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Marco Nanini atualiza niilismo na peça “Traidor”, de Gerald Thomas

Tragicomédia revive parceria de duas décadas do ator com o dramaturgo para encenar a loucura da vida à deriva do homem contemporâneo

Por Gabriela Mellão
Atualizado em 7 dez 2023, 15h01 - Publicado em 7 dez 2023, 11h13
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Marco Nanini caracterizado para a peça "Traidor", em cartaz no Sesc Vila Mariana (Carlos Cabera/divulgação)
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Ele é um Traidor. É personagem-título do mais recente espetáculo escrito e dirigido por Gerald Thomas, em cartaz até meados de dezembro no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. É alter-ego inexato de Thomas sem deixar de ser também invenção de Marco Nanini, ator que inspirou o texto dramatúrgico e o interpreta, inaugurando a segunda parceria entre os dois (a primeira foi Um Circo de Rins e Fígados, há 18 anos).

O alter-ego fajuto de Thomas e Nanini é também a imagem de uma espécie cujas falhas e ruínas transforma em risos que explodem no ar espalhando um perfume amargo no espaço. Representa o ser humano com suas defesas, muros, artifícios e falsidades. Ele se expõe incansavelmente em cena, em busca de algo que não alcança. Não pode haver maior conhecedor de si mesmo e, no entanto, ele não se entende, não se conhece, não se acessa – a não ser pelo feed do Instagram.

Há dois Naninis no palco. O ator e sua representação, um boneco gigante que remete às esculturas hiper-realistas do artista plástico australiano Ron Muek, em que se vê uma realidade ampliada, quase mais verdadeira do que a própria realidade. Lembra também Winnie, de Dias Felizes, do dramaturgo e diretor irlandês Samuel Beckett que é fonte inesgotável na carreira de Thomas: em Nova Iorque ele estreou ou adaptou alguns dos trabalhos em teatro e prosa deste que é considerado um dos escritores mais influentes do século passado; no Brasil realizou diversas montagens inspiradas na sua obra, peças como Quatro Vezes Beckett (1985) – sucesso no país que chegou a ser apresentada na Bienal de Veneza.

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A representação de Nanini é um peso inanimado atravessado sobre a cena, deitado, amarrado. Uma imagem jogada, quase esquecida durante todo o espetáculo, cuja maior utilidade parece ser a capacidade de preencher o espaço vazio. A única interação entre Nanini e seu duplo eu é a recusa do ator em confrontá-lo. “Não consigo (olhar). É muito fake”, diz. Se o personagem desconhece sua essência, pelo menos ainda tem sentimentos. Ele se emociona e pede lágrimas falsas para chorar.

Winnie vive a imobilidade da cintura para baixo no primeiro ato de Dias Felizes e do pescoço para baixo no segundo. Afundada em uma montanha, engolida e oprimida pela terra e pelo que o homem fez da natureza e de si, ela é a representação da aberração de um processo civilizatório. Vive a crueldade de seu destino agarrada às palavras. Ainda lhe resta a linguagem. A representação de Nanini não restou qualquer resquício de humanidade. Como explicar o fenômeno humano da coisificação?

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A terra engoliu parte de Winnie, o homem é testemunha da tragédia. O corpo sobrevive, encoberto pela lama ou amarrado, mas e a alma: o que se passa com a alma humana? Onde está a verdade da vida hoje, na representação? E como é possível que a ficção se torne mais real do que a própria realidade? Essas são algumas das questões que o traidor de Thomas e Nanini faz o espectador remexer no fundo de seu poço, entre vazios, uma pedra e outra e a completa ausência de água.

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O homem é responsável por sua aridez e a humanidade enfrenta a maior seca da história. E daí? Embora não falte ao protagonista consciência da tragédia, ele segue empenhado em trair a si mesmo, seus criadores e todos os outros que toparem seu caminho. Não é sustentável? Ele não está preocupado. Não se leva a sério, e leva ainda menos a sério a imensidão do todo que o envolve. Debocha das guerras e das revoluções, dos vírus e da pandemia, da sociedade do consumo e do cansaço, da revolução digital e da inteligência artificial, da crise da democracia, da indústria do entretenimento, do solapamento do mundo real causado pelo virtual, e, claro, de si mesmo. Ele até sofre, até a próxima cena. A vida tem a relevância do instante que acabou de passar. Ou da gargalhada que a piada tem o poder de despertar.

