O encanto de Miriam Mehler
Atriz da peça ‘A Herança’ completa 70 anos de carreira e recorda de histórias no Teatro Brasileiro de Comédia, Teatro de Arena e Oficina
20 minutos. Esse é o tempo que a atriz Miriam Mehler permanece em cena na peça A Herança, do dramaturgo Matthew Lopez. A obra, traduzida e montada pelo diretor Zé Henrique de Paula, estreou no início do ano em São Paulo. Diante do sucesso, sua temporada foi estendida, situação cada vez mais rara nos teatros brasileiros. Uma das peculiaridades do espetáculo é que ele tem duração de 6 horas, divididas em duas apresentações. Uma grande demanda para o público, que parece estar disposto a cumpri-la de bom grado. Pode-se dizer que Miriam, a única atriz feminina e a mais velha do elenco, faz uma curta e especial participação. Uma, no entanto, que não passa despercebida pelo público. Longe disso.
Na produção, ela interpreta Margaret, uma senhora que perdeu o filho, Michael, para Aids em meados da década de 1990. Por anos, ela ajudou Walter, um homem caridoso e gay, que durante a epidemia de HIV resolveu acolher e cuidar de homens, também homossexuais, doentes em seus últimos dias. Walter e Michael eram grandes amigos. Michael também foi paciente de Walter. Margaret, que há muitos anos não vê o filho, fica sabendo de sua condição e chega a tempo de fazer uma última visita. Seu remorso era tanto que ela decide ficar e ajudar Walter a cuidar de outros rapazes, algo que ela não pôde fazer pelo próprio filho.
Miriam tem pouco mais de 1,50m, mas quando entra em cena é inevitável tirar os olhos dela. Há doçura, carisma e uma gigante presença. A parte que cabe a ela é um grande monólogo em que fala sobre a relação com o filho, o momento em que descobre que ele era gay até o relato de seu último encontro. Um discurso que se traduz numa crescente de emoções, que demanda destreza, equilíbrio e experiência de uma intérprete, coisas que Miriam Mehler tem de sobra. No dia do ensaio geral, na segunda parte do espetáculo, o elenco está no palco, nas laterais próximas à coxia. Em cena estão apenas três personagens: Eric Glass (Bruno Fagundes), Leo (André Torquato) e Margaret (Miriam). No decorrer de sua fala, todos os atores se debulham em lágrimas, mesmo aqueles que estão fora da cena. Essa situação se repete em outros dias de apresentação.
“Você pode imaginar como uma atriz era vista naquela época. Mas eu trabalhei em vários lugares e ganhei um dinheirinho”
Miriam Mehler
Quando termina e está prestes a ir embora, o público, em deleite, não resiste e aplaude a atriz. A peça, contudo, ainda não acabou. Mas o quê na atuação de Miriam Mehler provoca esse magnetismo?
Tive a chance de perguntar pessoalmente a ela, certo dia, antes da peça. Ela achou graça, sorriu e disse: “Aplaudiram também o Marco Antônio Pâmio na estreia”.
Uma vida nos palcos
Filha de um austríaco e uma alemã, ambos judeus, Miriam nasceu em Barcelona pouco antes de estourar a 2ª Guerra Mundial. “Quando Hitler publicou o livro Mein Kampf, meu pai logo percebeu o que estava para acontecer e se mudou com a minha mãe e minha irmã mais velha, Ruth, para Espanha. Eu nasci em 1935.”
No novo país de residência, as coisas também não estavam fáceis. No ano seguinte ocorreu a Guerra Civil, durante a II República Espanhola, que durou até 1939. Em meio à barbárie, seu pai, Karl, soube que era hora de mudar novamente. Dessa vez cruzaram o Atlântico em direção ao Brasil. Pousaram em São Paulo e desfizeram as malas numa pensão na Rua Atlântica. Com uma visão à frente de seu tempo, achou que a capital paulista trazia mais oportunidades. No entanto, o diploma em direito do pai, aqui, não tinha muita valia. Recomeçou a carreira como corretor de imóveis até conseguir fazer dinheiro e abrir o próprio negócio.
