois me mudei pra São Paulo, onde fiz a Escola de Arte Dramática da USP.

Continua após a publicidade

Na EAD, conheci algumas das pessoas que trabalham comigo até hoje. Foi um momento bonito, de começar a ver surgirem amizades e parcerias que atravessariam o tempo comigo.

Depois disso, tive uma companhia com algumas pessoas que estudavam comigo, chamada Companhia dos Outros. Nessa companhia, eu não era diretora, mas foi onde comecei a apresentar dramaturgias que eu já escrevia e imaginava. Sempre trazendo essa conexão com a literatura, a poesia, o ensaio e a teoria — mas também encontrando o corpo como um campo de embate.

Acho que é aí que começa essa “grande confusão” de como nomear o meu trabalho. Esse desejo de entender como encarnar esses universos literários, de transformar texto em corpo.

Depois de dez anos, essa companhia se desfez, e eu comecei o que chamei de Carolina Bianchi y Cara de Cavalo. A ideia era criar um grupo que não se parecesse com o formato tradicional de uma companhia de teatro. Queria algo mais flexível, com pessoas que se reunissem por um projeto e que também pudessem mudar de funções — menos fixo, menos preso a pactos rígidos como o da companhia anterior.

Era também uma forma de afirmar minhas múltiplas escolhas dentro do teatro: ser quem escreve, quem imagina o cenário, quem convida as pessoas pra entrar comigo nessa floresta escura da criação.

Continua após a publicidade

Como foi fazer parte da cena independente por aqui?

As nossas empreitadas não tinham apoio — lembro de mandar milhões de projetos e não conseguir nada. Hoje penso: “Como levantei aquilo?”. Mas vinha de uma urgência, de um desejo de fazer as coisas existirem.

E aí começou a acontecer algo bonito: a gente descobriu que tinha um público. Isso veio muito com Lobo. Apresentamos no Teatro Oficina — dois dias completamente lotados. Foram experiências muito catárticas com o fazer teatral.

Isso, certamente, deve ter mudado seu posicionamento enquanto artista.

Pra mim, foi um grande momento de desabrochar como diretora, como encenadora. Entendi que meu desejo passava por trabalhar com muita gente em cena, por imaginar maneiras de driblar a falta de dinheiro e, mesmo assim, realizar essas empreitadas.

Mas, claro, essas coisas tinham um custo alto pra se manter. Não havia romantização do processo — pelo contrário. Acho que foi isso que, em determinado momento, me fez querer voltar a estudar e dar outro rumo pra essas experiências.

O último espetáculo que fiz em São Paulo foi “Tremor Magnífico”. É importante dizer que tanto Lobo quanto Tremor Magnífico estrearam no Teatro de Contêiner Mungunzá, que acolheu meu trabalho num momento em que muitos espaços se recusaram a apoiar.

Continua após a publicidade

Era um período pré-Bolsonaro, já havia um clima forte de censura moral — com temas como nudez, violência — e meus trabalhos sempre tocaram nessas camadas. O Teatro de Contêiner acolheu meus espetáculos de forma muito bonita, dizendo: “Bora”. E é isso que o espaço faz por São Paulo: abre espaço real pra todo mundo.

Foi lá que estreamos Lobo e O Tremor Magnífico — o último teatro em que pisei em São Paulo. A gente estava no meio da temporada quando começou a pandemia. Tínhamos acabado de estrear a peça e só conseguimos fazer umas três apresentações.

E quando você decidiu ir embora do Brasil?

Foi durante a pandemia. Eu tinha me inscrito para o mestrado na Das Theatre, em Amsterdã. Fui aprovada e fiquei muito nessa dúvida: “vou? não vou?” Tinha também a pandemia, os trabalhos todos caindo, cancelados. Eu realmente não sabia como fazer pra levantar esse plano.

