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OLÁ,

Fluxo de Pensamento: Ciro Barcelos, o caçula dos Dzi Croquettes

O coreógrafo, que estreia o musical Dzi Croquettes Sem Censura, relembra vivência no grupo durante a ditadura

Por Ciro Barcelos em depoimento a Humberto Maruchel
12 jun 2025, 09h00
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 (Ronaldo Gutierrez/divulgação)
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Eu comecei a minha carreira bem novinho. Com 6, 7 anos de idade, lá em Porto Alegre. Sou gaúcho. Com aquela idade, eu já tocava sanfoninha gaúcha. Aqui chamam de acordeom, no Sul a gente chama de gaita. Meu pai me incentivava muito, porque eu já era bastante talentoso desde criança. Meus irmãos contam que eu já tirava tudo de ouvido.

Meu pai me inscreveu num programa de rádio, o Clube do Guri, que era um programa de calouros infantil. Esse programa, a Elis Regina também participou, um pouco mais velha que eu. Se eu tinha seis, ela tinha uns doze. Ela já tinha ganhado todos os prêmios e era secretária do programa.

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Formação original dos Dzi Croquettes (Acervo Pessoal de Ciro Barcelos/reprodução)

Quando a gente chegava no programa pela primeira vez, as crianças amarelavam, ficavam com medo de entrar em cena. Assim foi comigo. Quando cheguei, fiquei apavorado, não queria entrar no palco. E a Elis era quem arrastava a gente pro palco. Literalmente, ela arrastava.

Eu sempre digo que ela é a minha primeira madrinha. Ela sabia disso. Depois de anos, ficamos muito amigos. Quando eu vivi com o Lennie [Dale], ia muito pra casa dela com ele. E eu sempre contava essa história pra ela: “Eu tô aqui porque você tacou terror em mim quando eu era criança.”

Depois, minha família se transferiu pro Rio de Janeiro. Eu tinha 8 anos. No Rio, já fui me embrenhando pelo teatro, fazia teatro na escola, comecei a fazer ator mirim na Globo.

Participei de várias novelas: A Ponte dos Suspiros, Rosa Rebelde. E fui fazendo meus estudos no Rio. Até que a minha família voltou de novo pra Porto Alegre. Eu tinha então uns 16 para 17 anos. Mas Porto Alegre já não cabia mais em mim; criado no Rio, fazendo teatro…

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Ciro vestido de Gal Costa (Ciro Barcelos/arquivo pessoal)

Foi quando o musical Hair, com direção do Ademar Guerra, com a Sônia Braga, Armando Bógus, o Nuno Leal Maia, passou por Porto Alegre.

Eu, já era muito exibido, virei tiete deles. Ia assistir todo dia, esperava na saída. Aquele garotinho bonitinho, eles começaram a me arrastar pra cima e pra baixo. Fiquei muito amigo da Sônia, que na época ainda não era o ícone Sônia Braga que a gente tem hoje. Ela era a “Soninha”, uma atriz hippie do Hair.

Eu estava com 17 quando tudo aconteceu. A gente saía muito com o elenco depois das apresentações, e eu sempre dancei bem, tinha esse talento espontâneo. Ela curtia isso em mim. Quando um dos atores saiu da turnê de Hair, que já tinha rodado o Brasil e estava voltando para reestrear em São Paulo, a Sônia ficou insistindo: ‘Faz o teste, faz o teste’. Era para o papel do Woof.

Falei com meus pais, mas eles nem quiseram saber. Na cabeça deles era loucura demais. Não que fossem exatamente conservadores. Meu pai era gaúcho, mas sempre me apoiou, foi ele quem comprou minha sanfona. E minha mãe era estilista de alta costura. Meu pai dançava tango, trabalhou em cassino em Santos, primeiro puxando ficha, depois como dançarino. Tinha uma veia artística ali. Mas Hair era outra coisa. Para eles, era sinônimo de sexo, drogas e rock and roll. Já em Porto Alegre, quando a turnê passou, a polícia chegou a invadir uma apresentação. Estávamos em plena ditadura, 1969, 70. Era demais.