Uma sucessão de quadros estilhaçados é apresentada no palco, sinalizando a fragmentação interior do personagem e a falta de lógica da contemporaneidade. As cenas não se propõem a contar uma história, mas acabam compondo um retrato da vida à deriva do homem através do fluxo de consciência por vezes ilustrado por cenas interpretadas por um coro de atores que materializam seu pensamento. O traidor reflete sobre seu tempo isolado numa ilha. Ou seria um picadeiro, conforme sugere a borda vermelha da boca de cena? A vida, ou ainda, a vida no Brasil pode ser um circo, desde que seja um circo espetacular.

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Teatro, artes visuais, iluminação, música e dança se harmonizam ao seguirem suas batutas –  não por acaso sua companhia durante anos era chamada Ópera Seca –, numa fina sintonia para a criação do belo. 

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(Fotografia: Roberto Setton/divulgação)

Auto-referência e metalinguagem

O reencontro entre Thomas e Nanini dá continuidade ao trabalho criado em 2005. O protagonista de Um Circo de Rins e Fígados está de volta como o niilista de sempre, mistura debochada de seu autor e intérprete que descortina sem drama, hipocrisia ou filtro a loucura da vida hoje. Em vez de ser presenteado com destroços humanos – rim, fígado entre outros pedaços de corpo -, desta vez o protagonista se depara com a própria imagem. 

Além de revisitar temas, o autor e diretor retoma trechos do espetáculo de 2005 e de outros, como G.A.L.A, monólogo de Thomas escrito para a atriz Fabiana Gugli, apresentado virtualmente na pandemia e de modo presencial setembro passado, em São Paulo.

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A verdade, se é que ainda se pode acreditar em algo no teatro de Thomas e no teatro da vida, é que em sua arte o diretor é personagem de si mesmo. Ele se revisita continuamente, expondo contrasensos, contradições, idiossincrasias, afetos e desafetos, embora não se fixe a uma identidade, e misture tudo isso com boas doses de fantasia. 

Pode estar sozinho numa ilha (G.A.L.A., 2003), dependurado (F.E.T.O., 2022) ou amarrado (Traidor). Pode se referir a seus inspiradores Marcel Duchamp, Samuel Beckett, ou mesmo Kafka e Shakespeare, ele é sempre o mesmo, embora seja invariavelmente outro. “Roubei de Shakespeare. Sim, do Próspero de ‘A Tempestade’. Mas essa voz é minha. Até certo ponto, claro. Somos quem somos, até certo ponto. Isso também não é meu. É… de Kafka. Como veem, nada em nós é totalmente original. Mas nada é inteiramente falso também. Estamos no meio. Do que? É assim! O Século 21. Bem-vindos a essa zona!”, diz Nanini em cena, numa interpretação que quebra a quarta parede constantemente, no vai e vem constante proposto pelo encenador entre ficção e realidade, verdade e representação, cujo trânsito permite ao público sair da história algumas vezes para se deparar com o mesmo pensamento: o de estar diante de um dos maiores atores do país. História? Mas que história? “Nada nessa história faz sentido. Nada. O corpo da minha mãe não foi jogado ao mar. (…) Não havia barco onde morávamos. Não morávamos no litoral. Não tinha praia”, confessa em cena. 

Num segundo olhar, esse traidor soa bastante sincero. Talvez seja tão inocente quanto algoz. Ingênuo, hipocondríaco, medroso, peça das engrenagens de seu tempo, vítima de escolhas absurdas, manipulado pelo poder, pela mídia, pela indústria do entretenimento – como no quadro hilário em que recebe peruca, avental e uma linguiça para cantar um jingle num comercial de televisão. 

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Ele sofre de traumas e tem delírios com tubarões: “Aqueles tubarões…. arrancaram tudo de mim. São de minha criação… eu os criei… eram meus filhos. Me traíram, me morderam, me foderam, me morderam, fugiram, correram e agora? E agora eu? Eu?” O traidor traído não entende e não sabe o que fazer. Está exausto de tanto consultar a internet em busca de respostas – não consegue mais fritar um único ovo sem abrir um tutorial do Youtube de culinária – mas quando realmente precisar, sabe que poderá contar com o Google ou a Alexa. A boa notícia é que ainda há tempo. Por enquanto ele não tem com o que se preocupar. Segundo suas contas, o homem ainda está no “terceiro segundo da primeira etapa do quinto episódio do século vinte um”.

Traidor

Onde: Sesc Vila Mariana (Rua Pelotas, 141).
Quando: De quinta a sábado, às 21h. Domingos, às 18h; até 17/12.
Quanto: De R$ 15 a R$ 60.
Classificação: 16 anos.

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