Felipe Hirsch e os metaversos da Avenida Paulista
O diretor estreia o espetáculo Avenida Paulista, da Consolação ao Paraíso, em celebração aos 60 anos do Teatro Popular do Sesi

Felipe Hirsch se firmou como um dos diretores mais influentes do teatro contemporâneo brasileiro. Suas montagens são um retrato complexo do cotidiano e das tensões sociais, capazes de capturar as contradições da vida urbana. Mas sempre com poesia e música envolvidas. Em suas obras, os temas são espinhosos: opressão, violência política e identidade, que não são retratados como uma fábula distante, mas que, por meio de artifícios descobertos pelo diretor, provocam identificação, ampliando sua força no imaginário coletivo.
Com mais de duas décadas de carreira, Hirsch, carioca, mas com alma paulista, construiu uma identidade estética, que hoje é inconfundível, com espetáculos de grande impacto visual, frequentemente criados em parceria com Daniela Thomas. Seu currículo causa inveja a qualquer profissional das artes cênicas. Na sua trajetória, conquistou a confiança dos maiores nomes da cena teatral, dirigindo nomes consagrados como Renata Sorrah, Paulo Autran, Marco Nanini, Fernanda Montenegro e grandes talentos das gerações mais recentes, como Jesuita Barbosa e Camila Márdila.
Uma de suas obras mais lembradas é de 2005: Avenida Dropsie, inspirada no quadrinho de Will Eisner, retratou a ascensão e decadência de um bairro fictício de Nova York. Vinte anos mais tarde, Hirsch estabelece um diálogo com aquele espetáculo, agora voltado à maior cidade brasileira, em Avenida Paulista, da Consolação ao Paraíso.
“Moro aqui há mais de 20 anos e agora tenho um filho de 5 anos. Vou buscá-lo na escola, volto olhando os prédios iluminados, aquele entardecer… Passei a ter uma relação profunda com a Avenida e sua dinâmica. Propus a ideia de fazer Avenida Paulista como uma rima com Avenida Dropsie. Teria algumas citações, mas é um espetáculo completamente novo”, explica Hirsch em entrevista à Bravo!.
A peça estreou no último fim de semana no Teatro Popular do Sesi, como parte das comemorações dos 60 anos do espaço. Na montagem, o diretor retoma sua colaboração com Daniela Thomas, na direção de arte e cenografia, e Beto Bruel, na iluminação. O elenco reúne Amanda Lyra, Aretha Sadick, Fabio Sá, Fernando Sampaio, Georgette Fadel, Gui Calzavara, Helena Tezza, Heloisa Alvino, Jocasta Germano, Julia Toledo, Kauê Persona, Lee Taylor, Lello Bezerra, Marat Descartes, Negro Leo, Roberta Estrela D’Alva, Thalin e Veronica Valenttino.
Para a Bravo!, o diretor falou sobre as inspirações do novo espetáculo. Na conversa, Hirsch revela sua visão sobre a arte e o impacto que deseja causar com suas obras: “Minha ambição é grande em relação ao que o teatro e a música podem fazer pelo ser humano, para torná-lo melhor, mais feliz e mais realizado com a vida”, ele declara.
Muito obrigado pela disponibilidade. Imagino que os últimos dias têm sido uma correria por conta da estreia. Fiquei com uma curiosidade: a peça é realmente inspirada em Avenida Dropsie? Elas compartilham algo em comum?
Foi mesmo. Mas vamos lá, é assim, eu já estou acostumado.
Olha, tem uma rima, mas não é inspirada, não. Na verdade, ela começa por causa da “Avenida Dropsie”. Existem duas efemérides importantes: os 60 anos do Teatro Popular do Sesi, um teatro fundamental, que surgiu dentro das fábricas, passou pelo TAIB, na Casa do Povo e depois veio para cá, reunindo tanta gente importante. Eu mesmo tive um histórico de 10 anos aqui. Faz 15 anos que não faço teatro aqui, mas passei 10 anos produzindo. E também temos os 20 anos da “Avenida Dropsie”, uma peça muito querida, que teve um impacto forte na formação de público.