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Aí fugi, literalmente. Morava num prédio de quatro andares, sem elevador. Joguei minha mochila pela janela do primeiro andar e fui pra Florianópolis fazer o teste. Fiz e passei. Mas a produção, ao ver minha ficha, percebeu que eu era menor de idade. Eles disseram: ‘Imagina! Já andamos com a polícia atrás da gente, não podemos ter menor no elenco’. Só poderia fazer se tivesse emancipação. Voltei no mesmo dia pra Porto Alegre. Meus pais estavam desesperados, já tinham chamado a polícia. Sentei com eles e expliquei. Disse que não tinha outra escolha, que era aquilo que eu queria para a minha vida. E eles aceitaram, e fui emancipado.

Estreei em Curitiba, depois seguimos pra São Paulo, no antigo Teatro Aquários, que depois virou o Záccaro. Morava numa pensãozinha na esquina ali da Rui Barbosa, com o elenco. Eles meio que me adotaram. Foi uma escola incrível. Foi ali, inclusive, que tomei meu primeiro LSD. Foi nessa época que conheci o Lennie Dale. Eu era fã dele desde criança, via ele dançando na TV, achava o máximo. Meus pais iam de smoking e vestido longo pra assistir o Lennie dançar no Fred’s, ali no Beco das Garrafas. Ele era muito conhecido.

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Ciro e Lennie (Ciro Barcelos/arquivo pessoal)

O Lennie veio a São Paulo com um show e assistiu Hair. Me esperou na saída, me cumprimentou, elogiou. Fomos jantar. Conversa vai, conversa vem, ele perguntou o que eu queria da vida. Falei: ‘Quero ser igual a você’. Ele respondeu: ‘Ok. Te dou uma bolsa de estudos, se quiser’. Quando Hair acabou, fui pro Rio estudar com ele. Fiquei na casa do meu irmão e, logo depois, fui morar com o Lennie. Ficamos juntos quase um ano. 

Foi nessa época que conheci o pessoal que depois formaria os Dzi Croquettes. Um deles, que também era aluno do Lennie, me chamou pra conhecer um grupo em Santa Teresa que estava montando algo novo. Fui, achei a proposta genial; se vestir de mulher, com perna cabeluda. Achei irreverente. Cheguei em casa e contei pro Lennie. Ele ficou com ciúmes, claro. A ideia dele era me preparar pra entrar nos shows dele como bailarino.

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Santa Teresa era vista como lugar de loucura, de muita droga, o que causava certa estranheza. Mas levei o Lennie lá pra conhecer. Nesse dia, a gente tinha ingresso pra ver a Gal Costa em Botafogo. Era aquela fase punk dela, toda de preto. Fomos ao show, e depois levamos a Gal com a gente pra Santa Teresa. 

Eles prepararam um número para a gente, assim, bem precário, mas muito engraçado. Já tinha a espiritualidade que depois virou a marca do Dzi Croquettes: irreverência, deboche. E o Lennie achou aquilo genial. 

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Liza Minelli assistindo aos Dzi no Rio pela primeira vez (Ciro Barcelos/arquivo pessoal)
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Cena do MUsical Dzi Croquetes sem censura (Ronaldo Gutierrez/divulgação)

Nesse meio tempo, estreou o Cabaret o filme da Liza Minnelli. O Lennie ficou louco e falou: ‘Nossa, é isso! Vamos misturar essa linguagem do bloco de piranha, do homem vestido de mulher, com perna cabeluda, do carnaval do Rio de Janeiro, com essa coisa do cabaré, Broadwayniano, Bob Fosse…’ A partir disso, ele pegou essa ideia e começou a construir o espetáculo.

