A dama das certezas provisórias
A diretora Ione Medeiros, de um dos grupos mais longevos do país, o Oficcina Multimédia, faz seu primeiro giro pelo país com uma versão de "Vestido de Noiva"
Uma vida dedicada ao teatro. Uma vida inspirada pelo teatro. Ione de Medeiros, 81 anos, está há 40 anos à frente do Oficcina Multimédia, grupo de Minas Gerais que pensa a arte como espaço de pesquisa e encontro entre diversas vertentes artísticas, ampliando os limites da abstração no teatro. A diretora faz do palco uma casa de sonhos; de sua arte, certezas provisórias. É um espaço de utopia apto a abrigar qualquer mundo, sobretudo os desconhecidos: “A arte é a área do não saber. Não é confortável, mas é o que me move”, diz ela em conversa com a Bravo!.
Sua casa dos sonhos é também espaço de mobilidade. Nela, como na montagem do clássico A Casa de Bernarda Alba, de García Lorca – a primeira incursão do coletivo numa dramaturgia convencional, em 2001 -, janelas e portas andam pelo espaço, abrindo-se para diferentes perspectivas a cada parada. “Não faço nada porque deu certo. Não repito fórmulas. Não quero me condenar a fazer coisas que já fiz”, afirma ela, dona de uma curiosidade insaciável, que pensa seu ofício como privilégio e empenha-se em extrair dele o sumo da vida.
A vista da janela da casa de Ione atualmente dá para Nelson Rodrigues. Sua montagem de Vestido de Noiva está em cartaz na unidade paulistana do Centro Cultural Banco do Brasil até setembro, indo então para o Rio de Janeiro em outubro, e então encerrando o ano no CCBB-Brasília entre novembro e dezembro. É a primeira vez que seu grupo, um dos mais longevos do Brasil, circula pelo país.
Pianista de formação, a diretora trabalha o texto musicalmente. Duplica a protagonista Alaíde e triplica os demais personagens criando uma polifonia de vozes que acompanha a velocidade e o embaralhamento do pensamento inconsciente. Juntamente com um trabalho cenográfico de movimentação constante, e com o apoio do vídeo, cria uma atmosfera de flutuação que dá ao marco zero do teatro moderno brasileiro um frescor raro de se ver ao longo dos 80 anos de remontagens deste texto de 1943. A diretora inova também ao sugerir que Alaíde e sua irmã Lúcia são a mesma pessoa em tempos distintos. Uma prestes a se casar, ainda iludida sobre seu futuro, e outra já consciente das adversidades do casamento.
“Não faço nada porque deu certo. Não repito fórmulas. Não quero me condenar a fazer coisas que já fiz”
Ione de Medeiros
Engana-se quem pensa que a viagem de Ione e de suas certezas provisórias até aqui foi fácil. Além das angústias próprias de um tipo de criação que sempre parte do zero, sua arte não foi auto-sustentável. Para atuar como uma diretora de teatro inteiramente livre das leis do mercado, ela teve que trabalhar também como professora de música. “Viabilize-se, faça trabalhos paralelos, tenha outras profissões. Não dá pra ficar esperando cair do céu”, ensina.
A soma de seu amor pela arte, a disciplina dos tempos de pianista e a obstinação pela experimentação contínua transformaram as dificuldades encontradas na estrada em oportunidades. Se as condições naturais não a permitiram formar um grupo fixo, por exemplo, optou por um móvel aproveitando o trânsito de seus integrantes. “Tem muita gente de teatro de grupo fixo que insiste que só entra se trabalhar por não sei quantos anos. Eu abri mão disso. O ator ficou 1 ano? Ficou 3 meses? Contribuiu. Essa possibilidade de mudança pode não ser a melhor dentro de uma perspectiva, mas pode ser muito boa para outra”.
A busca por liberdade faz com que Ione não persiga o sucesso, pelo contrário. Ela faz o possível para passar longe dele. Se um espetáculo é bem acolhido pelo público, faz questão de não repetir a fórmula no próximo trabalho. Conhecer a inquietude teatral de Ione é uma oportunidade. Assim como é uma oportunidade conhecer a inquietude de sua alma. Confira a entrevista na íntegra:
É impressionante como você trata Vestido de Noiva. Ao duplicar ou triplicar personagens e fazer os atores se revezarem entre eles, dá frescor, ritmo, intensidade e dinamismo à obra, além de uma sensação de que a discussão é social. Você concorda?
