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Crítica: “Deserto”, da Cia. Polifônica, é poema feito para queimar

Solo transforma a biografia poética do escritor Roberto Bolaño em uma experiência estética que desperta a sensibilidade para uma revisão da percepção de vida

Por Gabriela Mellão
Atualizado em 3 set 2025, 08h52 - Publicado em 2 set 2025, 08h00
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Renato Livera na peça "DESERTO"  (Renato Mangolin/divulgação)
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A vida como poema em combustão. Um poema feito para queimar, para que a violência e a beleza do fogo incendeiem corpo, alma, existência numa chama indomável o bastante para destruir uma a uma todas as fortalezas que sustentam as crenças da contemporaneidade – até que, do deserto gerado, possam brotar outras formas de percepção de mundo. Para o escritor chileno Roberto Bolaño, cuja força inflamada de literatura e pulsão de vida inspiram o solo “Deserto”, da Cia. Polifônica, a escrita é, além de fonte de vitalidade, ato de resistência contra o achatamento do tempo presente.

O espetáculo escrito e dirigido por Luiz Felipe Reis apresenta o fogo deste escritor definido por Susan Sontang como o mais influente romancista de língua espanhola de sua geração para falar sobre a potência do artista e a intensidade flamejante da criação, propondo um atravessamento direto entre arte e vida.

O deserto mencionado no título simboliza o caráter destrutivo do processo de ordenação do mundo — o esvaziamento da sensibilidade, entre outras potências vitais do humano —, como reação à aridez imposta por uma suposta estruturação. Paralelamente, é a imagem interna de cada indivíduo, espaço onde dormem os monstros, escavado pelos artistas na busca pela verdade. “Bem-vindo ao deserto, o lugar onde nascem os poemas. Meu único país”, diz o ator Renato Livera, que imprime a justa medida entre rigor e loucura para dar vida ao escritor no espetáculo.

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Cena da peça “DESERTO” (Renato Mangolin/divulgação)

O abismo é sua casa. O deserto é seu país. E Bolaño, que nasceu e viveu no Chile, morou também no México e na Espanha, não se dizia chileno, mexicano ou espanhol, mas poeta. Escrevia para viver intensamente, para  amar e criar verdadeiramente, para existir e resistir, desconectado de ego, das aparências, da “fachada de escritores lamentáveis (…) querendo pertencer, serem agradáveis, com suas ideias brilhantes, falando como se estivessem numa entrevista imaginária”.  

Para ele, o escritor não é mártir ou herói, apenas alguém que não foi destituído de si, que conserva a chama acesa e a coragem de olhar para o abismo. 

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“Olhar esse abismo de olhos abertos e manter os seus olhos abertos seja lá que merda você encontrar. E atacar, atacar, continuar. Atacar essa farsa, essa mentira, esse pacto social hipócrita…”

 

O recorte do espetáculo intensifica a inquietude natural de Bolaño ao apresentá-lo em sua última década de vida, a partir de 1992, quando é diagnosticado com hepatite crônica, doença que irá matá-lo em 2003. Ele se vê perdido na encruzilhada da arte com o mercado e a luta por sobrevivência, debatendo-se entre o medo, os sonhos fracassados, a dura realidade da sua vida e do mundo. Aos 39 anos, Bolaño vive de subempregos, escrevendo há quase duas décadas sem reconhecimento, sem sequer ter conseguido publicar um único livro.

O diagnóstico é ponto de partida para a lava explodir de dentro do vulcão que nele habita, e jorrar, iluminando sua arte e experiência poética de vida. Não por acaso, no ano seguinte sai sua primeira publicação: “A pista de gelo”, em que discorre sobre o aspecto fugaz da beleza e seu fim desastroso – obra sucedida por outras, como “Os detetives selvagens”, seu primeiro sucesso, e a obra-prima inacabada “2666”.

