“Nebulosa de Baco” evidencia dura realidade de uma verdade
Peça da cia. Stavis-Damaceno usa metalinguagem para expor a performance das aparências e os desvios da memória que compõem a faceta ficcional da existência

Não se pode confiar em uma lágrima. Ainda que esta comprove concretude ao escorrer dos olhos e molhar a pele de quem chora com forma, cor e sabor próprios, sua natureza é duvidosa. A dura realidade de uma lágrima é que ela tanto pode ser expressão de um sentimento genuíno quanto de um fingimento. É a partir da apresentação desta simples ambiguidade que a atriz Rosana Stavis revela o caráter performático de tudo o que pode ser classificado como verdade na existência em “Nebulosa de Baco”, espetáculo escrito e dirigido por Marcos Damaceno, em cartaz no CCBB de São Paulo até início de junho.

A obra da cia. curitibana Stavis-Damaceno é metalinguística. Stavis, uma das grandes artistas de sua geração, vive sua própria realidade em cena: uma atriz talentosa. Ela está em sala de ensaio. Ajuda uma companheira menos experiente (Helena de Jorge Portela) na construção de um personagem que precisa e não consegue chorar. Impulsionada pelo caráter dúbio deste ato, sobretudo em território teatral, acaba por ultrapassar questões do campo artístico e alcançar a universalidade.
A partir do relativismo de um choro cênico, Damaceno se abre para o dilema insondável da existência com a indissociação entre ficção e realidade. O autor e diretor é inspirado pela obra do italiano Luigi Pirandello, ganhador do prêmio Nobel pela contribuição filosófica e a inovação de linguagem de romances como Um Nenhum Cem Mil (1926) e, entre outras peças que revolucionaram o teatro moderno, Assim é (se lhe parece) (1917), Seis Personagens em Busca de um Autor (1923) e Henry IV (1921).

Como encontrar a verdade se a vida é indissociável da ilusão? Como encontrar a verdade se ela se estabelece em algum lugar entre a projeção de um ideal e a própria realidade? Esta é a questão primordial destrinchada por Pirandello há cerca de um século, retomada por Damaceno depois de dois trabalhos influenciados pelo estilo do escritor austríaco Thomas Bernhard: Árvores Abatidas ou Para Luís Melo, em 2008 e A Aforista, eleito o melhor espetáculo de 2023 pelo Prêmio da APCA, destacado também pelo Shell, com 4 indicações, entre elas atriz (Stavis) e direção. Pirandello e Damaceno se abstêm da tentativa de conclusões ou afirmações e se concentram em intensificar a fluidez do trânsito entre verdade e ilusão no palco, espaço fantasioso por natureza.
Os autores destroem a ilusão da verdade e desvelam a tragicomédia de um mundo habitado por seres inventados com personagens que chegam a parecer mais reais do que seus intérpretes e não poderiam ser mais competentes em entender o terreno incerto em que pisam: “A vida é repleta de absurdos que não precisam aparecer plausíveis pois são reais”, diz o personagem Pai em “Seis Personagens..”. Stavis defende que “uma coisa é fingir que é de verdade, tornar mais verdadeiro do que a própria verdade, e outra coisa é ser de verdade”.

Ser, parecer e inventar
Pirandello cria figuras que se confundem com as máscaras concebidas por elas próprias por influência da manipulação de padrões sociais, em enredos que rompem a lógica mundana e antecipam o Teatro do Absurdo – movimento teatral que surgira apenas após a Segunda Guerra Mundial. Em Seis Personagens…, protagonistas de uma peça inacabada invadem um ensaio à procura de um autor para desenvolver seus papeis.
No romance Um Nenhum Cem Mil, uma crise de identidade se estabelece com o surgimento da nova perspectiva de um homem pelo seu nariz, apontado como torto pela mulher, característica nunca antes notada por ele.
Nebulosa de Baco parte de um dado real para duvidá-lo. Damaceno recebeu de uma atriz a encomenda de escrever uma auto-ficção. Pela incapacidade de tocar a verdade de uma narrativa influenciada por traumas e projeções mentais, faz da tentativa de uma artista contar sua história no palco a impossibilidade de um pessoa compreender seu passado.
O autor e diretor adiciona, portanto, os desvios da memória à pesquisa trilhada por Pirandello. Na convocação do poder difuso da lembrança para sobrepor ao enredo novas camadas de ilusão, o espectador perde as certezas construídas. Melhor dizendo, imaginadas, ou ainda inventadas, se é que existe uma definição exata para algo no palco ou na vida.

A discussão proposta e na peça se torna um jogo no qual, conforme avança, o espectador não se aproximada verdade, ao contrário, parece mais distante dela. Passa a questionar seu olhar sobre o espetáculo teatral e todos os outros espetáculos que vê desenrolar diante de si no cotidiano.
O único vencedor da partida é o poder de interpretação das atrizes, as quais, pelas próprias palavras de Damaceno, “nasceram para iluminar o mundo e a cada noite mostrá-ló sob outra luz, aos olhos da plateia”.
Na trama, a personagem de Portela revê um suposto abuso do padrasto no passado enquanto ensaia seu solo de auto-ficção, num diálogo com quem supõe ser seu violador. Quando empaca na cena do choro e pede à personagem que se confunde com Stavis para assumir as falas masculinas do texto, o enredo parece mudar. As frases se repetem mas a leitura humanizada imprimida na nova atuação abala a visão construída pelo público do protagonista masculino.

Se o texto não se altera, a mudança de perspectiva se dá pelo poder de atuação das atrizes, no trabalho vocal, através da descoberta de variações de tons e do ritmos das palavras para a criação de significados. É recorrente nas criações da dupla Stavis-Damaceno o entendimento da linguagem como instrumento. O texto é utilizado como uma espécie de partitura na qual frases são exploradas como notas musicais e cadências estabelecem a composição de estados emocionais. Também é comum à temática da metalinguagem em espetáculos que partem de uma discussão artística para questionar o lugar do homem contemporâneo, ironizando-o, numa crítica que não abre mão de profundidade ou de humor.
É absoluto o embaralhamento das cartas proposto em “Nebulosa…”. A indefinição surge como única verdade possível. Nada é o que se apresenta à primeira vista e até os fatos parecem ser relativos.
O espetáculo pode enganar também como forma. O cenário despretensioso reproduz uma sala de ensaio. A roupa casual de Stavis, a constante troca de figurinos de Portela aos olhos da plateia, a ausência de trilha e até a música cantada ao vivo por Stavis reconstroem a realidade cotidiana com uma aparente simplicidade. Mas a elaboração é complexa. Todos os elementos da obra são cuidadosamente escolhidos para por em cheque não apenas a confiabilidade da narradora mas também a capacidade de julgamento do espectador, abalada pela oscilação de seu ponto de vista ao longo da apresentação.

A dura realidade de uma lágrima (e de todas as verdades construídas) é que ela é inacessível, situa-se em algum lugar nebuloso entre as aparências exteriores e a realidade interior de cada um.
“Nebulosa de Baco” é uma afronta aos que querem o conforto das certezas e um deleite aos que buscam uma obra-de-arte tão desconcertante quanto estimulante. Destruídas as verdades de uma ordem de mundo que merece ser revista é preciso acabar ainda com os pilares inventados que sustentam apenas aparentemente esta estrutura.
Onde: Teatro CCBB SP (Rua Álvares Penteado, 112)
Quando: quinta e sexta, às 19h, sábado e domingo, às 17h; até 8/06
Quanto: R$ 30
Classificação indicativa: 18 anos