A duplicação dos personagens dá a possibilidade de acelerar o pensamento, de ter quase uma fala em cima da outra. Eu quis estar mais próxima da velocidade do inconsciente. O inconsciente é muito veloz. Nesta peça, fiz uma associação com os sonhos. Ao mesmo tempo que o sonho parece real, ele não tem a definição da realidade. Esse universo do inconsciente, onde a definição não é clara te permite fazer essas duplicações.
Ao colocar uma das atrizes que fazem Alaíde para fazer também o papel da irmã dela, Lúcia, você também abre a possibilidade das duas serem a mesma pessoa. Isso faz sentido pra você?
Sim. São muitas Alaídes. Na inconsciência dela, ela tem muitas facetas. E a Lúcia é uma vertente de Alaíde. Elas são irmãs, elas querem a mesma coisa. Estão disputando um homem, uma abertura, uma liberdade, que podem vir através de um casamento ou da Madame Clessy, prostituta que teve opção de fazer escolhas. Alaíde e Lúcia têm muito em comum, inclusive a educação de uma época marcada pela importância da mulher se definir por um casamento, pela necessidade dela se legitimar através da presença de um homem, mesmo que ele seja infame, mesmo que ele seja um canalha – e não sei se já desapareceu totalmente essa legitimação social da mulher através do casamento.
A união de duas pessoas é uma idealização. Não é porque houve casamento que o amor vai durar a vida inteira. A realidade é que a relação entre pessoas é uma coisa muito difícil. Então, na peça, os personagens proliferam coisas que perduram até hoje: a vontade de ser livre, os desejos, a competição, por isso também a ideia dos duplos e trios.
Mas porque a escolha de Lúcia e Alaíde serem interpretadas pelas mesmas atrizes? Elas são a mesma pessoa, ou podem ser?
Um pouco elas são a mesma pessoa, em tempos distintos. Uma está num estágio de pré-casamento e a outra já está casada, entendendo que marido é aquele, o que não deu certo. Se elas não são a mesma pessoa, o futuro delas, muito previsível dentro daquela geração, é o mesmo.
O que você aprendeu com Nelson Rodrigues? O que ele trouxe a você?
Um dia pediram pra Nelson Rodrigues indicar uma leitura. Ele respondeu Dostoiévski. Um escritor? Dostoiévski. Outro escritor? Dostoiévski. Ouvi todos seus audiobooks. Dostoiévski fala sobre a fragilidade humana, diz que nós não somos seres ideais, somos seres em construção. Ele cria seres humanos falhos.
O ser humano cria um ideal utópico de si mesmo, de sua sociedade muito justa e equilibrada, mas tem muitos defeitos, muitos desejos e competições que não deveria ter. Dostoiévski me fez ficar mais tolerante. A gente erra mesmo. A gente é um ser imperfeito. É importante cultivar essa sondagem do inconsciente para ter consciência do que se tem de melhor e de pior. Dostoiévski e Nelson Rodrigues abrem nossa consciência para nos questionarmos sobre quem somos nós. Para mim foi um dado muito importante.
Dos 46 anos de carreira dedicados ao teatro de pesquisa, entendendo esta arte como um espaço de encontro entre música, dança, artes visuais, cinema e teatro, 35 anos deles foram voltados para uma dramaturgia mais abstrata, sem a preocupação de contar uma história, de situá-la ou de definir personagens. Até que veio García Lorca e Nelson Rodrigues, Boca de Ouro em 2018 e agora Vestido de Noiva, a 24ª montagem do grupo. Gostaria de entender esta mudança. A intenção foi seguir a investigação dessa abstração que é a marca do Oficcina Multimédia, mas agora com o desafio da concretude de textos, é isso?