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Com o Wagner Ribeiro desenvolvendo toda a temática do humor teatral e o Lennie encenando. E aí foram chegando outros, que já frequentavam a casa do Wagner, que era conhecida como a Embaixada de Marte. Era uma casa em Santa Teresa, bem riponga, mas muito legal, de frente para a Baía de Guanabara. O Wagner era artesão, fazia saias de couro, casacos, pochetes que ficaram muito conhecidas na época. Ele foi o fundador da Feira Hippie de Ipanema. Foi o primeiro a botar um pano no chão na Praça General Osório para vender os artesanatos dele. Dali surgiu a Feira Hippie.

Ele já fazia roupas para artistas como a Vanusa, o Erasmo Carlos, a própria Elis… Essa turma toda, porque ele tinha um ponto fixo: uma banquinha na feira e também um ateliêzinho ali em Ipanema. Então essa gente já frequentava a Embaixada de Marte para experimentar roupa.

O Wagner tinha um humor enorme e uma voz que ele fazia — um falsete fininho — que era uma personagem dele. Brincava muito com isso. Então, a partir daí, nasce essa linguagem com essa espiritualidade que é muito peculiar a nós, aos Dzis, e que depois foi se expandindo, influenciando outros.

O Lennie acabou montando um puta espetáculo que inicialmente estreou numa boate em Ipanema chamada Monsieur Pujol, que era na parte mais cara de Ipanema. 

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(Ronaldo Gutierrez/divulgação)
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A gente já estava em 1970, 71, praticamente. O Lennie conseguiu com o dono do Pujol para a gente estrear. Estreamos num espaço bem pequeno, e foi um grande sucesso. Dali, viemos para São Paulo, para outro palco pequeno: a Boate Tom-Tom, na Nestor Pestana. Também era uma boate de rico. Assim como o Pujol no Rio. Tanto que a classe artística, os atores que não tinham grana, não conseguiam nos ver, porque era muito caro. Mas o espetáculo estourou.

Em São Paulo, o Sábato Magaldi (crítico teatral) foi assistir e escreveu uma crítica maravilhosa, na qual ele finaliza dizendo: “Eles merecem um teatro. Eles são uma linguagem teatral. Eles não são uma linguagem de boate. São muito mais do que isso.”

Aí, o Benê Mendes, que era dono do Theatro Treze de Maio, adotou a gente. Levou a gente para esse teatro, onde estava em cartaz Hoje é Dia de Rock. Tanto que aproveitamos parte do cenário do Hoje é Dia de Rock para montar o nosso Dzi, porque não tínhamos dinheiro.

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Alguns dos participantes da formação original (Ciro Barcelos/arquivo pessoal)

Foi nesse teatro que a classe artística inteira — os jovens atores e atrizes — nos descobriu. Paralelamente, os Secos & Molhados estavam ali no Ruth Escobar, querendo estrear também. A primeira maquiagem deles foi feita pelo Cláudio Tovar, um dos Dzis. Foi ele quem fez a cabeça deles: “Ah, gente, vamos nos maquiar, fazer uma coisa doida.”

O Ney, o Nezinho, ainda era muito tímido, estava ensaiando com eles e ia nos assistir no Treze de Maio.

Ali estourou. Virou um movimento. Uma loucura. Eram dois espetáculos: um no palco e outro na plateia. Porque o público começou a ir vestido como a gente. Vinham pessoas do Rio, vinham outros de vários cantos: Caetano, todo mundo. 

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(Ronaldo Gutierrez/divulgação)

Havia uma sensação de libertação ali naquele espaço, porque o que estava fora era a ditadura. Mas a gente criou uma espécie de bolha em volta da gente. E essa bolha nos imunizou por um tempo. No nosso caso, virou um movimento muito forte.

A gente vivia apreensivo, com medo de que, de um dia para o outro, desse uma merda.

Porque, àquela altura, o Caetano já tinha sido exilado, o Gil, o Chico…. Então a gente vivia com aquela sensação: “Qualquer hora, é a gente.”