Mas chegou uma hora em que simplesmente fui. Acho que tenho vários momentos na vida em que penso: “Nossa, como fiz essa loucura?” — e esse foi um deles. Foi uma grande loucura. Eu pensei: “Eu vou. Eu preciso estudar. Preciso entender algumas coisas no meu trabalho”.

Eu já tinha chegado num limite — sobre minha presença em cena, sobre como eu escrevia… Tava num lugar bem saturado, e falei: “Quero tentar desenvolver uma pesquisa, preciso me afastar de um território que já conheço pra avançar em outro, mesmo sem saber o que ele seria”. E eu fui.

Continua após a publicidade

E como foi essa decisão?

Foi dura — por questões financeiras, principalmente —, mas foi lindo também. Foi lá que comecei o projeto que sigo fazendo até hoje: “Cadela Força”.

Ele começou justamente nesse período. Eu já vinha fazendo uma pesquisa em que colocava em relação questões de violência sexual e história da arte — temas que já apareciam no meu trabalho de outras formas, mas que ali começaram a se condensar, a ferver. De repente, eu fui colocar isso em prática, escrevendo uma pesquisa que, a princípio, seria uma peça só, muito longa, em capítulos, em que eu passaria por diferentes situações e traria essas perguntas.

A ideia era investigar se a linguagem artística poderia sustentar uma conversa sobre esses temas. Na trilogia, cada capítulo se estrutura em torno de uma linguagem diferente: no primeiro, é a performance art que está no centro das perguntas; no segundo, o teatro e a sua história — seus mestres, seus gênios; no terceiro, a escrita, que é o núcleo da minha experiência e do meu desejo de expressão artística.

De quais inquietações nasceu esse projeto?

A pergunta era: essas linguagens podem sustentar uma conversa sobre a violência sexual, sobre a memória ou a falta de memória dessa violência, sobre suas marcas?E tudo isso sem cair num registro de depoimento pessoal — porque o Cadela Força não é isso.

É um projeto que finca seus ossos na história da arte. É a partir dela — de certos pontos da história da representação e da performance — que essas perguntas são feitas.

Quais foram os contrastes que você encontrou entre o teatro que estava sendo feito na Europa e o teatro independente em São Paulo?

Acho que essa diferença foi se construindo aos poucos. Desde 2015, quando comecei a trabalhar na estrutura da Cara de Cavalo — já são dez anos — eu vinha me aprofundando nesse ciclo que culmina agora com Cadela Força. Naquele momento, o que me interessava era experimentar formas de colocar os textos no papel, entender como criar essas obras, e perceber que cada processo podia ser diferente do outro.

Passei a pensar que talvez cada trabalho precisasse de um vocabulário próprio — um conjunto de práticas, gestos e modos de falar sobre aquela pesquisa. Mas isso não impedia que houvesse continuidade entre as criações. Pelo contrário: todas cavavam o mesmo terreno, como um cachorro que cava eternamente o mesmo buraco.

Nos meus trabalhos, apareciam constantemente questões de gênero, de violência — especialmente a sexual — e uma reflexão sobre a genealogia da história da arte. Eu me perguntava onde eu me situava dentro dessa linhagem de autoras, pintoras e figuras femininas que atravessavam as peças. Lobo trazia Emily Dickinson, Artemisia Gentileschi, Mary Shelley; em Tremor Magnífico, outras autoras e vozes surgiam, como Clarice Lispector e novamente Dickinson.

Com o tempo, fui tecendo uma história, um modo de pesquisa que não se limitava a montar um texto. Era sobre encontrar, junto à equipe, uma forma de atravessar o som, a luz e o corpo — uma forma de estar no trabalho. Esse modo de estar, eu considero performativo: não é apenas representação. A representação está ali, mas o corpo também se coloca num lugar de negociação constante, em que a presença em cena nunca está dada.

