Grupo Sobrevento: uma vida dedicada ao teatro de animação
A fundadora Sandra Vargas reconta a trajetória do grupo teatral, que se tornou um dos mais duradouros no Brasil
Era o fim da década de 1980 quando os atores Sandra Vargas e Luiz André Cherubini decidiram formar um grupo teatral. Naquela época, as companhias e os coletivos ainda não eram tão comuns. Eram os grandes encenadores quem tinham o poder de dar oportunidades para novos talentos.
Foi uma experiência repentina que cruzou o caminho dos dois artistas, orientando-os para uma nova direção. Eles conheceram o teatro de animação e de bonecos por meio de uma nova disciplina na Escola de Teatro da Unirio. A partir daí, descobriram um mundo ainda mais poético nas artes cênicas e encontraram a possibilidade de fazer teatro não apenas como paixão, mas também como única forma de subsistência. Assim, criaram o Sobrevento.
Já são 37 anos desde o início dessa aventura coletiva ao lado de Andréa Freire e Miguel Velhinho. Hoje, o grupo continua ativo com a mesma intensidade do início, mas com novos integrantes: Mauricio Santana, Marcelo Amaral e Agnaldo Souza. “Acredito que nos destacamos muito também porque sempre dissemos que fazíamos teatro antes de fazer bonecos. Se em algum momento percebermos que os bonecos não servem para o que queremos dizer, abandonamos sem nenhum remorso. Em outro momento, recorremos aos objetos, que é outra linguagem. Isso nos levou a outras dramaturgias, menos espetacular com o público, e mais íntima”, explica Sandra Vargas em entrevista à Bravo!.
Recentemente, o coletivo revisitou sua própria história por meio do espetáculo Cadê o Sobrevento?: 20 anos depois, no qual encenam o desdobramento da peça Cadê Meu Herói?, mostrando, como numa brincadeira metalinguística, a vida daqueles personagens que também representavam uma trupe de bonequeiros. “É um pouco para nos perguntarmos o que aconteceu conosco nesses 20 anos. Será que nós nos apoiamos ainda nas mesmas verdades? É uma provocação, mas também uma maneira de fazer disso uma celebração, de nos divertirmos”, resume. A nova montagem estreou no Sesc Pompeia e, neste mês de outubro, a companhia se prepara para uma nova temporada no Sesc Belenzinho.
Confira abaixo a entrevista completa com Sandra Vargas, atriz, diretora e uma das fundadoras da companhia, sobre a história e a herança do Sobrevento para a cultura nacional.
Na década de 1980, muitos profissionais estavam pesquisando a fisicalidade e o movimento em cena, muito inspirados pelo Teatro-dança de fora do país. Para um grupo se profissionalizar em teatro de bonecos, não parecia uma escolha óbvia. Como ocorreu esse encontro entre vocês e o que os fez pensar que esse poderia ser um caminho promissor?
Naquela época, se cultuava muito a figura do diretor. Começamos a pesquisar teatro de animação na universidade, graças a um programa do Ministério da Cultura com a universidade do Rio de Janeiro, de colocar uma cadeira extracurricular de teatro de animação. Isso não foi para frente, mas mantivemos nossa própria pesquisa e fizemos três peças de Samuel Beckett, o que acabou nos tornando conhecidos. Eram peças com bonecos, com rostos não naturalistas, com uma escultura branda, nada colorido, manipulado a seis mãos. Isso tinha muito a ver com teatro físico, porque a qualidade da nossa movimentação veio com as nossas pesquisas em cima do trabalho corporal, o que nos deu uma qualidade muito virtuosa à animação.
Acredito que nos destacamos muito também porque sempre dissemos que fazíamos teatro antes de fazer bonecos. Logo entendemos que teríamos uma ferramenta a mais a serviço de nossas encenações. Essa peça do Beckett abriu as portas para nós em São Paulo. Compreenderam que era possível ter uma encenação teatral, de peso, desde que se entendesse teatro de bonecos como uma ferramenta.
Se em algum momento percebermos que os bonecos não servem para o que queremos dizer, abandonamos sem nenhum remorso. Em outro momento, recorremos aos objetos, que é outra linguagem. Isso nos levou a outras dramaturgias, menos espetacular com o público, e mais íntima.
