Cláudia Abreu encontra Virginia Woolf
Na peça “Virginia”, Cláudia Abreu representa texto de própria autoria sobre a vida da escritora britânica
“Como não enlouquecer?”, questiona a atriz Cláudia Abreu em certo momento de seu monólogo Virginia, peça em que interpreta e narra a história da famosa escritora e editora britânica Virginia Woolf, conhecida e admirada por escrever como se estivesse mimetizando os fluxos e lampejos de pensamentos. Uma marca que inspirou tantas gerações de escritores. Sem exageros, Virginia ocupa a lista de autores mais brilhantes.
Sua vida, entretanto, é raramente retratada para além de seus momentos finais, quando se encontra sobrecarregada por pensamentos e vozes que a levaram a loucura. Aos 59 anos, Virginia morreu por suicídio. Mas sua memória é muito mais do que isso. E Cláudia Abreu sabia bem disso quando tomou para si o desafio de levar as reminiscências de Virginia aos palcos, como um manifesto em defesa da escritora, onde decide dizer o óbvio: Virginia não enlouqueceu, foi enlouquecida pelas duras circunstâncias de sua vida.
Foi impedida de estudar por normas da época, que privavam garotas de alcançarem a universidade, perdeu a mãe, a quem tanto se afeiçoava e também uma de suas irmãs e viveu tendo que provar ao pai de que a mulher não é inferior ao homem. Na adolescência foi violentada por dois de seus meio-irmãos. Ainda assim, sua genialidade e capacidade de ver além com sua afiada sensibilidade não foram obliteradas pelos percalços que encontrou. A pergunta que se faz é: até onde ela poderia ter ido se não tivesse sido submetida a tantos horrores? Parece não haver limites, pois mais de um século depois, a 10 mil quilômetros de onde Virginia nasceu, em Kensington, sua obra continua pulsando. Pulsando, inclusive, nos tablados do teatro brasileiro.
A primeira vez que Cláudia entrou em contato com a obra de Virginia também foi no teatro, em 1989, quando participou da peça Orlando, uma adaptação de um romance de Virginia, dirigida por Bia Lessa. Na época, Cláudia tinha apenas 18 anos. Anos mais tarde, além da atuação, Cláudia foi inflamada por um novo interesse: a escrita. Começou a fazer aulas de literatura e nessas idas foi encontrando o próprio tom. Um estilo narrativo despertava sua atenção, justamente, o fluxo de consciência. Como em um retorno às origens, Cláudia voltou a ler Virginia. E daquele lugar, não saiu mais. De todos que leu, o livro As ondas é seu favorito. “Eu tinha vontade de gritar assim de tanta beleza, de tanta sensibilidade, de tanta identificação. Parecia que eu estava lendo a mim mesma. Eu tenho tanta conexão com essa autora e eu passei a me interessar por ela. Preciso saber quem ela é, pensei.”
E foi isso que fez. Passou a investigar a vida daquela velha conhecida. “Li as biografias, as memórias, os diários. E se tornou um caminho natural escrever sobre ela e vivenciá-la no teatro. Decidi escrever sobre os fluxos de consciência dela, que aconteceriam nos últimos instantes de vida, como se fosse aquele filme clássico que passa num átimo de instante antes da morte. Como se ela pudesse reviver a vida dela de maneira desconexa”, ela diz.
Ao fim da jornada literária, Cláudia não apenas escreveu como publicou sua peça pela Editora Nós. E, obviamente, interpretou o próprio texto, sob direção de Amir Haddad. Em 2022, ela estreou em São Paulo, e fez uma breve temporada em outras cidades. Em 2023, ele retoma o circuito com a peça. E com ela irá para Fortaleza (CE), Mossoró, Natal (RN) e, novamente, para o Rio de Janeiro (RJ).
Confira trechos da conversa com Cláudia Abreu.
Olhar crítico
Como atriz ou como autor a gente tem que ter a nossa opinião para poder dizer o texto e interpretar, assumindo assim uma clareza do que está sendo dito. Nada pode ser turvo. Mesmo que você não concorde, você tem que ter uma opinião sobre aquilo. E a minha opinião, como autora, ao escrever sobre sanidade mental é que a loucura pode ser um excesso de lucidez, de uma hiper-reflexão ou hipersensibilidade da realidade. Por esse motivo, muitas vezes as pessoas não dão conta, porque, de fato, deve ser muito doloroso. Somente a apreensão parcial do sentido já é muito angustiante para nós.
