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Festival de Teatro de Curitiba aposta na diversidade e sai do óbvio

Acompanhamos o evento que reuniu mais de 200 mil pessoas e contamos aqui o que nos surpreendeu

Por Beatriz Lourenço
13 abr 2023, 23h26

Depois de três anos sem edições presenciais, o Paraná voltou a celebrar o teatro com o 31ª Festival de Curitiba. O evento, considerado o maior nas artes cênicas da América Latina, apresentou 350 atrações em duas semanas. Ao todo, foram ocupados 65 espaços da capital e região metropolitana. 

O circuito celebrou o renascimento cultural do país, que vem sendo experienciado desde a nova gestão do Ministério da Cultura. O ator ​​Luis Melo, que passou por lá, comentou que essa movimentação é inesperada, mas muito positiva: “Os artistas e o público estão sedentos pelo reencontro. É emocionante ver os teatros lotados e as pessoas indo para curtir momentos generosos”, diz à Bravo!

De fato, 200 mil espectadores e 1500 artistas participaram do festival – logo na abertura da bilheteria, ao menos 18 sessões da Mostra Lucia Camargo, circuito principal da festa, já estavam com ingressos esgotados. 

Teatro político

Após uma imersão de sete dias em Curitiba, é possível dizer que as discussões sociais permearam o evento do início ao fim. A peça de abertura foi Hamlet, da companhia peruana Teatro La Plaza – aqui, a trama de Shakespeare é interpretada por um grupo de artistas com síndrome de down que questiona a existência humana. Para complementar a ação, o Festival desenvolveu uma parceria inédita com o Instituto Reviver Down e empregou cerca de 30 pessoas no quadro de colaboradores. 

Peça
Hamlet (Teatro La Plaza/divulgação)

“Não é possível falar sobre teatro sem falar de política, investimento, acesso e ações governamentais”, diz Cassio Scarpin, que interpreta o protagonista Odorico Paraguaçu no clássico O Bem Amado Musicado. A comédia traz, sob o ponto de vista da necropolítica, a rotina da cidade fictícia de Sucupira, localizada no litoral baiano. Acontece que a população elege um candidato que promete criar um cemitério mas, claro, não cumpre a construção. “Apesar de ter sido escrita em 1962, ela ainda é muito atual e nos ajuda a refletir sobre o que está acontecendo no Brasil atual”, completa.

Foto do elenco de
Cassio Scapin junto de parte do elenco de “O bem amado” (Ronaldo Gutierrez/divulgação)

A questão indígena aparece em Karaíba, uma adaptação do livro de Daniel Munduruku, que faz os espectadores refletirem sobre nossas terras antes das caravelas invadirem o território. Enquanto isso, a exaltação da negritude fica evidente nos espetáculos Cárcere ou Porque as Mulheres Viram Búfalos, apresentado pela Companhia de Teatro Heliópolis

Cárcere ou Porque as Mulheres Viram Búfalos.
Cárcere ou Porque as Mulheres Viram Búfalos (TIGGAZ/divulgação)

Já em O Grande Dia, peça-filme da Companhia Confraria do Impossível, o palco foca na trajetória de homens negros do mundo contemporâneo. “Nossa ideia é, além de denunciar as mazelas da história, apontar um caminho para pessoas negras que estão vivendo hoje. Estamos passando por um levante estético e de autoestima, sobretudo a partir das novas gerações – e queremos evidenciar isso”, declara Reinaldo Junior, protagonista e criador. “A ideia de longevidade de uma vida preta deve ser passada para o público jovem.”

Peça
Peça “O Grande Dia” (Jeff Fagundes/divulgação)

Elas contam suas histórias

Considerada referência na luta pelos direitos LGBTQIA+, a ativista Brenda Lee é a inspiração para o musical Brenda Lee e o Palácio das Princesas – vencedor dos prêmios Bibi Ferreira, APCA e Shell. A peça traz para o palco seis atrizes transvestigêneres que interpretam personagens com características das princesas da Disney. “Brenda foi uma travesti muito importante dos anos 1980. Ela criou uma pensão que recebia pessoas trans que, mais tarde, se tornou uma casa de acolhida para pessoas com HIV e Aids”, relata a atriz Olivia Lopes. “Ela também ajudou a criar políticas públicas de diversidade. E conhecer esse passado nos ajuda a situar onde estamos hoje.”