Mas eu não costumo mexer em nada do meu passado. As pessoas pedem muito para que eu remonte coisas, mas eu falo: “Olha, eu estou com 20, 30 anos a mais”. Estou em outro momento da vida. Mas houve uma coincidência de fatores: o Emicida fez um podcast contando que trabalhava na região, frequentava a Gibiteca, lia Will Eisner, e quando soube da peça, ficou empolgado, foi assistir mais de uma vez. Ele contou uma história muito bonita e depois mandou uma mensagem dizendo que, até hoje, pensa nessa peça.
A partir disso, me procuraram para pensar em algo. Eu disse que não tinha vontade de remontar a “Avenida Dropsie”, mas percebi uma rima forte na minha própria vida: naquela época, eu me mudei para a Avenida Paulista, onde o teatro fica. Moro aqui há mais de 20 anos, e agora tenho um filho de 5 anos. Vou buscá-lo na escola, volto olhando os prédios iluminados, aquele entardecer… Passei a ter uma relação profunda com a Avenida e sua dinâmica. Propus a ideia de fazer “Avenida Paulista”, como uma rima com “Avenida Dropsie”. Teria algumas citações, mas é um espetáculo completamente novo, sobre a Avenida Paulista.

Você fez um laboratório para preparar a peça? Como foi esse processo?
Sim, estamos nesse laboratório há 25 anos, mas, oficialmente, desde setembro. Começamos a frequentar mais a Avenida Paulista, nos dias de semana, que são mais executivos, e nos finais de semana, quando a cidade toda migra para lá. É um espaço de exercício democrático, claro, com repressões, como vimos recentemente com as caixas de som, mas um exercício democrático. Vem gente do Grajaú, da zona sul, da zona norte, da zona leste, da zona oeste. Vem gente do Brasil inteiro, convivendo razoavelmente bem. Parece um filme surrealista do [Luis] Buñuel (cineasta espanhol).
Os atores estiveram na Avenida, tivemos um fotógrafo, gravação de campo de som. Tudo o que você vai ouvir no espetáculo é material nosso. O som, em especial, impressiona, porque a cada passo a paisagem sonora se transforma. Pegamos esse material e levamos para a sala de ensaio, criando improvisações baseadas nas imagens, nos personagens e nos sons.
Como você, Caetano Galindo, Guilherme Gontijo Flores e Juuar se dividiram para criar a dramaturgia?
A dramaturgia foi construída de forma muito colaborativa, ainda que nem sempre estivéssemos juntos na sala de ensaio. O Caetano e o Guilherme, por exemplo, moram em Curitiba, mas mantivemos um processo intenso de trocas diárias.
Escrevemos uma quantidade enorme de material, e grande parte dele não chega ao palco. Para se ter uma ideia, quando entrei no teatro para iniciar os ensaios, a peça tinha quatro horas e vinte minutos. Na estreia, estava com duas horas e cinquenta.
Nosso método envolve trazer tudo o que pode ser relevante e, a partir daí, lapidar e desenhar a estrutura da encenação. É um processo contínuo de refinamento.
Durante o processo, você ainda pretende mudar algumas coisas?
Sempre! Já tenho essa fama, então, já que pago por ela, melhor assumir. Nos últimos 15 dias, sou mais radical, mexo mais. Mas hoje, por exemplo, talvez mude pouco.

Você mencionou que não gosta de remontar peças antigas. E agora, falando sobre mudanças durante o processo, me parece que você gosta de acompanhar tudo do início ao fim.
Sim! Se eu não estiver em outro trabalho, estarei aqui o tempo todo. Adoro entrar no teatro e ouvir o público rindo. Isso dá uma energia muito boa.
Sempre espero algo grandioso nos seus espetáculos. Quais foram as inspirações para este, além da própria Avenida Paulista?
Existe essa rima com “Avenida Dropsie”, só que em São Paulo. Eu, Daniela Thomas, Beto Bruel nos juntamos e começamos a pensar nessa Avenida que, não sei se você sabe, era para ter três andares. Ali onde é o buraco do Consolação, entraria o carro, em cima seria um passeio e, embaixo, o metrô. Isso acabou não acontecendo por questões estruturais, financeiras e tudo mais.