Aos quatro anos, Miriam já exibia um potencial para interpretação. Com uma excelente memória, ela substituía as outras crianças que não decoravam seus textos nas peças de fim de ano. Um pouco mais velha, na adolescência, as filhas não tinham outras recordações de uma vida fora do Brasil. Miriam estudou no Mackenzie, um colégio católico. Ela se lembra de um acampamento escolar, onde haveria a montagem de um espetáculo teatral, e do qual ansiava participar. A professora, no entanto, deixou Miriam de fora. O fato de ser judia, talvez, tenha sido um fator, ela acredita.
Com um pensamento incomum para a época, o pai das duas jovens acreditava que elas deveriam estudar e alcançar uma profissão antes de cogitarem se casar. Sonhava que a caçula seria advogada, mas naquela altura, a adolescente já estava completamente inclinada para as artes cênicas. Soube de uma escola que havia acabado de ser fundada por Alfredo Mesquita, a Escola de Arte Dramática da USP. Fez um acordo com o pai: se ela fosse aprovada em Direito, poderia cursar Artes Cênicas também.
Durante um ano, dividiu os dias estudando Direito pela manhã e Teatro à noite. Mas não deu muito certo, reprovou em diferentes disciplinas de Direito por faltas. Quando estava para iniciar o terceiro semestre, não teve mais jeito, disse ao pai que não queria saber da área jurídica. Desgostoso, o pai aceitou, com uma nova condição, ela teria que trabalhar. “Não quero saber de filha vagabunda”, disse a Miriam. “Você pode imaginar como uma atriz era vista naquela época. Mas eu trabalhei em vários lugares e ganhei um dinheirinho”, ela conta. A fase em que estudou na EAD foi bastante dura para a jovem. Durante todo aquele período, seu pai ficou sem falar com ela. Aquela era uma nova visão de Karl, que costumava ser tão afetuoso em casa.
Do outro lado do muro da escola, entretanto, tudo corria muito bem. Miriam se envolvia em diversas montagens teatrais e já recebia convites para estrelar peças profissionais. Um deles veio de Zé Renato, do Teatro de Arena. Um de seus professores era o cenógrafo Gianni Ratto. Miriam comentou com ele que estava convencida a trabalhar com o Arena. “Ele me disse: ‘Não faça isso’.” Sugeriu que a atriz concluísse os estudos antes, pois não havia a hipótese de trancar o curso durante a temporada, ela teria que abandonar a EAD e a peça poderia não ir tão bem quanto ela imaginava. Escutou o mestre e continuou a escola. “Foi o melhor conselho.” Anos mais tarde, Miriam voltaria a trabalhar com Gianni profissionalmente.
No último ano, em seus exames finais, Miriam fez um monólogo e foi super aplaudida em cena. Ligeiro, Alfredo Mesquita disse a ela para não se envaidecer, “que foi um acaso”. “No momento de dar o parecer final, ele inventou uma nota chamada ‘cooperação’ e em frente a toda turma disse: ‘Para Miriam, zero’. Eu caí na gargalhada e toda a turma também. Acho que é porque eu não bajulava ele, nunca fui de bajular ninguém.”
Logo que saiu da EAD, vieram dois convites importantes. Um deles era para substituir uma atriz, num papel pequeno, junto ao TBC (Teatro Brasileiro de Comédia). Uma experiência curta que Miriam não considera sendo sua primeira prática profissional. E outro, um papel mais robusto, numa montagem que era uma aposta do Teatro de Arena e que poderia determinar o futuro do grupo, que enfrentava uma crise financeira. Novamente, o convite veio de Zé Renato, a peça era Eles não usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, um autor da casa ainda desconhecido pelo público na época. O texto retratava o drama da classe operária, moradora de uma favela no Rio de Janeiro. A montagem salvou o Arena. Foi um sucesso logo de cara, e o grupo permaneceu em cartaz por 10 meses.