Meu primeiro projeto na Cara de Cavalo, Mata-me de Prazer (2015), já trazia essa estrutura híbrida, meio palestra-performance. Era uma espécie de compartilhamento de estudo, em que eu falava sobre sexualidade e linguagem. O texto narrava a história ficcional de um país que se desprendia do continente, onde as pessoas descobriam inúmeras formas de fazer sexo, o que levava a uma nova forma de comunicação.

E como você conseguiu manter o trabalho com o seu coletivo em Amsterdã?

Durante o mestrado, por exemplo, enquanto preparava A Noiva e Boa Noite, Cinderela, mantive uma troca intensa com o grupo no Brasil. Fazíamos encontros quinzenais pelo Zoom. Era pandemia, então o contato presencial era impossível. Eu compartilhava o que estava lendo, as impressões, as dúvidas. Essa relação foi essencial. Eu não conseguia pensar no trabalho fora dessa continuidade.

Você mencionou a genealogia da história da arte e do teatro na trilogia. Gostaria de saber como chegou à estrutura de A Noiva e Boa Noite, Cinderela, especialmente na relação com o autobiográfico. Essa dimensão pessoal já existia antes ou se intensificou nesse processo?

Essa questão do autobiográfico é bem importante pra mim. Na trilogia Cadela Força, existem elementos que vêm da minha experiência pessoal, claro, mas eles nunca são o motor da obra.

Gosto de lembrar de uma frase da Clarice Lispector: ela dizia que não escrevia de forma autobiográfica, mas que sua escrita era pessoal. Eu me reconheço nisso. Minha escrita é pessoal, não confessional. Não há um compromisso com uma verdade autobiográfica que precise ser revelada. Vivemos hoje uma obsessão com a verdade e com o autobiográfico, como se a emoção só fosse legítima se tivesse origem em uma experiência real. No meu caso, o pessoal aparece, mas não como testemunho.

Em Cadela Força, há passagens que partem de experiências minhas, sim, mas a cena nunca é construída a partir de um depoimento direto. É sempre mediada pela pesquisa de linguagem, pela construção de uma forma. A trilogia nasce desse impulso: criar condições de cena para fazer as perguntas que me atravessam, sustentadas por uma investigação estética e política.

Pensar o cenário sempre foi algo importante pra mim. Desde o início, o espaço faz parte da minha escritura. Eu sempre considerei essencial entender como encontrar uma linguagem visual e espacial para o que estou fazendo. Se você olhar meus trabalhos anteriores e depois observar Cadela Força, vai perceber muitos vínculos entre eles; na maneira como o espaço é construído, na disposição dos elementos, no modo como o cenário se abre e se transforma.

E por que a escolha de dividir em episódios?

Há algo de episódico em todos os meus trabalhos. Lobo era dividido em partes; O Tremor Magnífico, da mesma forma. E Cadela Força também — são três capítulos, três partes de “encaixe não harmônico”, como escrevo no texto. Um capítulo não necessariamente continua o outro. Cada um existe de forma independente, mas todos dialogam entre si.

Senti necessidade de dividir o projeto dessa maneira porque precisava de tempo entre a criação de uma parte e outra. Nós mudamos muito. O corpo muda, a vida muda. E, trabalhando com temas como violência e memória, essas transformações se tornam ainda mais intensas. Eu precisava compreender como cada obra reverberava antes de seguir adiante. Sou lenta nesse sentido. Preciso processar as coisas, pensar.

Essa estrutura também se repete dentro de cada peça. The Brotherhood, por exemplo, é formada por vários prólogos, uma grande primeira parte e uma segunda. Essa divisão está em toda a trilogia. No primeiro capítulo, me apresento como diretora e autora, compartilhando alguns estudos. Tenho uma pilha de 500 páginas — o material de pesquisa da trilogia — que vai se modificando ao longo das peças.

Há algo ali sobre a própria escritura: sobre o conhecimento como uma forma de atestar que algo foi pensado, estudado, legitimado. Mas também sobre o enigma dessa trilogia, porque ela parte de um trauma. E o trauma, por definição, apaga a memória. Isso torna a questão da verdade muito ambígua.

