Crítica: em “Lady Tempestade”, a beleza salta do horror
Na peça, Andrea Beltrão revive lampejos da revolução de afeto e coragem da luta da advogada Mércia de Albuquerque durante a ditadura militar

O teatro político que clama por revolução no choro engasgado de uma mãe em busca do filho desaparecido. Na imobilidade temerosa dos que veem um militante ser torturado no meio da rua, no início da ditadura. Na abertura dos braços, da casa, do destino de uma mulher, Mércia de Albuquerque (1934-2003) em sua luta pela liberdade de 500 presos políticos e pelo conforto de seus familiares, ainda que tenha que dar a eles colo, na ausência de boas notícias.
“Lady Tempestade”, solo de Andrea Beltrão em cartaz na cidade até 6 de julho, é arma de guerra munida de extrato de humanidade que ilumina a coragem e o coração transbordantes de Mércia. Sua trajetória é pouco conhecida. Mércia foi advogada no Recife, uma das maiores defensoras dos militantes durante os anos de chumbo da ditadura militar. Mesmo sem se envolver diretamente com política não escapou dela, e foi presa 12 vezes.

Mas antes de ser advogada, Mércia foi ser humano. Um ser humano raro, que privilegia o outro em detrimento de si e dos seus, coloca humanidade na frente de divisão política e, entre esquerda, centro e direita, se filia ao partido do amor, da liberdade, da dignidade.
“Todo teatro é político”, clamava o autor e diretor Augusto Boal, fundador do Teatro do Oprimido, numa longa batalha contra a opressão durante e após a ditadura do país. “Lady Tempestade” é, além de teatro político, teatro engajado com a experimentação artística de seu tempo, uma criação de quatro mulheres-tempestades, cada uma a seu modo: as já citadas Mércia e Beltrão, a diretora Yara de Novaes e a dramaturga Silvia Gomez.
Há algumas décadas as três últimas inundam de potência e sensibilidade os palcos do país. Mércia é a mulher-tempestade da arte da vida, de força desmedida cujo trovejar, de tanto bradar e resistir, fez milagre em terra desacreditada. Sua história de coragem e cidadania é transposta à cena numa obra de denúncia que transcende o biográfico na busca pela elaboração de um trabalho de linguagem.

Diário de um diário
Entre 1973 e 1974 Mércia escreveu um diário, sua ponte entre passado, presente e futuro retomada repetidamente por Gomez, marcando a repetição de acontecimentos políticos do Brasil. Coisas que “aconteceram, acontecem, acontecerão”, ressoadas algumas vezes ao longo do espetáculo, como injustiça, desumanidade e assaltos ao poder que o poder público transformou em choque elétrico, tortura em pau de arara, queimadura, fome, ameaça de morte, afogamento, assassinato.
Mércia justapõe em seu diário reflexões pessoais, pensamentos e confissões próprias de um tipo de caderno no qual se registram acontecimentos cotidianos da vida, com a documentação de barbáries do Estado em que expôs crimes hediondos da ditadura com riqueza de detalhes. Gomez faz um diário deste diário. Privilegia a invenção e mistura trechos do material original reveladores do olhar maternal e destemido de Mércia. Ao incidir luz sobre sua vida, revela uma mulher tão comum quanto extraordinária. Ao mesmo tempo, filtra horrores da ditadura partilhando com o público apenas algumas das ações descritas, com datas e nomes de vítimas.
O ponto de partida é documental, mas a peça avança pelas veredas das amplas possibilidades que são próprias da natureza do delírio e da poesia trazendo ao palco lampejos de afeto e indignação de Mércia.

Os saltos no tempo são um alerta para as injustiças do passado e sua relação com a atual situação política do país. As pausas são fendas que pairam no ar e anunciam o que é impossível dizer. O silêncio, indagador, é capaz de armar um exército inteiro de perguntas na mente do espectador.
Habita o espetáculo o vazio de um menino que viu a mãe cuidar mais dos filhos dos outros do que dele, o vazio da falta de resposta de Mércia sobre o paradeiro de mulheres que esgotaram possibilidades de encontrar os filhos: “Mentir a uma mãe eu não minto, prefiro ficar em silêncio”, escreveu ela.
Também habita o espetáculo o vazio de Beltrão ao receber os diários de Mércia. Não estava em seus planos viver mais uma heroína trágica. O último trabalho da atriz havia sido “Antígona”, clássico de Sófocles datado de 442 a.C. em que a protagonista enfrenta a ordem do rei Creonte para sepultar o irmão – peça cuja atuação lhe rendeu o prêmio da APCA, se desdobrou em livro e no filme “Antígona 442 a.C”.
Não estava em seus planos seguir a discussão sobre governos tiranos ou a reflexão do quanto o mundo pouco evoluiu desde a Grécia Antiga. Isso até a atriz mergulhar nos escritos de Mércia, a pedido de Novaes. “Eu sabia que ler o diário de Mércia me transformaria de alguma maneira em outra pessoa”, confessa a personagem A., que em alguns momentos parece parafrasear Antígona: “Enterrar os mortos é um direito sagrado (…) até nas guerras os exércitos conseguem uma trégua respeitando o inimigo e entregando os corpos para sepultamento”, diz em cena ao relatar sua batalha pelo paradeiro de José Carlos, líder estudantil de Belo Horizonte preso espancado e assassinado em 1973, sepultado com identidade desconhecida.
Como o nome indica, a personagem A. é inspirada na própria atriz, reproduz a travessia realizada por ela ao receber os diários de Mércia e ser capturada por ele. “Eu não queria ter recebido aquele diário, mas agora que eu recebi, não dá mais pra fingir que eu não li ou fingir que esqueci”.