Encontro com Virginia
Nunca tive contato com a obra dela na minha infância, não tenho pontos na minha vida que tem conexões com a vida dela, mas o que aconteceu com ela não precisa acontecer comigo para eu ter o sentimento da condição feminina em mim. Eu consegui compreender que essa condição não mudou tanto assim, que a Malala tomou um tiro porque queria estudar e não podia. Ou de ter a dor de saber que a cada minuto uma menina sofre um abuso.
Fluxo de consciência
Ela não botava dois pontos, travessão e outra linha para indicar a fala ou pensamento de outro personagem, ela simplesmente abria outra voz que começava a falar, como na nossa cabeça. Estamos falando aqui, de repente vem outra voz e te avisa que você tem que fazer compras ou vem a voz da sua mãe te avisando outra coisa. Então, você é atravessado sem aviso por fluxo de consciência e assim foi a literatura dela.
Experimentando a escrita
Eu escrevi de várias maneiras essa peça. Escrevi de maneira clássica, ali sentada sozinha, como também escrevi filmando improvisações que eu fazia para mim mesma, deixando esse conteúdo sair de uma maneira espontânea. E eu tinha lido tanto da obra, da vida dela, que era muito difícil saber qual seria o recorte que eu ia escolher. Se eu falasse só sobre sanidade mental, ou dela como mulher autodidata se formando como intelectual, já seria muito vasto. Acabou que nessas escritas e improvisações, descobri que o que ficou mais forte em mim foi o humano, os aspectos que formaram a complexidade desse ser humano.
Dramático vs literário
É muito interessante você poder representar o próprio texto. Pude perceber, durante os ensaios, o que dava certo, o que não dava e eu mesma reescrevia. Percebi que quanto mais eu contava como Virginia, quanto mais tempo durasse a voz da Virginia sozinha, mais narrativo ficava. E que quanto mais vozes interrompessem e complementassem o discurso, o dramático irrompia na narrativa, isso era muito bom para a cena. Conforme fui ensaiando, me dei conta de que se a voz também fosse da irmã de Virginia, que a cena se estabeleceria de uma maneira muito mais forte. Ela não ia ser só contada, ela ia ser vivida. Para uma peça é muito mais interessante quando o presente se estabelece ali.
Enxergando a si mesma
Tem muita gente que acha que atriz é a pessoa que consegue dissimular, que consegue ser extrovertida, fingir ser outro, sair de uma situação e entrar em outra. Na verdade, eu discordo disso tudo. Acho que para você ser atriz, você não precisa ser desinibida. Muitas vezes ser atriz é você se conectar com você mesma e ter a coragem suficiente para expor isso aos outros. E os recursos que você usa como atriz, nem sempre servem para sua vida. Às vezes eu me aprofundo tanto fazendo essa peça, que fora de cena fico muito cansada de entrar em contato comigo mesma. Eu quero férias de mim.
Estar sozinha em cena
Nessa peça experimentei uma grande solidão. Sempre estive rodeada por muita gente, tive filhos e sempre gostei de ter a casa cheia. Por isso, nunca estava sozinha. Até agora. Eu escrevi esse texto sozinha. Quando saía do Rio para fazer as apresentações, eu ia para hotel e do hotel para o teatro. Esse aprendizado de solidão tem me feito muito bem. Eu tinha muito medo de fazer um monólogo. ‘E se algo acontecer em cena e eu não ter outro ator ali para me ajudar?’, eu pensava. Ao mesmo tempo, descobri uma grande curtição, um prazer de estar ali sozinha. Fazer um monólogo acabou sendo o maior presente.
Estar bem sozinha
Tudo em cena depende de mim, o ritmo da peça. Então, às vezes eu me imponho novos desafios: hoje vou tentar fazer tudo mais poético, mais lento, num outro dia faço ela mais vigorosa, mais nervosa, mais atormentada em determinadas cenas. É muito interessante você saber que você pode ficar bem só com você, que você não precisa também de tantas pessoas, sabe?