Se o trauma apaga, como acessar algo que foi arrancado de você? Essa é a contradição da autobiografia, e por isso ela já começa com uma pergunta, com um problema. No primeiro capítulo, o gesto é repetir: repetir a performance, repetir o apagamento. É também desaparecer dentro da própria peça. Há um momento em que essa ausência acontece em cena.

Tudo isso se relaciona à questão autobiográfica. O que proponho na trilogia é borrar fronteiras, confundir sentidos, porque o trauma não é linear. Ele rompe a lógica, a cronologia. Então o que proponho ali é justamente a não linearidade, a não catarse, o estado de confusão. Como produzir conhecimento a partir disso? Como atestar um pensamento no meio do caos?

A trilogia tenta responder dizendo: “Sim, aqui essa confusão é válida. Essa é a lógica do trabalho. É assim que nós fazemos”.

Tem algo interessante no que você diz. Parece que você é alguém que domina profundamente tudo o que faz — o estudo, a pesquisa, esse dossiê de 500 páginas —, mas, ao mesmo tempo, trabalha com o descontrole. Em Boa Noite, Cinderela, há um momento em que algo acontece e você perde o controle da performance. Você realmente toma o Boa Noite, Cinderela?

Sim. 

E o curioso é que, embora você diga que o trabalho não busca a catarse, o efeito sobre o público parece ser o oposto: as pessoas ficam profundamente emocionadas, as conversas após as apresentações duram horas. Como é lidar com esse descontrole em cena e, ao mesmo tempo, com essa repercussão emocional tão intensa em quem assiste?

Tenho pensado muito nisso, especialmente depois da Bienal de Veneza. O que acontece ali? O que toca tão fundo nas pessoas? Ficamos um tempo sem apresentar Boa Noite, Cinderela porque eu estava estreando The Brotherhood. Voltamos a fazê-lo há pouco tempo, em Londres, e foi muito forte. O teatro inteiro em silêncio. Era um espaço grande, muita gente. E, ainda assim, aquele silêncio era absoluto. Foi uma das experiências mais intensas que já vivi.

Mas é claro que as reações variam. Tem quem ame, tem quem não sinta nada. E tudo bem. O que me interessa é o que há ali de teatral, de imagético, de artístico. Não apenas o trauma ou a violência. A peça está o tempo todo tensionando o imaginário, tentando formular perguntas mais do que respostas.

Essa cataste nunca foi intencional?

Acho que vivemos um tempo em que se buscam respostas unânimes, especialmente para a dor. E o teatro, muitas vezes, acabou sendo tomado por esse desejo de consenso, de fala que provoca concordância. O que eu faço nunca esteve nesse lugar.

Sempre me interessei pela complexidade, pelo que é difícil de dizer, de admitir, de colocar em cena. Não estou ali para ser heroína de ninguém. Estou ali para trazer à tona uma sombra, talvez as perguntas que não têm solução.

Há uma referência que atravessa toda a trilogia: A Divina Comédia. Ela aparece como uma espécie de guia das três partes. Dante se coloca como personagem da própria obra, atravessando a floresta escura. Isso me toca muito, porque criar é um pouco isso: entrar na floresta escura da criação. É se ver ridículo, frágil, sem poder. É se ver minúsculo diante do próprio trabalho. E é ali, nesse descontrole, que algo verdadeiro acontece.

A experiência da trilogia Cadela Força me trouxe muitas reflexões. Por exemplo, quando entramos com aquele carro com a placa escrito Fun Catarsis, não estou dizendo às pessoas que nessa peça elas não vão sentir nada. Cada um sente o que quiser. O que faço é uma provocação diante do tema que estamos abordando.