A temporada em São Paulo foi tranquila. Aqui, eles ainda não estavam muito preocupados com a gente. Na cabeça deles, que ouviam rumores de longe, achavam que éramos um bando de viado fazendo bagunça. Éramos homens de perna cabeluda, que não queriam ser mulheres. De barba, de bigode.

Até que, quando voltamos para o Rio de Janeiro para fazer temporada no Teatro da Praia, foi quando começamos a sentir sintomas de perseguição. Um dia, o pessoal do DOPS entrou na minha casa, no Jardim Botânico, onde estávamos eu, o Lennie e mais dois Dzis, nos preparando para ir para o teatro. Eles entraram e nos levaram presos. Tivemos que cancelar o espetáculo naquela noite.

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(Ronaldo Gutierrez/divulgação)

Foi bem constrangedor o modo como nos trataram. O Dzi, para a gente, claro que tinha um cunho político, mas a gente não criou com essa intenção. A gente queria fazer teatro. Queria fazer uma coisa diferente. Uma coisa louca. E eles disseram aquelas coisas: “Bando de veado. Vocês são um atentado à moral, aos bons costumes.” Aí nos deixaram presos. Liberaram dois. Ficamos eu e o Lennie. Esses dois voltaram para a Embaixada de Marte e avisaram o pessoal.

Depois recebemos uma intimação para que algum responsável do grupo comparecesse ao DOPS. Foi o Cláudio Tovar, porque tinha que ir de terno. E ele era o único que ainda tinha um terno da época da faculdade de Arquitetura. Sobrou para ele.

E nesse interrogatório, o Tovar decorou todinho o que o cara falou pra ele: “Seu viado, filho da puta, fica mostrando o cu pra todo mundo, tentando a família, não sei o quê… Se eu souber que vou te liberar e você continuar mostrando o cu pra plateia, eu vou acabar com vocês, vou sumir com vocês daqui.” Foi aí que a gente constatou que dava pra desaparecer com a gente a qualquer momento.

Eu passei a viver uma paranoia, achando que, em qualquer esquina, à noite, eles podiam sumir comigo. Como sumiram com tantos, sem explicação. Naquela altura, já tínhamos conhecimento da tortura. Tínhamos amigos que passaram por isso. A Norma Bengell já tinha sido exilada. Então resolvemos ir embora do Brasil. Mas como, se não tinha dinheiro?

Foi a Maria Della Costa, aqui em São Paulo, que muito generosamente nos ajudou. Um gesto que hoje em dia a gente não vê mais. Ela nos proporcionou uma temporada no Teatro Maria Della Costa, com toda a renda destinada a nós. Não ficou com nada.

Viemos pra São Paulo, fizemos essa temporada, que também não foi longa, porque a gente estava nessa apreensão de a qualquer momento desaparecer. A estreia foi anunciada como “Despedida do Brasil”. Fizemos questão de colocar isso, para os militares verem que estávamos mesmo nos virando pra ir embora. E a estreia foi cheia: gente do Brasil inteiro veio.

Teve protesto na frente do teatro. O público derrubou uma porta de ferro lateral, que existe até hoje, pra conseguir entrar. Chamaram o Batalhão de Choque. Foi uma loucura. E assim eram todos os dias: protestos na porta, aquela tensão.

Até que conseguimos comprar as passagens de navio. Embarcamos num navio italiano, o Eugenio C, na terceira classe, a mais barata. Abaixo da gente, só o alojamento dos marinheiros. Foram 15 dias a bordo. E, bom, obviamente, a gente quase afundou o navio porque virou uma loucura.

A gente fazia aula no convés de tapa-sexo, de bunda de fora, todo mundo com o cabelo na cintura. Virou uma doideira. Logo a primeira classe começou a convidar a gente pra subir, pras festas, jantares, até cabines. Foi uma viagem surreal. 

Enfim, chegamos a Portugal. Mas ali foi outro problema. A Revolução dos Cravos tinha acabado de acontecer. A gente estava à deriva, sem saber o que fazer. E Portugal também não sabia o que fazer com a gente.