“Era uma peça que era completamente diferente do padrão atual, inclusive para o Teatro de Arena. Eu ralei para burro para fazer essa peça. Era absolutamente naturalista, aquilo foi muito difícil para mim, mas o Guarnieri e o Zé Renato, todos os atores do Arena foram formidáveis comigo. Foi um sucesso inesperado”, ela conta.
“Eu trabalhava que nem uma louca. Era jovem, tudo podia. Fiquei nessa rotina durante um ano. Mas foi uma escola maravilhosa”
Miriam Mehler
Sua família continuava contrariada com sua escolha. “Um tio foi ver o espetáculo e, ao fim, ele me disse: ‘Foram sete beijos na peça’.” Ele havia contado o número de beijos, que na realidade não passavam de selinhos. No fim da temporada, veio uma nova chamada para integrar o elenco do TBC, para fazer Um Panorama Visto da Ponte, de Arthur Miller, onde seria dirigida por um de seus professores da EAD, Alberto D’Aversa. E terminou sendo contratada para ser fixa do elenco. Diante da nova oportunidade, os pais ficaram mais satisfeitos. Afinal, o TBC, que tinha um estilo mais tradicional, agradava o público conservador.
Com o TBC, foi para o Rio de Janeiro. “Teatro nunca pagou bem, mesmo quando era contratada. Sugeri para o Egídio Eccio, um ator do elenco, que era também meu namorado, fazermos um teste para a TV Continental, que estava começando um teatro televisionado.” O plano deu certo. Começava sua incursão na televisão. “Eu trabalhava que nem uma louca. Era jovem, tudo podia. Fiquei nessa rotina durante um ano. Mas foi uma escola maravilhosa.”
Grandes padroeiros dos palcos nas décadas de 1960 e 1970 eram novatos. Surgiu uma nova oportunidade para voltar para São Paulo. Do outro lado do telefone estava o diretor Antunes Filho. Queria estrear As Feiticeiras de Salém, de Arthur Miller. Miriam aceitou. “Eu estava louca para voltar para São Paulo. Estava passando muito aperto no Rio.” Dentre suas colegas de cena estavam Glória Menezes e Etty Fraser. O retorno à capital paulista encerrou definitivamente seu ciclo no TBC. No início da década de 1960, ela emendou alguns trabalhos com Antunes, até ser chamada para o Teatro Oficina. Uma entrada um pouco esquisita, ela recorda. O grupo estava ensaiando Quatro num Quarto, com direção de Maurice Vaneau, que, inclusive, dificultou sua experiência. “Logo que cheguei, eles me mandaram para uma saleta no fundo, e o Vaneau, muito antipático, disse ‘Leia, menina’. No fim da leitura, ele me disse ‘Você é muito ruim’. Quando você é uma atriz que está começando, esse tipo de comentário te atinge de forma muito dura. Voltei para minha casa pensando em desistir da profissão.”
Miriam passou um mês encerrada em casa, sem falar com ninguém. Sua mãe tentou animá-la, mas sem sucesso. Até que um ator da companhia ligou para ela dizendo que uma das atrizes, Célia Helena, estava prestes a sair do grupo. Havia, portanto, uma vaga. “Era Renato Borghi. Ele me pediu desculpas e disse que o Vaneau já não estava mais no Oficina.”
Foi convencida por Renato. Logo que entrou, viraram grandes amigos, amizade que dura até hoje. Ninguém apostava muito na peça que estava para estrear, mas Miriam e Renato fizeram longas caminhadas distribuindo filipetas e, por sorte, o teatro lotou. Zé Celso, impressionado, achou que Miriam era pé quente e a convidou para ficar no Oficina. Com isso, ela fechava a tríade teatral, tendo participado dos três grupos mais importantes do teatro brasileiro até então: Teatro de Arena, TBC e Oficina. No Oficina, acompanhou alguns dos momentos mais transformadores para o grupo, como o golpe militar e a montagem da peça Os pequenos burgueses, de Máximo Gorki.