Então, onde hoje há o buraco, seria a parte dos carros. Você seguiria direto a partir dali. E ali estão encravados alguns marcos arquitetônicos da cidade, como o Conjunto Nacional, que foi a nossa inspiração. O Conjunto Nacional já viveu várias vidas dentro de si mesmo. Depois do incêndio na década de 70, que o retirou de um estado decadente, vieram os cinemas de rua que estavam ali.
Os moradores em situação de rua que vivem sob as marquises, os escritórios dos executivos e empresas, a Livraria Cultura, que não está mais ali, mas foi muito importante… Além de ser uma obra-prima do Modernismo. Então, pensamos nessa fachada. E toda vez que passo pela frente do Conjunto Nacional e viro para olhar, levo um susto. Porque penso: “Nossa, mas o que o cenário está fazendo ali?” Hoje isso causa um estranhamento. Mas sabíamos que queríamos trabalhar com aquele xadrez das janelas, que também foi usado em “Avenida Dropsie”, mas por outras razões.
A Avenida Paulista perdeu seu status de grande centro econômico, mas segue como um importante polo cultural. Quais aspectos você quis destacar?
Não contamos uma história da Paulista. O que construímos é uma sequência de imagens que se entrelaçam a um poema sobre a vida da Avenida Paulista, mantendo até a possível abstração que a poesia permite. Em nenhum momento narramos um enredo linear.
Na verdade, a Avenida Paulista nunca foi exatamente um lugar do poder econômico. Esse eixo mais dominante sempre migrou para a Faria Lima, para a [Avenida Engenheiro Luís Carlos] Berrini, e agora também para outros polos. O poder nunca chegou a se consolidar na Paulista.
Além disso, a Avenida Paulista não decaiu por conta da sua estrutura cultural, que, aliás, só se intensifica. Quando me mudei para cá há 25 anos, por exemplo, e comecei a morar perto da Avenida, já não conhecia essa versão dela que vemos hoje. Existiam lugares importantes, mas não havia Japan House, o SESC Paulista, o IMS, e agora o novo prédio do MASP, que não para de crescer.
Temos um corredor cultural ali que impede que a Avenida se torne decadente. Sem contar as antenas que captam sinais de TV, rádio e, quem sabe, até sinais extraterrestres. É um dos pontos mais altos da cidade, com um passado e um futuro que sintetizam muito a história de São Paulo e do Brasil.
E com contradições…
Sim, um passado ligado à escravidão, ao café, às terras indígenas que antes ocupavam esse território, à Mata Atlântica que existia no Monte das Acácias. E, ao mesmo tempo, é um espaço que pulsa no presente, com a intensidade cotidiana da cidade. Então, buscamos capturar esses fragmentos como Polaroides, instantâneos dessas imagens, dessas pessoas que cruzam a Paulista, dos fantasmas que ainda habitam ali. E também projeções do futuro.
Porque, de certa forma, esses fantasmas existem em todos os metaversos da Avenida Paulista. Há o presente realista e, ao mesmo tempo, um surrealismo que se impõe. Tentamos captar essa essência e trazê-la para a peça, sem discursos, sem uma estrutura histórica linear.

Para criar o espetáculo, você convidou músicos como Alzira E., Arnaldo Antunes e Tulipa Ruiz. O que você pediu a eles para mobilizar a criação?
Olha, encarei isso como uma oportunidade única. Primeiro, porque tenho uma admiração imensa por essa geração e algumas gerações da música paulista que convivem hoje. Acho que estamos em um momento muito bonito e inspirado da cena musical aqui. Esses compositores têm essa característica coletiva, gostam de criar juntos. Eles foram convocados para isso. Cada um enviou três músicas.
Então, enxerguei essa oportunidade como um jeito de juntar essas pessoas; nos divertirmos, criarmos juntos e falarmos sobre a Avenida Paulista. Tenho muito orgulho disso. Costumo dizer que essa projeção que existe do ‘Dropsie’ para a ‘Avenida Paulista’, 20 anos depois, é a mesma que espero para este espetáculo e sua música no futuro.
