Continua após publicidade

Fluxo de Pensamento: como Marieta Severo desafiou a censura da ditadura

Atriz relembra as dificuldades e subterfúgios para fazer teatro durante a década de 1960

Por Marieta Severo em depoimento à Humberto Maruchel
Atualizado em 29 mar 2024, 13h06 - Publicado em 28 mar 2024, 11h00

Em 1964, no ano do Golpe Militar, eu tinha 18 anos e morava com meus pais em Ipanema. Lembro-me da repercussão em casa sobre a Marcha da Família, dos vizinhos colocando velas nas janelas. Meus pais não eram de esquerda, mas eram progressistas, e havia um estranhamento em relação a tudo o que estava acontecendo.

Foi nesta mesma época que comecei minha incursão pelo teatro. Como tantos outros atores no Rio de Janeiro, iniciei minha formação no Tablado, uma escola tradicional fundada pela dramaturga Maria Clara Machado. Minha ideia desde pequena era seguir carreira de professora. Comecei meus estudos no Instituto de Educação, na Lagoa. Mas havia um problema que me fez mudar os planos: a escola ficava justamente em frente ao Tablado. Certa vez, curiosa, atravessei a rua, entrei na escola. E posso dizer que dali eu nunca mais saí. Não cheguei nem a lecionar, pois o encanto teatral me envolveu por completo.

 

Meu pai não impôs nenhuma proibição; embora o mundo do teatro fosse completamente um mistério para ele. Havia mais um medo do desconhecido do que constrangimento.

Continua após a publicidade

Naquela época, meu pai já tinha uma grande admiração por Fernanda Montenegro, uma herança que recebi. Ser atriz na minha geração já não causava tanto estranhamento como nas décadas anteriores, quando as artistas eram taxadas da pior maneira possível devido ao preconceito moral. A luta da minha geração foi outra.

Hoje em dia, nessa nossa era digital, é mais fácil acompanhar as mudanças. Na época, não havia a mesma forma de divulgação de ideias. Atualmente, sabemos da existência de uma ultra direita organizada e atuante, principalmente nas mídias digitais. O Golpe Militar nos pegou de surpresa em 1964. Embora houvesse demonstrações de conservadorismo, pensávamos que ele pertencesse a um setor menor da sociedade. Talvez estivéssemos enganados, mas tínhamos a sensação de que aquele se tratava de regime imposto pela força, não pelo apoio popular. Mas fomos percebendo, da pior maneira, o reacionarismo vigente.

No meio artístico nos parecia que a liberdade e a democracia eram uma unanimidade, não me lembro de conhecer ninguém que fosse favorável àquele tipo de governo autoritário.

Entre 1964 e 68, vivíamos sob uma ditadura que ainda permitia movimentos populares e manifestações. Vários protestos contra a ditadura encontraram espaço, mas isso acabou de vez quando veio o AI-5, em 1968, que estabeleceu uma violência impensável, com perseguições, torturas e assassinatos. Eu estava com 21 anos. Começamos a entender qual era o terreno em que estávamos pisando. Todas as manifestações contrárias à ditadura foram proibidas.

Continua após a publicidade

O movimento fascista ganhou força na sociedade, e já não se limitava apenas aos militares. Começamos a perceber um apoio mais evidente à ditadura.

A primeira coisa que uma ditadura faz é acabar com o pensamento livre.

Conforme o tempo passava, aquilo foi tomando conta de nossas vidas; vivíamos para nos opor à ditadura. Havia reuniões constantes da classe artística com estudantes, lideradas principalmente por eles. Vivemos nossa juventude, o período de maior impulso libertário e criativo, sempre conscientes da ditadura que nos cercava.

Um regime ditatorial se infiltra em cada hora do seu dia. Você se sente constantemente ameaçado em cada pensamento, texto ou peça que deseja criar. E você tem que estar atento para não entrar numa autocensura. Isso é exaustivo.

Continua após a publicidade

Após 1968, tudo mudou e todos da classe artística precisaram buscar formas de driblar a censura, que passou a ser uma constante no fazer artístico. O ponto de honra das nossas vidas passou a ser tentar romper as fronteiras impostas pelo autoritarismo. Nossa missão era lutar contra a repressão que tentava sufocar o pensamento e a criação.

Lembro-me de pensar constantemente: “Meu Deus, estou passando mais um ano da minha juventude que é o momento de maior ímpeto de mudar as coisas, nesse regime. Mais um ano nessa repressão.” Essa consciência era constante. Ano após ano, me perguntava quando aquilo iria acabar. Jamais pensei que duraria tanto, imaginava que algo aconteceria e tudo se modificaria.

A cada trabalho que realizávamos, a ditadura estava presente. Tínhamos muito mais a oferecer do que apenas driblar a ditadura. Poderíamos fazer muito mais do que aquilo, mas nossa força estava em encontrar brechas e não nos deixarmos abater.