A próxima montagem, Andorra, se tornou um episódio traumático para a atriz. Havia uma cena em que sua personagem, Bablin, enlouquecia. Zé Celso sugeriu que fizessem um laboratório. Segundo Miriam, dois figurantes sem experiência foram convidados e, no experimento, atacaram Miriam. “Eles queriam me estuprar de verdade. Me seguraram, me bateram, rasgaram toda minha roupa. Até que a Célia Helena, que era minha amiga, pegou um guarda-chuva e bateu tanto neles e me livrou daquilo.” Em seguida, Zé Celso pediu que dessem sequência à cena de Miriam, seguindo à risca o texto.
“Tudo o que eu falo tem que ser vivido. Eu preciso visualizar aquilo que estou falando. E isso deixa [a encenação] mais lenta”
Miriam Mehler
“Fiquei três dias de cama, toda escoriada. Menti para os meus pais, disse que eu tinha caído da escada. E essa cena acabou ficando daquele jeito, com o ódio que eu sentia e tudo. Era uma cena muito forte.”
A temporada no Oficina durou mais um tempo. Foram para o Rio de Janeiro, remontaram Os pequenos burgueses, um espetáculo que ficou guardado em sua memória. Uma de suas lembranças era a atuação de Raul Cortez. “Nunca ninguém fez tão bem essa peça quanto o Raul, nem mesmo o Fauzi Arap.”
A magia criada pela atriz
No dia em que conversamos (Miriam e eu), Renato foi assistir à amiga em A Herança. Por coincidência, sentou ao meu lado. Foi possível escutá-lo elogiando Miriam após seu monólogo. Foi uma longa volta até Miriam retornar ao teatro, aos 87 anos, com a peça A Herança. Não que ela tenha parado, isso nunca. Persistiu com solidez no teatro, na televisão e no cinema até hoje. Em A Herança, ela viu no texto uma chance do teatro acertar na maneira como retrata homens gays, algo que, em sua opinião, já foi muito mal posto nos palcos.
Mas, afinal, o que tem de especial no seu modo de atuar? Pensativa, ela explica o que tenta fazer quando está em cena. “Tudo o que eu falo tem que ser vivido. Eu preciso visualizar aquilo que estou falando. E isso deixa [a encenação] mais lenta. Eu me emocionava quando ensaiava o texto e eu odiava isso. Dizia ‘Não quero me emocionar’.”
Miriam, assim como sua personagem, também perdeu um filho, Rodrigo, em um acidente de moto. “Eu pensei ‘Será que vou aguentar fazer essa personagem?’ Tudo isso se mistura e pensei que seria bom tentar e botar essas dores para fora. Se fosse recente, eu não daria conta.” Qualquer mãe que assiste à peça entende a dor dessa personagem, ela diz. “As poucas mães que veem a peça chegam até mim e me agradecem, mas é ao autor que devem agradecer. E dizem que coisas parecidas aconteceram com elas. Que elas rejeitaram ou perderam seus filhos.”
Seu colega de palco, André Torquato, resume a experiência de trabalhar com a atriz veterana como “arrebatadora”. “A Miriam é um pilar estrutural do teatro brasileiro. A primeira vez que o Zé (o diretor Zé Henrique de Paula) disse que ela faria parte da peça, a primeira leitura que ela fez com o elenco, nós brincamos que tinha um lixinho que estava transbordando de lenços de tanto chorarmos. Tivemos que dar uma secada nas emoções para continuarmos a peça. O que ela faz é brilhante.”
“Eu pensei ‘Será que vou aguentar fazer essa personagem?’ Tudo isso se mistura e pensei que seria bom tentar e botar essas dores para fora. Se fosse recente, eu não daria conta”
Miriam Mehler
Miriam teve a oportunidade de conhecer os pais de André após uma das apresentações. Um encontro que lhe marcou por um motivo especial. “Eles apoiam muito o André, são amigos dele.” Uma característica que destoa da personagem Margaret.
Sobre sua companheira de cena, André continua: “Outra coisa que me impressionou, enquanto ator, é a capacidade dela de criar realidades. A potência que ela tem de acreditar naquilo que está sendo dito. Ver o olho dela brilhando, como ela é afetada pelo texto, é muito emocionante.”