Para mim, enquanto artista, a catarse em cena não apaga a dor. A dor do trauma continua. Não estou ali para dizer: “Esta peça vai curar vocês ou a mim mesma.” A obra mantém essa dureza no discurso, e eu acredito nisso profundamente.

Não se trata de instruir o público sobre como sentir ou se haverá catarse. A emoção das pessoas é legítima, mas não é o motor do trabalho. Para mim, a catarse é uma provocação, um lembrete de que eu, como artista, não serei salva pelo meu próprio trabalho. A jornada é longa, o reconhecimento chega, mas a dor e as marcas permanecem. Elas podem mudar de lugar no meu corpo ou na percepção de quem assiste, mas continuam ali.

E em relação ao Leão de Prata, o que mudou para você depois disso?

Tudo. Concretamente, mudou tudo. Mas, na verdade, o momento em que aquilo aconteceu foi louco. Nunca tinha imaginado algo assim, não fazia parte do meu vocabulário de possibilidades.

Houve um discurso muito bonito de Wayne McGregor, que escolheu o prêmio. Ele destacou a presença do corpo, não apenas o meu, mas de todos os performers. Reconheceu o impacto físico e artístico de Boa Noite, Cinderela. Esse momento foi um reconhecimento de anos de trabalho, de pesquisa, de parceria e de complexidade.

O prêmio não reconhece apenas uma performance ou um corpo em cena. Ele reconhece toda a sombra, toda a complexidade do trabalho, 10 anos de criação contínua, parcerias, pesquisa, tudo que foi construído fora do mainstream brasileiro. É um reconhecimento que abre espaço para novas leituras e possibilidades de trabalho.

Você tinha colocado como meta concluir a trilogia até 2027, certo?

Não, eu vou terminar no ano que vem. Estou escrevendo a última peça agora. Começamos um processo de pré-produção e ensaios, mesmo com parte do grupo no Brasil e outra parte espalhada pela Europa. É bonito porque conseguimos nos reunir, mas há momentos de solidão e concentração também. Ensaiamos em residências, mas devido a limitações financeiras, cada passo precisa ser muito planejado.

Neste momento, estudo muito, leio muito e me dedico à escrita de forma obsessiva. Aprendi também a escrever durante viagens, algo que antes era bem difícil, especialmente quando estávamos em turnê com Boa Noite, Cinderela. Apesar do cansaço e das dificuldades, o processo é intenso e recompensador.

E qual é o foco desta terceira parte da trilogia?

O foco é a escrita, a poesia. É quase um retorno à origem de tudo. A primeira peça explorou muito a performance, o corpo em cena, o desaparecimento da presença e a fantasmagoria do teatro, a repetição, as aparições e desaparições.

Na segunda peça, The Brotherhood, investigamos o teatro como linguagem e representação. A peça foca no sistema de fraternidades masculinas e nas relações de poder, conectando isso ao mundo da arte. Há cenas longas, como uma entrevista com um diretor que é uma personificação de várias figuras, e não de uma pessoa real. O humor também aparece, mas há complexidade nas relações de amor e repulsa com figuras de poder, refletindo nosso amor pela arte.

Agora, a terceira parte volta à escritura, à origem, à reflexão poética, quase um mergulho na essência do trabalho.

E em termos de autonomia financeira e possibilidade de viver do seu trabalho? Quanto isso mudou?

Vejo uma grande diferença. Hoje tenho mais oportunidade de dar continuidade ao trabalho, de fazer e produzir com um pouco mais de calma e segurança. Isso é fruto de muitos anos de trabalho, esforço e dedicação. É gratificante ver que não só eu, mas também as pessoas que trabalham comigo, estão tendo oportunidades de realizar seu trabalho com mais estabilidade e paz.

Vocês pretendem trazer essas obras para o Brasil?

Sim, queremos muito. Mas depende das condições, porque são peças grandes que exigem investimento. Tomara que isso aconteça.

Compartilhe essa matéria via:
Publicidade