Enigma e delírio
Gomez é mestra em criar metáforas absurdas para as patologias do mundo, como se viu em “O Céu Cinco Minutos antes da Tempestade”, de 2008, seu trabalho de estreia – criado no núcleo de dramaturgia desenvolvido por Antunes Filho e vencedor do prêmio APCA de dramaturgia -, e em seus textos subsequentes. É o caso de “Neste Mundo Louco, Nesta Noite Brilhante”, de 2019, peça em que Novaes atuava em cena ao lado de Débora Falabella e “Mantenha fora do alcance dos bebês’, 2015 – obra que está sendo transformada em filme com direção e atuação de Falabella.
Em “Lady Tempestade”, a dramaturga faz o tempo saltar, numa dança entre presente, passado e futuro. Também opta por enfatizar o enigma que está por trás das páginas rasuradas ou arrancadas dos diários de Mércia. Dá a esses espaços vazios um papel fundamental, o do mistério da desumanidade.
O mistério de Beltrão, por sua vez, é ser uma e ser muitas, algumas vezes ao mesmo tempo. É transpirar a potência e a fragilidade de Mércia, de si mesma e de todas as mulheres cuja maternidade foi violentada na ditadura, numa atuação que se revela poderosa ao trilhar o caminho da simplicidade.

A força da maternidade é guia na luta hercúlea de Mércia. Na opção de Novaes de trazer o filho de Beltrão para a cena, ela se concretiza em cena, e pesa. Chico é autor da trilha do espetáculo, opera o som e contracena com a mãe em breves diálogos entre a protagonista e seu filho. Beltrão entoa boa parte do texto diante de um microfone de pedestal. Faz das revelações de Mércia, discurso. Na direção de Novaes, uma ponte para o que está por vir. A oratória confessional se revela construção estética para o aniquilamento do realismo em momentos emblemáticos em que a encenadora promove cenas simbólicas de forte intensidade dramática.
O solo é mais um trabalho de destaque da carreira de acertos de Novaes como diretora, orquestrando peças como “Prima Facie” (monólogo premiado interpretado por Falabella que foi um marco da cena teatral da cidade do ano passado, atualmente em sua segunda temporada no Rio de Janeiro) ou atriz – em trabalhos premiados como o longa “Malu” (2024), os espetáculos “Love Love Love” (2018) e “Contrações” (2013).
Em “Lady Tempestade”, ela convoca a revolução da beleza. A estética da crueza inicial da obra passa por uma verdadeira revolução. O palco surge obscurecido pelo conceito de feiura, de sujeira, na luz discreta de Ricardo Vivian e de Sarah Salgado, no sofá puído ou no carpete encardido do cenário de Dina Salem Levy. Até a atmosfera se transformar, tiros de metralhadoras se tornarem fogos de artifício, o belo saltar dos escombros e a vida invadir a cena.
Novaes dá as mãos às demais três mulheres tempestades do espetáculo para que deste solo de destruição e horror dos movimentos antidemocráticos brote sementes saudáveis. O trabalho é revelador de uma crença no poder transformador da arte e do amor. Ao lado de Mércia, Gomez e Beltrão, reúne recursos para aniquilar a opressão e o obscurantismo.
O que ficou escondido se destaca, o que foi empurrado para debaixo do tapete é iluminado. Do campo assolado de origem desta criação, ela faz nascer o maravilhamento da existência. Como num sopro de esperança, como na manifestação de um milagre.

Onde: Sesc Consolação (Rua Dr. Vila Nova, 245)
Quando: Quinta a sábado, às 20h; domingo, às 18h; até 6/7
Quanto: De R$ 21 a 70
Classificação: 12 anos