Chegamos lá, largamos os baús com figurinos na alfândega, pegamos uma pensãozinha barata e saímos com o portfólio debaixo do braço. Achamos um café-concerto chamado Fru-Fru. Achamos que o nome combinava com a gente. Fomos falar com o dono, fizemos um número pra ele, ele gostou e estreamos ali. Mas não aconteceu nada. Primeiro porque estamos falando de Portugal de 1971, 72… Aí, o que fazer?

A Liza Minnelli tinha assistido a gente no Rio de Janeiro, um pouco antes de sermos censurados. Gravamos um quadro com ela para o Fantástico, dançando juntos. E, quando ela soube lá dos Estados Unidos que tínhamos sido censurados, mandou um parecer condenando o absurdo que era aquilo.

Em Portugal, liguei para o Patrice Calmettes, um fotógrafo francês muito conhecido em Paris, que também era promoter — fotografava Diana Ross, Mick Jagger, essa turma toda. O Patrice tinha nos assistido no Brasil, eu tinha tido um affair com ele. Liguei e falei: “Patrice, estamos aqui em Portugal naufragando, socorro!”

Ele pediu alguns dias e logo retornou dizendo que estava levantando uma produção para nos levar pra Paris. Pediu que alguém fosse antes para uma reunião. Foi o Claudio Tovar. E ele sempre conta essa história: Chegou em Paris, foi ao Café de Flore, famoso lá em Paris. Mas o Patrice não contou com quem era a reunião. Quando ele chegou e viu… era o Mick Jagger. O Mick já tinha sido convocado pra ajudar a financiar nossa ida. Ele já sabia de tudo.

O Patrice pegou um pouco do Mick, um pouco daqui, dali — ele também tinha grana —, e produziu nossa ida. Fomos todos para Paris. Tivemos um tempo de ensaio lá, e estreamos no Teatro Off-Broadway de Paris, no Théâtre Charles Dullin, com uma estreia badaladíssima.

O Tovar era muito tímido, muito na dele. Quando viu que era o Mick Jagger na mesa, ficou mudo. Não conseguia falar. Foi uma situação bem constrangedora pra ele. Na sequência, corta para o Ciro com 19 anos. Quando abriu a cortina, estavam lá todos os meus ídolos. 

Meus ídolos eram Mick Jagger, Jim Morrison, Janis Joplin. No Brasil, eu não era da Jovem Guarda, era do time da MPB. E ali estavam eles: Mick Jagger, Bianca Jagger, David Bowie, Catherine Deneuve, Omar Sharif, Alain Delon, Josephine Baker. A Liza não estava porque estava em turnê em Nova York.

Foi um sucesso, claro. Mas no dia seguinte… nenhuma notícia. Só as colunas sociais, que bombaram. Mas a imprensa ficou impactada com nosso ineditismo. Não souberam o que dizer. Era inclassificável pra eles.

A gente com os cabelos enormes, brincos de pena, uma mistura de selvageria com vestidos rasgados, pernas cabeludas e ao mesmo tempo um rigor técnico de dança impecável. O Lennie, uma estrela, dançava como ninguém jamais dançou. A imprensa ficou em choque. Não saiu nada.

Aí a Liza chega a Paris para fazer o show dela, e fica sabendo disso, que o público não estava chegando, que estávamos no escuro. Os poucos que iam, ficavam chocados com aquilo. 

Então veio o show da Liza. No dia da apresentação dela, ela convocou toda a imprensa que havia ido ao espetáculo para voltar no dia seguinte, quando faríamos uma sessão especial. E eles voltaram. Com a Liza Minnelli e mais um monte de convidados. E foi aí que estourou. Ou seja, precisou que eles vissem a Liza Minnelli aplaudindo em pé, eufórica, subindo no palco no final pra dançar com a gente. Só assim entenderam que aquilo era bom. E aí explodiu. Virou um grande sucesso. Ficamos quase um ano em Paris. Depois, seguimos para a Itália, e voltamos a Paris.