É muito curioso, chamo isso de processo de amadurecimento. O início estava muito ligado à abstração. Menos definição, menos personagem, menos história, menos roteiro. Sou formada em música, mas sou apaixonada por literatura. Eu amo texto. Quando as pessoas me perguntavam porque eu não usava texto eu dizia: “Talvez seja por respeito”. O texto é uma linguagem tão potente, eu achava que não seria capaz de transmitir tudo aquilo que está dentro de uma dramaturgia em cena. Usava esses elementos que me eram mais familiares, o som, a dança, a imagem, o objeto. E quando encontrei García Lorca, pensei: “A dramaturgia dele é perfeita. Pra que eu vou inventar?” Construí uma atmosfera de sonho, como fiz em Vestido de Noiva. Era uma casa barroca, em que janelas, portas, tudo se movia.
“Um dia pediram pra Nelson Rodrigues indicar uma leitura. Ele respondeu Dostoiévski. Um escritor? Dostoiévski. Outro escritor? Dostoiévski. Ouvi todos seus audiobooks. Dostoiévski fala sobre a fragilidade humana, diz que nós não somos seres ideais, somos seres em construção. Ele cria seres humanos falhos”
Ione de Medeiros
E porque Nelson Rodrigues?
Me perguntavam se eu não ia fazer Nelson Rodrigues. Eu pensava: “Eu mineira, e ele tão carioca, será que vou saber chegar nessa potência que é sua maneira de se expressar?”. Fiz e me apaixonei. Entendi que a identidade brasileira chega com a experiência, com o amadurecimento. A maneira de pensar do brasileiro, o emocional, os excessos, tudo isso leva um tempo pra entender. Hoje me vejo muito identificada com Nelson Rodrigues. Ele é um grande dramaturgo, um grande contribuidor para a arte brasileira. O texto de Nelson Rodrigues é coloquial, não tem rebuscamento na aparência, mas dá pistas do que vai acontecer desde o começo. É sutil, como se fosse uma conversinha, é preciso ler várias vezes para entender. Até hoje descubro falas que anunciam coisas.
Em que sentindo?
No sentido da linguagem. García Lorca é muito mais próximo de mim, de Minas Gerais, nos aspectos da religiosidade, da repressão, da família, do casamento, de uma formação mais europeia. Para mim foi muito mais fácil, tão diferente da liberdade de Nelson Rodrigues. Eu achava que não seria capaz de fazer Boca de Ouro, que se passa na periferia do Rio de Janeiro. Fui pra lá fazer pesquisa e tive a ideia de fazer do Boca de Ouro um gângster que poderia estar em qualquer lugar do mundo. Já Vestido de Noiva é atemporal, não é localizado em lugar nenhum, fala do interior, do inconsciente do ser humano. Me identifiquei com mais facilidade.
O que em Vestido de Noiva você acha importante discutir hoje?
Quis falar sobre a importância da investigação da mente humana e discutir esse universo dos desejos inconscientes. Quem somos nós? Temos uma realidade aparente, decorrência de valores, de educação, de repressões. A gente não se conhece, e se surpreende. Estou com 81 anos e ainda me desconheço em muitas coisas. Já fiz análise, tive tempo de me conhecer e ainda me pergunto: “Quem é essa pessoa?”.
Vestido de Noiva revela atitudes e desejos que são censurados. Alaíde confessa que matou o marido, Lúcia que roubou o namorado da irmã. A gente é esse ser dual que oscila entre bem e o mal. E Nelson não censura. Faz tudo vir à tona, é o perfil de Nelson Rodrigues revelar este mundo submerso que vai além das aparências. Ele nos mostra que a realidade da gente é habitada por fantasmas.
A montagem de Vestido de Noiva foi interrompida pela covid. A experiencia pandêmica alterou algo em seu olhar sobre a obra?
Tínhamos ensaiado durante um ano. A pandemia começou em março e iríamos estrear em maio, então já tínhamos uma montagem quase finalizada, já havíamos chegado a este lugar frio que é meio hospital, meio açougue, meio laboratório. E quando veio a pandemia, perdemos espaço, o elenco mudou. Mas não quis abandonar a criação. A gente começou a se encontrar pela internet para fazer trabalho de mesa. A pandemia nos obrigou a ter este foco. Muita gente parou na pandemia. Foi necessário uma mudança de atitude. Mas é importante ter flexibilidade, não podíamos jogar fora o que estávamos fazendo, só mudamos o foco de observação. Não se para um trabalho. Acho que nossa história de estar sempre aberto às experiencias ajudou.