Foto da peça
Peça “Brenda Lee” dirigida por Olivia Lopes (Laerte Kessimos/divulgação)

A dramaturgia traz a música, uma homenagem às antigas boates da noite paulistana, e transcrições de entrevistas reais de Brenda colhidas de registros em vídeo na internet. “Esse espetáculo é uma espécie de manifesto. É com muita honra e responsabilidade que criamos esse roteiro”, diz a atriz Leona Jhovs. “Também estamos aqui para lembrar que não estamos sós.”

Foto da peça
(Laerte Kessimos/divulgação)

Uma surpresa boa

A estreia internacional ficou por conta de Square (Praça, em tradução livre), criada pela Companhia Wunderbaum, da Holanda. Surpreendente, o espetáculo leva a população a olhar o espaço público de outra forma – entendendo quem são as pessoas que passam por ali, apreciando a paisagem e refletindo os encontros, como uma espécie de imersão antropológica. 

Acontece assim: o espectador recebe um fone de ouvido para acompanhar o que os atores definem como “uma explosão sonora, rítmica e sensorial”. O roteiro, adaptado para a Praça Santos Andrade, traz informações pertinentes sobre o local, como o número de árvores, de estátuas e as principais rotas de transporte que partem dali. A performance tem poucos diálogos e exige atenção, afinal há inúmeros movimentos ocorrendo simultaneamente. 

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Square (Praça, em tradução livre), criada pela Companhia Wunderbaum.
Square (Praça, em tradução livre), criada pela Companhia Wunderbaum. (Monique Vaillé/divulgação)

O fio condutor é o ator Jens Bouttery, da Bélgica, que anda pelo espaço e transmite a trilha sonora por meio de seus passos. Ao longo do tempo, percebe-se mais de 30 atores em cena, que travam diálogos sobre a vida e o cotidiano. Ao final, é possível contar nos dedos quem não se emocionou. E a reflexão que fica é a imensidão de histórias que um espaço público carrega, além da importância de ocupá-lo.

“Escolhemos a peça pelo interesse de falar sobre a cidade e o resultado foi incrível. As filas gigantes evidenciaram a importância de realizar eventos gratuitos. Espero que na curadoria do ano que vem a gente possa trazer mais propostas como essa”, reflete a curadora Giovana Soar.

Valorizando o circuito paralelo

O acesso à cultura é o que marca o Fringe, circuito paralelo que teve mais de 40 exibições gratuitas, de um total de 280 atrações que movimentaram ruas, praças, parques, teatros e espaços independentes. Um deles é o Alfaiataria, um lugar que funciona como galeria de arte, ateliê, além de promover feiras culturais. 

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Dia 14 de Maio - O Dia Que Nunca Acaba
Espetáculo “Dia 14 de Maio – O Dia Que Nunca Acaba” que aconteceu na Praça Generoso Marques (Susan Sena/arquivo)

Com​​ 80 anos de existência, o edifício está localizado na rua Riachuelo, considerada por muitos a primeira rua de Curitiba. Fundado em 1932 por Guilherme Matter, alfaiate e pintor, o espaço tinha como foco a confecção e a venda de uniformes militares e foi, durante décadas, o único especializado neste tipo de vestimenta. “Ainda hoje recebemos cartas e ligações de pessoas que buscam a confecção dessas peças”, revela a produtora Alice Cieslinski

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Ao longo do tempo, a trajetória foi se transformando: nos anos 1990, a loja ficou conhecida no circuito dos artistas de teatro, de grupos punk e da comunidade LGBTQPIA+. Em 2017, o local encerrou suas atividades e passou por um processo de desmilitarização – até que foi transformado em um espaço cultural idealizado pelas artistas Janaina Matter e Luana Navarro, e inaugurado em 2019. “Neste ano recebemos 12 sessões da mostra de teatro. Para nós é muito bom porque vem gente de diversos lugares conhecer nosso trabalho”, conta Alice. “A gente tenta mudar a história pelas beiradas, criando um espaço de arte inclusivo para todos.”

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