Mais tarde, fizemos uma apresentação na Bahia. Isso por causa de um projeto da Liza e do marido dela na época: a ideia era criar um espetáculo chamado Cabaré 2 – Liza e os Dzi Croquettes, que viraria também um filme. Só que, àquela altura, já tínhamos feito todas as temporadas possíveis. Paris estava esgotada. E havia um hiato de seis meses até irmos para Londres. Sem saber o que fazer nesse intervalo, decidimos voltar ao Brasil. Um fazendeiro milionário da Bahia, amigo do Lennie, que tinha assistido a uma apresentação nossa em Paris, queria nos contratar para seu aniversário.

Fizemos uma votação e a maioria decidiu voltar. Estavam com saudades. Quando chegamos ao Brasil, eu e o Lennie fomos direto para Salvador, dois dias antes do espetáculo no Teatro Castro Alves. Só que aconteceu um problema. O Cláudio Tovar, inspirado pelas festas de largo na Bahia, decidiu mudar completamente o cenário. Em vez das rampas que usávamos, criou uma grande escadaria, como a da Igreja do Bonfim.

Quando Lennie viu aquilo, ele disse: “Não tenho a menor condição de dançar nesse cenário.” E realmente, não dava mais tempo de mudar nada. Resultado: Lennie se recusou a fazer o espetáculo. Eu tive que substituí-lo. E o Brasil inteiro havia se deslocado para Salvador para assistir à volta dos Dzi Croquettes, estava todo mundo lá, Gil, Caetano, todo mundo. Mas o espetáculo ficou aquém. Ninguém estava acostumado com aquele novo cenário, aquela escadaria. E ali, o grupo começou a se dissolver.

Eu voltei para a França. Já estava casado com a Cristhiana Steidten, uma top model alemã da época. O Lennie também tinha muito o que fazer em Paris, dava aulas, tinha seus projetos. E os outros voltaram para São Paulo. Ainda tentaram montar algumas coisas, mas o grupo foi se esvaziando. Tanto que eu sempre digo: essa história termina em Paris. Vieram outras, mas essa, termina lá.

E, claro, foi difícil abandonar aquilo tudo. Não era só um grupo, era uma família. Morávamos juntos desde o Brasil. Orávamos juntos, conspirávamos juntos. Éramos sensação: entrávamos nas casas noturnas mais caras de Paris, com bebida liberada, mesas reservadas. Nos tornamos o coqueluche da cidade. Éramos convidados da Jane Moreau, da Brigitte Bardot. Estilistas como Kenzo, Christian Dior, todos nos queriam por perto.

Depois disso, o grupo que ficou no Brasil montou um novo espetáculo chamado Romance. Tinha alguns dos integrantes antigos, outros novos. Teve boa recepção, mas era outra coisa, mais teatro e humor, menos dança. Esse espetáculo foi para Paris. Eu entrei no elenco, mas Lennie não quis. E sem ele, foi um fracasso. O público queria o Lennie, queria os Dzi Croquettes de verdade. Chegaram a vaiar. Lennie não topou porque estava em outro momento, e não gostava do rumo artístico que o espetáculo tinha tomado.

Depois disso, voltamos a fazer algumas coisas menores, mantendo o espírito underground, o deboche, mas nunca mais fomos o grande espetáculo que havíamos sido. O grupo ainda ficou um tempo por lá, depois voltou para o Brasil.

Já era final dos anos 1970. Em 1981, o Lennie me ligou. Ele estava no Brasil, dando aulas, e queria remontar um espetáculo com o grupo. A ideia era fazer Madame Satã, um musical com os Dzi Croquettes como companhia estável. Quando ele me chamou, eu larguei tudo: estava em Paris, dançando com Maurice Béjart, Pina Bausch, integrando companhias de dança sérias. Mas larguei tudo e voltei. Nossa ligação era muito forte.

No fim, o espetáculo Madame Satã não saiu. Mas fizemos TV Croquette – Canal Dzi, que estreou em 1981 no Teatro Ipanema, Teatro Rival, Teatro Teresa Raquel. E foi um sucesso, um sucesso igual ao primeiro.

