A vingança invertida da mulher gorila
Sucesso no Instagram com sua palhaça Fran, Rafaela Azevedo revela seus planos de dominatrix contra o machismo no mundo do circo
Quem segue a Fran no Instagram, personagem criada pela atriz carioca Rafaela Azevedo, provavelmente não imagina que ela pegou a “direção contrária” para alavancar sua carreira na palhaçaria. Uma história nada engraçada contada com exclusividade à Bravo!.
Depois do barulho causado em junho no Circos, maior festival de arte circense do Brasil, revela que a mulher gorila está com mais sede de vingança ainda. E não é qualquer vingança. É uma vingança invertida. E feminista, que clama por equidade e pelo fim da violência de gênero.
Onde estão as palhaças?
Estão em todos os lugares. Mesmo a palhaçaria sendo uma arte ancestral, o primeiro grupo de mulheres palhaças surgiu no Brasil na década de 1990. Sempre tem muito preconceito. Uma vez ouvi de um grande mestre que para ser palhaço precisa de um paletó e de um chapéu. Isso é uma construção social de gênero masculino. Quero criar um festival chamado Misto, só vai ter mulher e um homem. E vou dar entrevistas dizendo que não encontrei mais palhaços. [risos]
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Rafaela se refere ironicamente ao fato de boa parte dos festivais de circo serem dirigidos por homens que costumam alegar, quando questionados sobre a ausência feminina na programação, que não encontraram palhaças. Ela sai em defesa e informa que em sua própria equipe há mulheres palhaças.
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Então, Fran é uma palhaça.
Sim. Cheguei no circo e não achei engraçado. Achei violento e misógino. Só quando eu fiz oficina com a Karla Conká, do grupo As Marias da Graça, meu mundo se abriu. Percebi com ela um recorte de gênero. A palhaçaria é uma linguagem que trabalha com a vulnerabilidade e inadequação. Minha palhaça precisava refletir minha vulnerabilidade.
Cadê o nariz vermelho?
Quando fui para o Instagram, entendi que a forma está ultrapassada. O que foi feito com palhaços como Patati Patatá e Ronald McDonald não tem nada a ver com a palhaçaria em si. Decidi que ficaria com a lógica da personagem, mas não ficaria com a forma. Tirei o nariz vermelho porque assim a Fran se aproxima das pessoas. A questão maior está dentro da cabeça. Não no formato.
Você criou o perfil no Instagram por ser a amiga engraçada que sempre recebe incentivos para publicar conteúdo nas redes sociais?
Não. Criei o Instagram para divulgar o meu primeiro solo. Fui entendendo que era um ótimo lugar e que precisava de uma palhaça. E, brincando com as fragilidades, como a objetificação feminina, fui revertendo o jogo. Durante a pandemia, eu pude criar uma relação mais sólida com a comunidade, até começar a viralizar em 2021.
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A palhaça Fran, por assim dizer, “nasceu” em 2013. Mas, foi em 2017 que ganhou um perfil no Instagram, atualmente com 170 mil seguidores. O financiamento coletivo do solo Fran World Tour arrecadou R$ 8.670 em 2018. É daí a origem do @fran.wt, no qual “wt” é uma abreviação para world tour.
A criação da peça King Kong Fran foi iniciada antes da pandemia. Rafaela assina a direção e a dramaturgia com Pedro Brício, na montagem que tem a direção musical de Letrux. Em uma mistura de show de variedades com stand up, Fran satiriza números circenses, expondo as violências de gênero que estruturam as atrações, dentre elas A Mulher Gorila, que reproduz a história real da mexicana Júlia Pastrana (1834-1860), que foi vendida por sua mãe a um homem que apresentava shows com aberrações até despertar a atenção de outro empresário do ramo, Theodore Lent, responsável pela fama da mulher gorila.
Outra referência importante é o filme King Kong (1933), dirigido por Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack. Em tudo, Fran desvela as crueldades praticadas pelo patriarcado. Como uma dominatrix, faz o público rir, durante as suas inversões. E também constrói com abundância momentos para reflexão e conscientização. Na interação, Fran se mistura à plateia e termina por capturar um “macho hétero” e, no palco, cometer inúmeros absurdos com ele.