Daqui a 20 anos, com 72 anos, não sei em que avenida estarei. Mas, se escutar alguém assobiando ou cantarolando uma música dessa peça, já sentirei que ela se projetou no tempo. E acredito que pode acontecer o mesmo que aconteceu com o ‘Dropsie’: a formação de um público, pessoas que assistiram e, anos depois, se identificam com a obra de uma maneira transformadora.
Porque acredito nesse teatro. Um teatro que apaixona, que acolhe e que transforma de verdade. Um teatro que não precisa ser didático, mas que pode ser poético, com a capacidade que a música tem de reduzir a mediação intelectual, de tocar o coração. Se, daqui a 20 anos, ninguém lembrar de nada além de uma música desse espetáculo, teremos ao menos um disco.
O álbum será lançado com a estreia da peça?
O álbum será lançado agora em março nos streamings. Já está gravado. Vamos fazer uma audição especial. Depois, no final do ano, lançaremos um vídeo também.
E como você lida com a expectativa? Depois de tantos anos de carreira, isso se tornou mais fácil?
Olha, sou muito tranquilo em relação a isso. Sempre fui. Não sou de ficar nervoso. Mas, claro, tenho aquela ansiedade natural para ver o que vai acontecer. Como o público reagirá, se os atores sairão felizes. Gosto de compartilhar o riso, a emoção. Fico mais na expectativa dessa energia boa que se cria.
E essa tensão também é estimulante. Não fico apavorado, mas também não sou alguém que vê tudo como se sua vida dependesse disso.
E sua ambição com o teatro? Ou, melhor, a expectativa sobre o que o público pode tirar do espetáculo mudou ao longo do tempo?
Não. Continua sendo a maior possível. Acredito que o teatro salva, educa, apaixona. E quando falo teatro, incluo música, literatura… A arte tem esse poder de transformar as pessoas para melhor. Se vemos hoje tanta gente com narrativas tortas, mau-caratismo, discursos distorcidos, talvez seja porque muitas dessas pessoas nunca ouviram música o suficiente, nunca leram bons livros, nunca viram peças que as transformassem. Nunca se aproximaram de verdade do poder transformador da arte.
Sou muito ambicioso em relação ao teatro. Costumo dizer que, por mais difícil que seja um espetáculo, não existe barreira para a leitura humanista, para a interpretação do espectador, seja ele quem for. Vivi um tempo – e talvez esse tempo esteja voltando, infelizmente – em que se acreditava que o problema educacional do Brasil estava nas classes mais baixas. Mas o problema sempre esteve na classe média e na classe alta.
Havia a ideia de que se deveria “dar ao povo o que ele quer”. Isso eu abomino. Qualquer espetáculo ou ideia, desde que construída com verdade, profundidade e respeito, pode ser assimilada em algum nível – seja intelectual, cultural ou sensorial. Minha ambição é grande em relação ao que o teatro e a música podem fazer pelo ser humano, para torná-lo melhor, mais feliz e mais realizado com a vida.
Quando conversamos com artistas da literatura ou da música, as respostas costumam ser mais objetivas, talvez mais previsíveis. Mas como você exercita seu olhar e sua sensibilidade para o teatro? Existe alguma rotina envolvida?
Eu tento viver mais o mundo real do que o virtual ou o das ideias pré-concebidas. Tento perceber o que me toca nos sentidos. Não digo que consigo sempre, mas estou constantemente exercitando meus sentidos em relação à vida. Às vezes, algo absolutamente improvável pode me afetar, porque todos nós temos formações sensoriais distintas. Vemos cores de formas diferentes, dependendo da nossa formação cultural e sensorial.
Cada ser humano é único. O que realmente interessa ao público é a singularidade do artista. Quando você descobre o que há de único em você – e todo mundo tem essa unicidade –, é aí que pode oferecer sua verdadeira contribuição ao mundo. Se você apenas simula outra coisa, pouco tem a acrescentar.
Eu vejo o mundo assim, neste momento, neste instante, neste segundo. E é isso que tento traduzir e compartilhar com quem assiste, porque só eu vejo dessa maneira.
Teatro do SESI-SP, no Centro Cultural Fiesp – Avenida Paulista, 1313
Até 29 de junho de 2025. Quinta a sábado, às 20h | domingo, às 19h
Acessibilidade: Sessões com Libras e audiodescrição aos sábados e domingos
Gratuita