No teatro, na nossa bolha, achava que tudo o que fazíamos era importante. Hoje penso “Que ingenuidade”, mas a sensação de fazer algo significativo era fundamental para nós.

Continua após a publicidade

Por mais surpreendente que possa parecer, houve um grande crescimento, uma efervescência no teatro, nas artes em geral. O show “Opinião”, por exemplo, marcou posição contra a ditadura, ainda num momento em que a censura não estava tão atenta. Foi nesse mesmo período que nasceu a peça “Roda Viva”.

“Roda Viva” foi revolucionária em muitos aspectos, mas principalmente por causa de Zé Celso, muito mais do que pelo texto de Chico [Buarque], que era mais esquemático. Acho que ele escreveu coisas muito mais maduras posteriormente. Zé, com sua maneira de quebrar barreiras, tanto teatrais quanto de ideias e costumes, fez de “Roda Viva” uma experiência social muito marcante.
Se você quisesse criar um ruído, trazer novos temas, sabia que estava em um campo de ameaças. Mas com “Roda Viva”, conseguimos realizar uma temporada de enorme sucesso.

Este foi o único espetáculo da minha vida que eu assistia todas as noites quando não estava em cena. Tinha um lugar, na parte superior do teatro Princesa Isabel, onde ficava o canhão de luz, e eu ficava ali, escondida do público. Para mim, “Roda Viva” representa a essência do teatro. Cada noite era única, com algo diferente acontecendo. Havia espaço para coisas novas, alimentadas pela reação da plateia.
Quando a peça foi para São Paulo, não pude acompanhá-la. Foi então que as coisas começaram a se tornar mais difíceis. Além da atuação militar, havia também a presença paramilitar. Tudo ficou muito assustador, e a ameaça se tornou física. Soubemos do ataque ao Oficina, e no dia seguinte Chico e eu fomos para São Paulo, nos solidarizar com o elenco. No entanto, o pior momento foi quando a peça foi para o Sul e dois atores foram sequestrados. Parecia inacreditável para nós.

O argumento da força é o mais horrível que um ser humano pode usar contra o outro. É desigual, é covarde. Como naquela fala que dizia que bastava um revólver para fechar o Congresso. Claro, nenhum ser humano quer morrer. O argumento da força não é argumento.
Chico enfrentava ameaças constantes. Recebíamos cartas de intimidação todos os anos. “Você é o primeiro da nossa lista no próximo ano.” Muitos conhecidos foram ameaçados ou desapareceram. Ou pior: assassinados. Um grande amigo de infância foi brutalmente torturado por participar de um congresso estudantil e sofre com as sequelas até hoje. Era um adolescente, um estudante do Ensino Médio.

Continua após a publicidade

Em 1969, fomos para a Itália. Eu estava grávida de sete meses e ia ficar 20 dias fora. Ficamos dois anos. A decisão de permanecer lá foi minha. Chico foi muito companheiro no sentido de estar disposto a voltar caso eu me sentisse insegura de ter Sílvia fora do Brasil. “Não tem problema, eu enfrento”, ele disse. Mas era algo impensável.

Lembro-me de encontrar Vinícius de Moraes em Roma. Ele também foi muito conselheiro. “Filhinha, se eu fosse você, não voltava.”
Foi um autoexílio. Ninguém diz “Estou exilado” enquanto passeia. A ameaça que recebíamos dos quartéis era constante. Foi muito doloroso. Grávida de sete meses, emagreci seis quilos. Isso não deveria acontecer.

Após 14 meses, decidimos voltar para fazer um teste. A Silvinha estava com quase um ano. Ricardo Amaral organizou um show e Chico foi convidado a participar. Pensamos que se fôssemos voltar, teria que ser com algo público, assim seria mais difícil tentarem desaparecer com o Chico. Voltamos definitivamente para o Brasil um ano mais tarde.

A censura ainda estava muito forte. Mas fui tentando escrever minha história como atriz, escolhendo trabalhos que faziam sentido para mim.Fiquei 11 anos sem fazer televisão. Chico era proibido de aparecer na TV Globo, “Como eu poderia trabalhar lá?”, eu pensava.

Apesar da censura e do medo, a alegria era uma característica para nós artistas. Éramos muito alegres, animados e fortes. Não éramos nem um pouco melancólicos. A depressão não foi uma marca da minha geração.

A força da juventude é algo maravilhoso. Sentia raiva por passar minha juventude vivendo num momento de repressão. Ao mesmo tempo, buscávamos apoio na alegria, na amizade. Viver parecia uma vitória.

Nunca pensei em desistir da carreira. Não me lembro de ninguém em meu círculo social que pensasse em desistir. Em vez disso, pensávamos qual seria o próximo passo, que brecha poderíamos encontrar. Nossa força estava em encontrar brechas e não nos deixar abater.

Publicidade