40 anos dedicados a investigar novas possibilidades teatrais. O que move você a fazer teatro e seguir experimentando, pessoalmente e profissionalmente?
Fui formada em música, minha mãe era pianista, e eu estudei piano sem parar dos 6 aos 23 anos. Era para eu seguir carreira de pianista, mas achei solitário. O teatro é a arte da presença. Me emociona sempre ver uma plateia ali sentada disposta a escutar. Acho muito bonito. Isso tem em outras áreas, mas essa relação pessoal entre artistas e entre artista e público no teatro eu acho maravilhoso. Não me arrependo nem um pouco da minha mudança. Também sempre fui muito ligada ao cinema, à dança, às artes visuais, e encontrei na geração dos anos 1970 a possibilidade de experimentar. Era uma época em que o processo era mais valorizado do que o resultado. Eu trouxe esse espírito pro meu teatro. O que mais me move é o experimento, essa possibilidade de mudança, de aprimoramento do teatro.
“Vestido de Noiva revela atitudes e desejos que são censurados. Alaíde confessa que matou o marido, Lúcia que roubou o namorado da irmã. A gente é esse ser dual que oscila entre bem e o mal. E Nelson não censura. Faz tudo vir à tona, é o perfil de Nelson Rodrigues revelar este mundo submerso que vai além das aparências. Ele nos mostra que a realidade da gente é habitada por fantasmas”
Ione de Medeiros
De que forma sua formação musical contribui para o teatro que você faz hoje?
Música é a base de tudo o que faço. Considero-a a base de todas as artes por sua relação de tempo, de timbre, de emoção. A música tem um caráter de abstração que me interessa muito, e nosso teatro sempre foi abstrato, uma mistura de elementos entre dança, teatro, música, imagens e objetos. O texto passa o tema, e a gente trabalha-o musicalmente pensando como se dá melhor cada trecho, suas pausas, seus destaques. Sempre me ative mais ao texto do que aos personagens. O conhecimento musical me ajuda para tudo.
Qual a definição de um trabalho de risco, na sua opinião? E como é possível manter essa inquietação que recusa a fixação?
Sempre começo um trabalho do zero. É claro que a maturidade de uma experiência continuada durante 40 anos vai me dar uma percepção mais amadurecida, mas nunca resolvida. Eu gosto deste estado do não saber do artista. A vitalidade e o crescimento surgem quando você não tem as respostas, quando não está tudo resolvido. Você cresce quando em vez de se apoiar naquilo que sabe, você abre um novo caminho. Para trabalhar com o conhecido, melhor fazer outra coisa. A arte é a área do desconhecido, do não saber. Não é confortável. Às vezes eu fico angustiada, mas é o que me move. Uma expressão que que eu desenvolvi e acho muito boa: certezas provisórias. Quando você termina uma obra você tem que acreditar que é aquilo, mas ao mesmo tempo é um paradoxo, porque depois vai mudar. É uma certeza provisória. Num processo de arte é preciso paciência. É impossível ver tudo de uma vez, a não ser quem tenha uma receita que deu certo e quer repeti-la, o que não é meu caso. O processo de criação leva tempo.
Como começou essa mistura de linguagens artísticas?
Quando o grupo foi criado, em 1977, há 46 anos, já nasceu com a ideia de criar uma arte total, misturando várias manifestações de linguagem. Achei a proposta de integração das artes muito boa, ela acompanhou toda a minha trajetória.
Você destaca a importância da investigação teatral como fundamental para a criação artística. Mas vivemos tempos de crise. Como lidar com isso num país como o Brasil onde a arte é mais vulnerável, afetando as prefrências do público?
É difícil a sobrevivência artística quando se está cercado de muitas modas, banalizações, respostas prontas, avaliações e resultados imediatos. A gente vive uma época muito hedonista. As pessoas querem resultados práticos e imediatos. Televisão é isso, as séries são isso: o que você quer é o que eu te dou. O conforto do prazer realmente limita a curiosidade do ser humano. Mas eu sempre acredito que tem um lugar de inquietação dentro das pessoas que, quando encontrado, ressoa. Todo mundo está sempre procurando alguma coisa, mesmo os acostumados com a banalização da arte. Podem procurar através da comida, das viagens, dos passeios, mas as pessoas são inquietas. Se a gente localizar essa inquietação na arte, a gente pode preencher um espaço e dar uma contribuição na abertura da emoção, da sensibilidade, do conhecimento e até na evolução do ser humano.