Fizemos um museu de objetos da vizinhança, na Zona Leste. Saímos perguntando para os vizinhos quais objetos eles tinham em casa que eles não desfaziam de jeito nenhum, e que eles contassem uma história. A partir dessas histórias, fizemos o museu, expusemos os objetos com os relatos. Ou se o vizinho estivesse ali, ele mesmo poderia contar. Isso resultou no espetáculo Noite.
Como era o teatro de bonecos quando vocês começaram?
O cenário era forte. Nós estávamos na universidade, e se falava muito dos grandes diretores, que iriam te convidar para fazer uma peça e assim você viveria de teatro. E com a peça que fizemos do Beckett, uma grande pesquisadora chamada Magda Modesto, uma mulher com uma visão revolucionária, nos viu e meio que nos adotou. Mostrou o que poderia ser o teatro de bonecos. Ela era da Associação Brasileira do Teatro de Bonecos, e estava tendo naquele momento um grande festival de teatro de bonecos. Ela insistiu para irmos. Quando chegamos no festival, vimos uma quantidade de grupos trabalhando com diferentes técnicas e repertórios, uma diversidade gigantesca. Fiquei muito emocionada.
Havia um conceito de teatro de grupo que veio depois na cena teatral. Nós ouvimos falar de teatro colaborativo, da possibilidade de viver de teatro desde que você tivesse um repertório, e que você pudesse vender esses espetáculos. Não apenas fazer algo pontualmente. Isso nos deu a consciência de que teatro pode durar muitos anos, e você pode viajar para muitos lugares com ele. Tudo aquilo que não aprendi sobre produção na universidade, nós aprendemos com os bonequeiros.
O Grupo Sobrevento não nasceu como um coletivo voltado para o público infantil. Isso se consolidou mais tarde, correto? O que motivou esse recorte? Foi por necessidade de adaptação ao mercado?
Todos atrelavam o teatro de bonecos a crianças, mas nós começamos com um trabalho adulto. Nós sempre entendemos as crianças como seres humanos plenos desde o primeiro dia em que nascem, e sempre tivemos tanta vontade de trabalhar com adultos quanto com as crianças.
Por volta dos anos 1990, muitas vezes eu preferia ver peças infantis do que teatro adulto. Achava que eram menos convencionais, parecia que nas apresentações para crianças os atores se libertavam mais. Era mais poético também. Nós nunca fizemos teatro pensando no que daria certo. Acho que essa é também uma receita para um grupo durar. Sinto que quando algo faz muito sentido, você é capaz de defender aquilo muito bem e acaba convencendo os outros.
Dizemos que o teatro de objetos não fala dos grandes fatos históricos da humanidade, mas fala dos grandes fatos da cozinha lá de casa. Diz coisas do cotidiano que passam despercebidas, mas que também podem ser poéticas.
Recentemente vocês fizeram algo que parecia improvável, que é o teatro para bebês, com a peça “Meu Jardim”. Como surgiu essa ideia? E como se desenvolve um espetáculo para essa faixa etária?
Teve um momento que estávamos fazendo teatro infantil e começou a nos incomodar palavras que anteriormente nós utilizávamos com orgulho, como a palavra ‘ofício’. Em dado momento, passamos a achar que essa palavra demonstrava que as pessoas estavam entendendo o teatro de uma maneira utilitarista. E no teatro infantil, as pessoas começaram a se colocar muito a serviço de alguma coisa por um excesso de demanda de mercado. Se você tem uma série de espaços culturais que precisam cumprir uma agenda durante um ano, quantas coisas boas, de fato, teremos?
Certa vez, fomos ver uma peça, que ao fim entregavam um formulário perguntando o que os pais gostariam de ver no próximo espetáculo. Se formos colocar nesse lugar, acabou o artístico. Nesse momento, nós estávamos em turnê na Espanha e um grande programador tinha criado um festival de artes para crianças, e ele levava concertos do Naná Vasconcelos, do Hermeto Pascoal. Ele dizia: ‘Por que deve ser menos do que isso?’ E ele nos falou sobre o teatro para bebês. Naquele momento, tínhamos acabado de ter filhos gêmeos (hoje eles possuem 18 anos). Fomos ver um espetáculo numa creche e ficamos impressionados porque era um encontro muito potente, sem nenhuma nenhuma musiquinha, nem macacãozinho como figurino. Era verdadeiramente profundo.