Foi aí que surgiu a geração do besteirol: Regina Casé, a Débora Bloch, Pedro Cardoso, Luiz Fernando Guimarães. Eles ensaiavam no Teatro Ipanema, já tinham o grupo “Asdrúbal trouxe o trombone”. Assistiam a gente todo dia. Tanto que muitos dizem, a Cláudia Raia, o Luiz Fernando dizem isso até hoje: “Se não fosse os Dzi, a gente não estaria aqui.” Nós éramos uma escola de teatro para eles.

Esse foi o último grande momento. Depois, o Lennie adoeceu. Isso foi acontecendo ao longo dos anos 1980. O Lennie adoeceu com HIV e acabou indo para os Estados Unidos porque queria morrer lá. E foi lá, de fato, que ele partiu. A partir dali, tudo parou, pelo menos aquele ciclo.

Mas nós seguimos juntos. Eu me tornei diretor, encenador, coreógrafo. Fui para a Globo, coreografei as aberturas do Fantástico. Nos espetáculos que eu montava, era o Tovar quem fazia os figurinos. E seguimos assim até hoje.

O Lennie faleceu nos Estados Unidos. Inclusive, eu encerro o espetáculo dizendo: “Leonardo La Ponzina, mais conhecido como Lennie Dale, nos deixou. O diagnóstico foi HIV.” Mas o que matou, na verdade, foi uma overdose de tanto amor distribuído. Porque ele era assim: tinha um coração do tamanho do mundo e distribuía amor para todos.

Eu aprendi tudo com ele. Tive a sorte de ter grandes mestres ao longo da vida. O Lennie, Maurice Béjart, Pina Bausch. Fiz cinema com Claude Lelouch, fui casado por um tempo com o Rudolf Nureyev. Imagina, o maior ícone da dança do século XX.

Quando voltei ao Brasil, em 81, fui morar com a Gal. E ali, com ela, veio todo esse contato com a voz, o canto. Sempre a escutei muito de perto. Mas foi com o Lennie e com os Dzi Croquettes que eu ganhei régua e compasso.

Eu era muito jovem e fui adotado por eles. Éramos dois mais novinhos no grupo. Então eu era mimado por todos, e cada um queria me ensinar um pouco do que sabia. Foi uma escola, não só de teatro, mas de vida.

Acho que aquilo não se repete. Foi único. O que estamos fazendo agora pode ser bacana, acho que o público vai gostar. É a primeira vez que estamos contando a história com dramaturgia, vivendo cada um de nós. Tem um ator que faz o Ciro aos 18 anos, eu faço o Lennie e também o Ciro narrador. Acho que será curioso, no mínimo, porque até agora só tínhamos o documentário. E aqui eu conto tudo, até as orgias no navio. É um espetáculo sem censura.

Mas os Dzi Croquettes não se repete. 

No musical, trago um elenco jovem, muito talentoso. Todos passaram por audição. Escolhi muito pelo physique du rôle, pelas semelhanças físicas com os integrantes originais do Dzi. Não priorizei um elenco típico de musical, tipo Broadway. Não é minha pegada. Busquei tipos diversos, vozes diferentes, e todos são muito talentosos. Vestiram mesmo a camisa.

Tudo foi feito sem patrocínio. Juntamos acervo, montamos um ateliê com dois assistentes. E eu comecei a escrever o espetáculo. Cada dia eu voltava pra casa e escrevia uma nova cena. Percebi que essa história precisava ser contada por inteiro, não dava pra deixar nada de fora.

Então é isso. A história está viva. Estamos contando.

Serviço

Dzi Croquettes Sem Censura

Teatro Itália – Av. Ipiranga, 344, República
De 12 de junho a 27 de julho
– Junho: de quinta a domingo, às 20h30
– Julho: sábados e domingos, às 20h30
Ingressos: entre R$ 50 e R$ 160

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