Nunca tive preocupação com o grande público, acredito nas minorias. O dadaísmo, por exemplo, foi um movimento na Europa envolvendo pouquíssimas pessoas, responsável por uma revolução nas artes visuais. Na minha opinião, a evolução do ser humano não se dá por quantidade, mas por época.
Quando eu era mais jovem, aconselhava as pessoas que queriam fazer arte a terem cuidado, dizia que era difícil não ter garantias. Hoje digo: “Se quer fazer, faça”. A melhor coisa que existe é envelhecer fazendo arte. Mas, viabilize-se, faça trabalhos paralelos, tenha outras profissões. Não dá pra ficar esperando cair do céu, ganhar editais, ou despertar interesse das instituições. Por exemplo, agora, estamos fazendo um giro depois de 40 anos. Vamos viajar por todos os CCBBs. Quem quer esperar 40 anos pra fazer isso?
Como o grupo sobreviveu 46 anos à margem do sucesso?
Henrique Torres Mourão [ator, videomaker, co-produtor] e Jonnatha Horta Fortes [ator, assistente de direção, co-produtor, preparador corporal e co-figurinista] estão há 20 anos no grupo, mas têm vidas paralelas para poderem estar presentes. E o Oficcina Multimédia é móvel. Muitos jovens que ainda estão na universidade e querem fazer pesquisa entram e depois seguem outros caminhos. O ideal é ter um grupo fixo, mas a possibilidade de mobilidade permitiu a continuidade. Eu também tive uma vertente como professora de música para poder manter uma coerência no meu trabalho, para não depender de uma arte que tivesse que estar sujeita ao mercado. Se você quer fazer uma arte livre, tem que se viabilizar. Não dá pra esperar que todo mundo acredite naquilo que você faz, isso não vai acontecer. Quando você tem muita clareza do quer, o universo conspira. Na arte, você faz, e aí as coisas conspiram. Os qüiproquós surgem pra ensinar as pessoas a mudarem.
Tem muita gente de teatro de grupo fixo que insiste que só entra se trabalhar por não sei quantos anos. Eu abri mão disso. O ator ficou 1 ano? 3 meses? Contribuiu. Às vezes um ator novo entra e dá uma ideia maravilhosa. Cada pessoa contribui com algo, sempre. Essa possibilidade de mudança pode não ser o melhor dentro de uma perspectiva, mas pode ser muito boa para outra.
“É difícil a sobrevivência artística quando se está cercado de muitas modas, banalizações, respostas prontas, avaliações e resultados imediatos. A gente vive uma época muito hedonista. As pessoas querem resultados práticos e imediatos. Televisão é isso, as séries são isso: o que você quer é o que eu te dou. O conforto do prazer realmente limita a curiosidade do ser humano”
Ione de Medeiros
Você sempre foi tão positiva assim? Ou a maturidade te ensinou esse olhar?
Se você tem talento pra alguma coisa, tem que prestar contas. Aprendi isso na minha infância, com meus pais, que eram muito rigorosos. Minha mãe era muito brava, eu era pequena e tive estresse de tanto que estudava. Essa disciplina ficou introjetada em mim. Fui ser diretora, não porque eu quis, mas porque caiu em mim esta função. Eram quatro mulheres e eu dava as melhores ideias, sob a perspectiva de todos. No final, elas falaram para eu assinar a direção. Já que tive essa capacidade, fiz dela minha contribuição. Eu vim aqui pra fazer isso. Nasci numa família que me permitiu o cultivo das artes, tive condições de aprender, e se tenho essa vocação, vou segui-la. É um retorno social. A arte é um retorno social. É minha pertencença nesse mundo, minha pequena parcela. Dá muito sentido pra minha vida. Já pensei em parar, mas sempre tive sinais de que era para continuar. Você acredita?
Acredito. Conta um?
