Denise Fraga faz teatro para conectar pessoas
Em cartaz em São Paulo com o monólogo “Eu de Você”, a atriz encena histórias reais coletadas antes da pandemia
Denise Fraga estava elétrica nos corredores da plateia do Teatro Sérgio Cardoso. Faltavam poucos minutos para Eu de você começar e, naquele domingo, uma fileira de cadeiras estava quase vazia. Em seus lugares, outros 600 espectadores assistiam a atriz ali, divertida e doce recebendo cada um que chegava para vê-la no palco. O hábito de começou há mais de uma década, durante a encenação de Alma boa de Setsuan, adaptação do texto de Bertolt Brecht. Na ocasião, a coxia era aberta aos olhos do público, expondo o elenco a todo momento. Denise percebeu que estar entre as fileiras de poltronas dos teatros a tranquilizava, e também que lhe permitia bater um papo com quem foi vê-la em atuação.
“Acho que hoje eu nem consigo mais não receber o público. Entender quem está ali me traz calma, porque as luzes nos cegam o público vira uma entidade que não vemos. É muito bom quando você fica ali, tentando entender como aquelas pessoas vieram, se são uma família, como souberam da peça”, afirma Denise em conversa conosco.
Fazia um tempo que não víamos Denise no teatro ou conversávamos com ela na plateia. O monólogo Eu de você, dirigido por Luiz Villaça, foi pensado antes mesmo da pandemia, em 2019. Denise queria coletar histórias reais. Algo que ela ama fazer, como podemos supor. Naquele momento gravou um vídeo convidando as pessoas a compartilhar seus causos, quaisquer que fossem. A resposta veio em peso: mais de 300 pessoas confiaram seus relatos às mãos de Denise. Então havia o desafio de selecionar, com certa dor no coração, quais fariam parte do espetáculo. Ao fim, restarem 34 relatos que inspiraram a criação da peça, que variam de cenas corriqueiras do cotidiano até depoimentos sobre abusos e violência doméstica. Denise consegue equilibrar as emoções, sem corromper essas memórias. “A peça foi sendo criada aos poucos. Não havia um texto. Começamos selecionando as histórias, imprimimos todas e fomos dobrando aquelas que não usaríamos. Mas era impossível selecionar. Qual seria o critério? Percebemos que deveria ser aquilo que mais nos tocava. Eu comecei a grifar com um marca-texto tudo que me tocava. Aí virou essa coisa que vou improvisando sobre aquelas cartas no chão.”
“Acho que hoje eu nem consigo mais não receber o público. Entender quem está ali me traz calma, porque as luzes nos cegam o público vira uma entidade que não vemos”
Denise Fraga
Aos 58 anos, a atriz lembra que a curiosidade por histórias e o perfil de cronista vêm do tempo de criança. “Eu ia à padaria e voltava contando uma coisa que tinha visto na rua. Sempre olhei para a vida como um filme”, ela diz. “Acho que a alma de artista é um negócio que existe, que tem muito ator sem alma nenhuma e muito engenheiro com um tanto dela. E o que classifico como alma de artista? É aquela pessoa que consegue olhar para vida enquanto ela passa.”
Denise volta no tempo: “Me lembro uma vez, quando eu era mocinha. Minha mãe estava chorando e eu estava ao lado, segurando sua mão. Ao mesmo tempo que estava condoída. porque era um problema familiar, eu olhava e pensava: ‘Nossa, como chora bonito!’. Eu não era atriz ainda, mas conseguir ver aquilo como uma cena.”
O espetáculo ficou pronto e chegou a estrear em 2020, mas após algumas apresentações de Eu de você, veio a covid-19 para enterrar os planos de seguir adiante com o projeto. “Fiquei muito triste de ter de parar com a peça Eu chorava igual a uma criança. Estávamos fazendo turnê em Belo Horizonte, os ingressos estavam todos vendidos. E tinha essas filas inteiras de pessoas que não chegavam, um monte de poltronas vazias com os ingressos vendidos. Ainda não havia nenhum caso confirmado na cidade, mas as pessoas já estavam com medo”, ela lembra.
“A alma de artista é um negócio que existe, que tem muito ator sem alma nenhuma e muito engenheiro com um tanto dela. E o que classifico como alma de artista? É aquela pessoa que consegue olhar para vida enquanto ela passa”
Denise Fraga
De um jeito astuto, Denise segue nos primeiros minutos da peça fazendo gracejos com a plateia, desprendendo sua presença de anfitriã da plateia, se movendo vagarosamente até a boca de cena. Pouco a pouco, vai contando suas próprias lembranças, como um diálogo que se desenvolve no elevador. Será que a peça já começou? A transição do ato rotineiro até os movimentos coreografados no palco se desenvolve sutilmente, com calma. Até que ela está correndo dançando, cantando e representando cada uma das histórias. Já não há dúvidas: a peça começou.
Eu de você é uma celebração ao público. Um espetáculo que só faz sentido pela sua presença. A atriz conta que escutou uma vez que seu ganha pão era conectar as pessoas, e aquilo fez todo sentido. Construiu sua carreira com essa motivação. “A arte nos dá a noção de pertencimento, o reconhecimento de que estamos todos no mesmo barco. Todos nós sofremos. Mas com a arte, a pessoa, no mínimo, vai sofrer mais bonito. Vai sofrer acompanhada e com a cumplicidade dos poetas”, ela conclui.
Teatro Sérgio Cardoso – Rua Rui Barbosa, 153, Bela Vista, São Paulo
Até 12 de março
Sexta e sábado, às 20h30; domingo, às 17h. Ingressos a partir de R$25