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Renato Livera na peça “DESERTO” (Renato Mangolin/divulgação)
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O que se vê em “Deserto” é uma revisão de vida em tempos, espaços e estados distintos,  por vezes acompanhada por projeções que ora retratam o inconsciente do escritor, ora agem como seu alter ego, divertindo-se com ele ou com a plateia. Outras vezes evocam acontecimentos históricos de batalhas políticas da América Latina. Os vídeos mais simbólicos apresentam o poder de criação e de destruição do mundo através de imagens de transformações da natureza. 

A interpretação de Livera é hipnótica, conduz o espectador a um mergulho no mundo interior do protagonista, seu estado alterado de ser, em eterna efervescência alimentada pela angústia do diagnóstico e da proximidade do fim, pela obsessão contra a ordem política, econômica e cultural vigente, e pelo transtorno causado pelo regime permanente de apaixonamento em que viveu: a paixão pela literatura, pelos filhos, pelas mulheres, pelas amizades, pela política.

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Cena da peça “DESERTO” (Renato Mangolin/divulgação)

Ao mesmo tempo, o ator revela a lucidez do personagem, o poder de distanciamento e racionalização de quem observa o mundo com uma clareza implacável. 

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A partitura física e vocal de Livera é elaborada de forma minuciosa. Em sintonia com a música e as projeções, ele oscila intensidades e, dentro de uma economia de movimentação, escolhe gestos dotados de significados. Recorre à dança quando a emoção torna-se incontrolável a ponto de transbordar as palavras. 

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Renato Livera na peça “DESERTO” (Renato Mangolin/divulgação)

A cia. Polifônica, fundada por Luis Felipe Reis ao lado da atriz Julia Lund, é um dos grupos de mais projeção da cena teatral carioca da atualidade. Com uma linguagem que cruza teatro, literatura, cinema e música, a cia. investiga há cerca de uma década os limites do teatro contemporâneo por meio de obras marcadas pela experimentação formal e o diálogo crítico com o mundo. 

“Deserto” chegou em São Paulo com indicações ao prêmio Shell nas categorias ator, direção e dramaturgia, quase simultaneamente à estreia de “Eddy- Violência e Metamorfose” no Teatro Poeira, no Rio de Janeiro — peça inspirada na obra do escritor francês Édouard Louis – especialmente os livros “O Fim de Eddy”, “História de Violência” e “Mudar: Método”.

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Atualmente, Reis prepara “Awei”, cuja dramaturgia assume forma de polifonia, composta por textos de Eliane Brum, Eliane Potiguaea e Alberto Pucheu, entre outros autores. 

Também pesquisador, destacou-se na cobertura teatral do jornal O Globo durante a década passada, além de atuar como curador do festival Cena Brasil Internacional, idealizador e professor do curso “Cena é Mundo”, em que explora teorias e experiências estéticas de artistas e pensadores ligados às artes cênicas. 

De uma forma ou de outra, sua trajetória é movida pelo desejo constante de reconfigurar sentidos e percepções sobre a criação, em fina sintonia com o percurso de refinamento poético empreendido e alarmado por Bolaño. 

Seu “Deserto” é uma convocação, alinhavada em muitos anos dedicados ao processo de sensibilização artística, que enfatiza a necessidade de resistir ao confinamento da lógica e de cultivar o imaginário criativo. O autor e diretor se debruça sobre o universo de Bolaño para falar sobre os artistas, ele inclusive, dirigindo-se a todo homem que busca expandir sua experiência de vida.

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É impossível não se contagiar com a luz que emerge da faísca gerada pela fricção entre a atuação poderosa de Livera, o vigor e rigor da dramaturgia do espetáculo. Em uma de suas últimas cenas, extraída do Poema para Lautaro e Alexandra” Bolaño grava um vídeo aos filhos. “Leiam os velhos poetas”, ele diz. Sua fala é um testamento. Poético e em versos, evidentemente.

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Cena da peça “DESERTO” (Renato Mangolin/divulgação)

 

PORTO ALEGRE EM CENA

20 e 21 de setembro, 19h
na Sala Álvaro Moreyra
(Avenida Érico Veríssimo, 307 – Menino Deus, Porto Alegre – RS)
R$100.

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