Uma vez fui à 8ª Bienal de Música Contemporânea do Rio de Janeiro com um espetáculo, Navio-noiva e Gaivotas, de 1989, a partir de James Joyce. Tinha música em cena, então fomos chamados para integrar o evento. O cenário não chegava. Faltavam 7 horas pro espetáculo começar, tudo pronto, e nada – naquele tempo não tinha celular. Subi pra cabine de luz e fiz o seguinte enunciado: “Se não for pra continuar a fazer teatro, esse cenário não vai chegar”. Quando o cenário chegou, tive uma crise de choro.
Outra vez, fomos apresentar outro Joyce num teatro enorme em BH. Não foi quase ninguém, tinha umas cinco pessoas na plateia. Saí de lá com um menino da cena, fomos num bar ruim, comi uma coxinha ruim, tomei um refrigerante ruim. “Gente do céu”, pensei. “Pra que fazer arte, sem dinheiro, sem público?”. Cheguei em casa. Nunca vejo Fantástico, pois não é que neste dia aparece a Fernanda Montenegro no programa falando: “Eu não me preocupo com teatro vazio. O palco é sagrado. Arte é a coisa mais importante, e eu sou fiel à ela”. Eu pensei: “ Ela está falando isso pra mim. Puxa, obrigada.” Agradeci à Fernanda. Eu acolho sinais. Tem uma conspiração sei lá de onde para nos ajudar a seguir nosso caminho.
Seu compromisso com a pesquisa e a investigação é total. Em contrapartida, o compromisso com o sucesso é nulo. O sucesso é incompatível com a arte? Em que medida ele atrapalha a criação artística?
Estaria mentindo se dissesse que não gosto do retorno do público, mas o sucesso é incompatível com a arte, a arte precisa de liberdade. O sucesso pode contaminar a liberdade de criar. A gente teve uma repercussão muito boa uma vez, com o espetáculo BaBACHdalghara (1995), um documentário/show com jovens atores e dança, que ficou muito comunicativo. Depois dele, voltei pros porões com Zaac e Zenoel, em 1998. Fiz algo totalmente diferente. As pessoas abominavam esse espetáculo, diziam que não era teatro. Curiosamente, o único prêmio que eu recebi na minha carreira foi por esta obra [Prêmio Bonsucesso, organizado pelo sindicato de Produtores de BH Sinparc].
Não quero me condenar a fazer coisas que já fiz. Não quero fazer nada porque deu certo. Não é isso que me move. Você não pode repetir fórmulas. A gente nunca teve repertório. O espetáculo é o que a gente está fazendo agora. O que passou, passou. Estou com 81 anos. Eu já conquistei uma liberdade, imagino que o sucesso agora não vai me pressionar tanto. Mas não sei o que o sucesso significaria pra mim aos 40, 50 anos. A fama é perigosa. É muito sofrimento para um artista com muito sucesso lidar com a continuidade de sua obra e a perspectiva de resultado. Já o reconhecimento é importante, e isso a gente tem tido. Nossos espetáculos podem ter mais retorno de público ou menos, mas todo mundo reconhece nossa pesquisa, o experimento. Esse respeito por um trabalho que não faz concessão, isso eu acho bom.
Peter Brook falava que o teatro o ajudava a entender a vida. O que o teatro trouxe para sua vida?
Acho um privilégio fazer arte e poder ver nossa realidade de maneira transformada, com uma dimensão existencial, de sentido, de desejo. É sair do lugar comum. É uma riqueza sempre renovada, porque, se você tem essa percepção, está sempre em movimento interior. É um estado de viver.
A arte que tem menos chance de morrer é o teatro, por conta deste encontro sensorial que ele proporciona. Ele dá uma vivência que recarrega. Para mim isso é muito significativo. Me sinto feliz em poder fazer arte e teatro, e espero continuar. Já falei que se puder escolher, quero morrer no palco. Não sei se vai cair um refletor na minha cabeça, ou se vou ter alguma coisa de repente. Uma hora a gente vai, mas que seja lá, em ação, nesse lugar privilegiado que é o palco.
Centro Cultural Banco do Brasil São Paulo – Rua Álvares Penteado, 112.
Quintas e sextas às 19 horas. Sábado e domingo às 17h.
Até 24/09. R$30
Classificação: 14 anos