Cassio Scapin revive clássico de Dias Gomes
Peça “O Bem-Amado Musicado” conta a história de um prefeito que promete construir o primeiro cemitério de Sucupira
Durante a pandemia, Cassio Scapin estava falando para um dos muitos podcasts dos quais participou. Durante a conversa foi questionado sobre projetos que ainda sonhava fazer. O celebrado ator de gerações, que começou a fazer teatro com 14 anos, conhecido pelo imortal Nino, em Castelo Rá-Tim-Bum, não hesitou. Havia uma peça brasileira, que há muito gostaria de fazer: O Bem-Amado, escrita por Dias Gomes. Cassio não fazia ideia do alcance que uma de suas entrevistas poderia ter, tampouco, quem eram os seus ouvintes naquele momento. Acontece a resposta do ator chamou a atenção da pessoa certa.
“A dramaturgia ainda é a essência da peça, nós não tivemos que modernizar o texto. Essa é a loucura, é uma obra de 1962 que continua muito contundente e atual.”
Cassio Scapin
Quando o programa chegou ao fim, o ator e produtor Ricardo Grasson ligou: “Você quer fazer O Bem-Amado?”, perguntou Grasson. A resposta era óbvia. O produtor sugeriu que o texto, escrito em 1962, fosse musicado, uma adaptação necessária do original. Embora o desejo fosse forte, não havia patrocínios para botar o espetáculo de pé, conta Cassio. Até que “surgiu a possibilidade do Sesc encampar o projeto, mas o Sesc tem uma logística que exige o espetáculo já armado para poder receber a peça. Daí eu convidei o produtor Rodrigo Velloni que topou na hora.”
A produção teve exatos 35 dias para compor a trilha e deixar a peça pronta. Tudo parecia indicar que o musical precisava acontecer, e mais pessoas embarcaram no projeto. Convidaram dois magos das letras: Zeca Baleiro e Newton Moreno, que escreviam e enviavam as canções enquanto os ensaios aconteciam. “Começamos a construir espetáculo na sua totalidade, e muito da peça é pontuada pela musicalidade, apesar de não ser um espetáculo musical. A dramaturgia ainda é a essência da peça, nós não tivemos que modernizar o texto. Essa é a loucura, é uma obra de 1962 que continua muito contundente e atual.”
Logo de primeira, a peça apresenta o detestável Odorico Paraguaçu (interpretado pelo tão querido Cassio Scapin), um cidadão da fictícia Sucupira, uma cidade que sofre por não ter o próprio cemitério. Os moradores se afligem por terem que enviar seus mortos para outros municípios, o que o esperto e oportunista Odorico enxerga como uma vergonha e também um motivo para se fazer novo prefeito da cidade. Com um discurso inflamado, Odorico convence os sucupirenses de que esse deve ser um compromisso inadiável. Com facilidade, ele é eleito novo gestor de Sucupira. E é aí que os problemas começam a cair no colo de Odorico.
“Nossa ideia era fazer uma adaptação, mas Newton Moreno disse que não podia mexer no texto, que não havia necessidade, que ele tem uma carpintaria ótima, perfeita, um ritmo próprio que não precisava ser mexido”
Cassio Scapin
Sob os duros olhares da oposição, o prefeito é, logo, acusado, de desviar recursos de setores básicos para construção do cemitério, que parece nunca ser inaugurado. Como um herói amaldiçoado pelos deuses, Odorico vê a cidade passar por um momento histórico. Passam-se dois anos e nenhum residente morre, atrapalhando os planos de inaugurar o tão prometido cemitério. O Bem-Amado passa, então, a colecionar inimigos e uma péssima opinião pública. O protagonista começa a fazer planos atrozes para garantir que durante seu mandato haverá ao menos um morto. Numa dessas peripécias, ele manda trazer Zeca Diabo, um temido pistoleiro, conhecido por assassinar mais de 300 pessoas, na esperança de que esse faça o trabalho.
Quando estrearam em 2022, no Sesc, em São Paulo, o país vivia o ápice de uma divisão política. E isso se refletia, até mesmo, na plateia do teatro. A peça, embora pareça abordar acontecimentos absurdos em seu decorrer, traz à luz, situações críveis de acontecer nos bastidores da política brasileira atual, e passa por discussões como corrupção, populismo e as aflições de um povo impotente diante dos desmandos de seus governantes. Cassio conta que as reações eram diversas e havia até mesmo pessoas abandonando o espetáculo enquanto ele acontecia.
Apesar da atualidade, ele afirma que não houve nenhuma tentativa de modernizar o texto, nem mesmo atualizar a sua linguagem, exceto a inclusão das músicas. “Nossa ideia era fazer uma adaptação, mas Newton Moreno disse que não podia mexer no texto, que não havia necessidade, que ele tem uma carpintaria ótima, perfeita, um ritmo próprio que não precisava ser mexido”, diz Cassio.
“A peça é escrita de forma realista, a novela foi feita de maneira realista, mas ela permite mais de uma leitura, sem deixar de lado uma visão crítica da situação, mas, claro, sem julgamento dos personagens. Não se trata de um texto panfletário ou ideológico”, ele diz.
“O teatro é democrático no sentido de que você é tem um encontro da plateia com os atores, mas também tem encontro na plateia entre as pessoas. Você é obrigado a encarar esse relacionar com o outro.”
Cassio Scapin
No camarim do Teatro FAAP, Cassio e todo o elenco chegam com três horas de antecedência da apresentação. Em todos os dias em que há peça, o cronograma da equipe é atualizado. Parte do elenco começa a preparar a maquiagem e figurino e, em seguida, se reúnem no palco para fazer aquecimento físico e vocal. Ao fim, o diretor residente Pedro Arrais lê os comentários sobre a última apresentação. É essa a hora da bronca, de fazer ajustes, chamar atenção para eventuais erros cometidos (como erro de texto ou mesmo de posicionamento no palco) e ensaiar as cenas mais críticas. Só então, com uma hora para a peça começar, os atores são liberados para finalizar a maquiagem e colocar os adereços. Tudo é feito com cautela, numa verdadeira orquestração na coxia. E, enfim, a peça se inicia pontualmente.
Para Cassio tem sido interessante fazer teatro depois da pandemia, e esse parece ter saído fortalecido após o isolamento compulsório, justamente pela necessidade do encontro. “O teatro é democrático no sentido de que você é tem um encontro da plateia com os atores, mas também tem encontro na plateia entre as pessoas. Você é obrigado a encarar esse relacionar com o outro.”
E lembra de um de seus mais antigos parceiros de cena: “O Paulo Autran falava que teatro está para morrer desde que ele (o teatro) nasceu, ele está para morrer desde a Grécia Antiga, mas continua aí, presente e forte.”
Há outros textos que Cassio ainda sonha em montar, um deles é O Avarento, de Jean-Baptiste Poquelin, o Molière. Mas há um problema, uma lenda no teatro diz que todo ator que faz o protagonista morre pouco tempo depois. Não por acaso, foi a última peça encenada por Paulo Autran, morto em 2007.
Teatro FAAP – Rua Alagoas, 903, Higienópolis, São Paulo
Até 30 de julho. Sextas e aos sábados, às 20h; domingos, às 18h
Ingressos: R$80 (inteira), R$40 (meia-entrada)