Então pensamos que trazer aquela companhia seria um ponto de partida para começarmos a discutir o que estávamos fazendo de teatro para crianças. Tiramos coisas como a moral da história, ‘a peça fala de’, coisas que estavam restringindo o teatro. Quando trouxemos para o Brasil, no Sesc, houve uma procura enorme. E o Sesc teve uma atitude muito legal porque em determinado momento eles disseram que precisávamos parar para estudar o que era o teatro para primeira infância antes de abrir uma nova demanda, para que não ocorresse o que aconteceu com o teatro para crianças. Nós fizemos isso e até nos atrevemos a construir nosso primeiro espetáculo para bebês, quando nossos filhos já estavam grandes.
Vocês acompanharam muitas mudanças de governos e viram o país se transformar nessas décadas. Nesse percurso, qual foi o momento mais difícil para o grupo?
Diria que foi um pouco antes do governo Fernando Henrique Cardoso. Naquele momento não havia políticas culturais. Entendo os programas não como um apoio aos artistas, mas como difusão para fazer com que a cultura chegue em mais lugares. Naquela época, era só São Paulo e Rio de Janeiro. E no Rio ainda era muito difícil. Esse foi um momento que nós viajávamos muito para Europa. Deixávamos sempre uma mala pronta, fazíamos turnês, uma série de festivais, e passávamos o resto do ano no Brasil. No governo FHC, isso começou a mudar, com os programas de circulação, mas ainda muito tímidos. No governo do PT, vieram programas maiores, como a Caixa Cultural, Petrobras, Eletrobras, todas estatais muito conectadas via Lei Rouanet. Eram políticas claras. Até aquele momento, nós tínhamos circulado mais pela Europa do que pelo Brasil. Nesse governo, nós começamos a circular mais pelo país e vimos outros grupos se fortalecerem.
Quais são os desafios próprios desse tipo de linguagem do teatro de animação?
Aqui, as pessoas entendiam o teatro de objetos como marionetes. Pegar um grampeador e fazer disso um jacaré. E nós tivemos a sorte de logo, no início da nossa carreira, fazermos um curso com o Philippe Genty, um grande marionetista francês que tinha na sua companhia artistas precursores do teatro de objetos, no sentido de não ‘marionetizar’. A força não está no manuseio, mas naquilo que o sentido evoca política e simbolicamente para o público. Um trem evoca uma partida, mas que partida é essa?
No espetáculo Terra eu desenterro coisas pequenas da minha avó como um prato quebrado, um pano, um perfume. Outro dia, uma menina me abordou e disse que chorou muito nesse espetáculo porque ela guardava uma colher da avó. Os objetos disparam coisas no público, uma memória pessoal. E aí que o teatro de objetos nos leva a dizer coisas que não diríamos de outra maneira.
Neste ano vocês estrearam Cadê o Sobrevento?: Vinte Anos depois e nesse processo contaram com a metodologia do mestre de fantoches, o chinês Yeung Fai. No que consiste essa técnica?
Fizemos há 20 anos um espetáculo chamado Cadê o meu herói?, onde trouxemos o irmão desse mestre que veio agora, chamado Yang Feng. Ele era da quinta geração de marionetistas que trabalhavam com essa técnica conhecida por aqui como Lua Chinesa. Eles chamam de ‘Boneco de Saco’ porque a mão fica completamente solta dentro da luva do boneco. Você pode girar a mão dentro e isso permite que o movimento se torne ultrarrealista, diferente da luva ocidental, que tem uma movimentação estilizada.
Ele passou um mês conosco, trabalhando 8 horas por dia. Nós organizamos uma turnê muito bacana para ele com a condição de que acompanharíamos ele para tudo que era lado e ele nos prepararia. Ele coreografou as três cenas mais importantes, de luta, e ficou muito nosso amigo, mas acabou falecendo. Nós não teríamos chegado no nível de confecção dos bonecos se não fosse por ele.
Assim como um indivíduo, um coletivo também é capaz de mudar sua identidade com o passar do tempo. O quanto vocês se transformaram nesse tempo, seja em estética, discurso ou interesses?