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King Kong Fran é misandria ou o cerco está fechado para os homens hetero?
A minha vulnerabilidade como mulher é a opressão de gênero que eu sofro. E essa opressão vem de um lugar de poder extremamente humano, que já está enraizado, naturalizado e defendido até por mulheres que ainda não estão conectadas ao ambiente manipulatório que estão desde crianças. Eu sei oprimir. Eu sei fazer um jogo manipulatório. Só que eu sofro isso na sociedade. O que eu faço é inverter. Fica absurdo e humilhante. E isso é absurdo e humilhante para a mulher desde que nasceu.
A jaula surge como um símbolo forte. O que é a jaula para você?
No circo, nosso espaço ou era da perfeição, como a bailarina que caminha por um fio ou a mulher linda que acompanha o atirador de facas, ou da aberração, como a mulher barbada ou a mulher gorila. Quis juntar a palhaça que é a humanização total e a mulher gorila que é a aberração e fazer a minha versão. Qual seria o terror atual? Aterrorizar o patriarcado! A jaula é uma referência ao número original que o público sai correndo. Mas no meu o público fica. A única coisa que eu faço é inversão. Se alguém achar que é humilhação, só digo que eu passo por isso diariamente.
Como você vê o machismo introjetado em algumas mulheres?
Vejo com muita empatia e paciência. E trabalho com muito amor para que estas mulheres venham para o “lado de cá”. Eu compreendo a geração da minha mãe, que já faleceu. Para muitas destas mulheres, com sessenta ou setenta anos, o máximo de poder que elas poderiam ter era se casar com um homem bem sucedido. Há pouquíssimo tempo foi liberado para a gente poder ligar nossas trompas sem nenhum homem autorizar. Foi anteontem. A gente poder votar foi antes de anteontem. É muito recente. O patriarcado é muito bem estruturado. Essas mulheres morrem de medo de se deparar com a realidade. Como na brincadeira da peça que diz “você é uma pessoa mesmo?”. A mulher é desumanizada. Tenho um desejo muito grande que essas mulheres tenham novas referências. Assim como eu precisei ter como referências As Marias da Graça, Tatá Werneck e Dani Calabresa para fazer humor.
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Sem patrocínio, Rafaela recorreu novamente ao financiamento coletivo para a estreia de King Kong Fran no ano passado e arrecadou R$ 32.120. O sucesso no Rio rendeu outras temporadas concorridíssimas em 2023. As sessões em Belo Horizonte no final de julho, também já estão esgotadas. E quase não há ingressos para as datas de outubro no Teatro Riachuelo Rio. Em São Paulo, os organizadores do Circos – Festival Internacional Sesc de Circo abriram uma sessão extra como tentativa de aplacar a alta demanda. Realizado desde 2013, sua sétima edição colocou em cartaz no mês de junho 21 espetáculos em 13 unidades do Sesc SP, com a participação de mais de 200 artistas, em 10 dias, com um público de mais de 26 mil pessoas.
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Como foi para você o Circos?
Amei o festival. Tem uma estrutura muito boa. No Instagram, tenho mais seguidores de São Paulo do que do Rio. Já queria ter ido há muito tempo. Achei que seria pouco um teatro de 300 lugares, mas falei “vambora!”. Os ingressos esgotaram em três minutos. Perguntaram sobre a lista de convidados e respondi que são os meus benfeitores que ajudaram no financiamento coletivo. E sempre será o público. Se estou onde estou hoje é por causa do meu público. Não por causa de programadores e curadores que nunca apareceram antes. Eles que paguem ingresso com o dinheiro deles. [risos] A gente vai voltar no segundo semestre para São Paulo e ficar mais tempo para poder comportar o público que quer assistir. Até porque ainda não recebi nenhuma crítica. A não ser de homem hétero. Mas isso a gente nem leva em conta porque eles não entendem nada. [risos]
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Rafaela prova e comprova que a inversão tem gerado um efeito reverso em algumas lógicas. Se antes corriam da mulher gorila, agora as pessoas correm para conseguir estar perto dela.