Nós vamos nos transformando com tudo. O país mudou, a cidade mudou. A nossa sede mudou, o programa de Fomento ao Teatro nos mudou muito porque ele nos permitiu que fizéssemos diversas pesquisas, e não mais pensássemos só no resultado logo de cara. Passamos a fazer um teatro mais autoral. Já alteramos alguns diálogos de espetáculos antigos por entender que haviam cenas preconceituosas e cortamos cenas que não procediam mais. Hoje existem pautas que temos de dizer não.
Mas mudamos principalmente com o Fomento, que nos fez ir para Zona Leste. Fizemos projetos na periferia e para a periferia. Nós fizemos um projeto de formação de marioneteiros e algumas pessoas que fizeram essa oficina continuam no Sobrevento.
Quantos integrantes fazem parte do grupo?
Fixos, são cinco pessoas. Mas temos outros atores convidados, que chega a 12 pessoas. Nós fundamos em quatro pessoas. Sempre tivemos medo do grupo se fechar. Então eram quatro pessoas tocando o cotidiano, mas duas ou três que vinham para os espetáculos; atores convidados. Não há nenhuma peça em que somos só eu e o Luiz André juntos. Nós dizíamos ‘vamos abrir para não morrer’.
Você acredita que o teatro infantojuvenil tenha crescido nos últimos anos?
Atualmente, têm muitas pessoas sérias estão fazendo teatro para a infância. Isso se deu, logicamente, pelos apoios. Naquilo que você tem apoio, você tem a oportunidade de fazer uma produção melhor. Há grandes pensadores e dramaturgos preocupados com esse tipo de teatro de grandes reflexões que entendem a criança não como um vir a ser, mas como ela é neste momento. O público de hoje passou a entender o tipo de vida que nós queremos apontar, qual ponto de vista temos da vida; que é o do compartilhar.
Outro ponto importante é a Lei do Fomento, que foi revolucionária. O panorama teatral de São Paulo é riquíssimo, e é descentralizado, graças ao programa de Fomento. Ele pensa na ideia do teatro coletivo, que possui um projeto de pesquisa, o que não significa necessariamente que uma peça vai ser realizada após cinco meses de pesquisa. Não é isso. Nossos projetos, por exemplo, às vezes, envolvem a vinda de três artistas internacionais que vão fazer uma residência, vão apresentar uma ideia, uma técnica, que pode originar um museu, por exemplo, como o que fizemos. Em qual outro projeto poderíamos justificar esse tipo de pesquisa?
Por que escolheram retomar a peça Cadê o Sobrevento?
É um pouco para nos perguntarmos o que aconteceu conosco nesses 20 anos. Será que nós nos apoiamos ainda nas mesmas verdades? Foi também uma maneira de fazer disso uma celebração, de nos divertirmos. Foi uma provocação, ao mesmo tempo, do que teriam se tornado aqueles personagens 20 anos depois. O que aconteceu com esses bonequeiros?
O que vocês estão planejando para o futuro do grupo?
Nós acabamos de estrear o Cadê Sobrevento? e queremos fazer um espetáculo adulto que fala sobre os medos ligados à vizinhança. A nossa vizinhança, por exemplo, é muito misturada. São angolanos, bolivianos, brasileiros e ninguém se fala. Nenhum se fala por total desconhecimento. No entanto, quando nós vamos às escolas e vemos as crianças juntas, há muito entrosamento e cumplicidade. Esses muros existem em nós e precisamos aprender com essa falta de temor das crianças. Vemos que algumas pessoas na comunidade são muito medrosas, pois lembram de histórias de seus países.
Vocês estão prestes a completar 40 anos de Grupo. Olhando em retrospecto, o que fizeram de certo para manter viva essa parceria?
Acho que foi não trabalhar a figura individual de nós. Hoje, com todas as redes sociais, é cada vez mais tentador buscar o líder ou cultuar o indivíduo. Sempre tentamos não trabalhar as nossas figuras, mas sim destacar o grupo. Nossos processos de criação são sempre muito colaborativos. E esse espírito é o que tem feito com que o grupo dure até agora.
Sesc Belenzinho – Rua Padre Adelino, 1000 – Belenzinho, São Paulo/SP
De 12 a 15/10 e de 21 a 29/10, às 17h
Ingressos: grátis (para crianças de até 12 anos), R$ 8 (credencial plena), R$ 12,50 (meia-entrada), R$25 (inteira)