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“Nebulosa de Baco” evidencia dura realidade de uma verdade

Peça da cia. Stavis-Damaceno usa metalinguagem para expor a performance das aparências e os desvios da memória que compõem a faceta ficcional da existência

Por Gabriela Mellão
Atualizado em 28 Maio 2025, 12h15 - Publicado em 27 Maio 2025, 11h22
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 (Renato Mangolin/divulgação)
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Não se pode confiar em uma lágrima. Ainda que esta comprove concretude ao escorrer dos olhos e molhar a pele de quem chora com forma, cor e sabor próprios, sua natureza é duvidosa. A dura realidade de uma lágrima é que ela tanto pode ser expressão de um sentimento genuíno quanto de um fingimento. É a partir da apresentação desta simples ambiguidade que a atriz Rosana Stavis revela o caráter performático de tudo o que pode ser classificado como verdade na existência em “Nebulosa de Baco”, espetáculo escrito e dirigido por Marcos Damaceno, em cartaz no CCBB de São Paulo até início de junho.

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(Renato Mangolin/divulgação)

A obra da cia. curitibana Stavis-Damaceno é metalinguística. Stavis, uma das grandes artistas de sua geração, vive sua própria realidade em cena: uma atriz talentosa. Ela está em sala de ensaio. Ajuda uma companheira menos experiente (Helena de Jorge Portela) na construção de um personagem que precisa e não consegue chorar. Impulsionada pelo caráter dúbio deste ato, sobretudo em território teatral, acaba por ultrapassar questões do campo artístico e alcançar a universalidade.

A partir do relativismo de um choro cênico, Damaceno se abre para o dilema insondável da existência com a indissociação entre ficção e realidade. O autor e diretor é inspirado pela obra do italiano Luigi Pirandello, ganhador do prêmio Nobel pela contribuição filosófica e a inovação de linguagem de romances como Um Nenhum Cem Mil (1926) e, entre outras peças que revolucionaram o teatro moderno, Assim é (se lhe parece) (1917), Seis Personagens em Busca de um Autor (1923) e Henry IV (1921).

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(Renato Mangolin/divulgação)

Como encontrar a verdade se a vida é indissociável da ilusão? Como encontrar a verdade se ela se estabelece em algum lugar entre a projeção de um ideal e a própria realidade? Esta é a questão primordial destrinchada por Pirandello há cerca de um século, retomada por Damaceno depois de dois trabalhos influenciados pelo estilo do escritor austríaco Thomas Bernhard: Árvores Abatidas ou Para Luís Melo, em 2008 e A Aforista, eleito o melhor espetáculo de 2023 pelo Prêmio da APCA, destacado também pelo Shell, com 4 indicações, entre elas atriz (Stavis) e direção. Pirandello e Damaceno se abstêm da tentativa de conclusões ou afirmações e se concentram em intensificar a fluidez do trânsito entre verdade e ilusão no palco, espaço fantasioso por natureza.

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Os autores destroem a ilusão da verdade e desvelam a tragicomédia de um mundo habitado por seres inventados com personagens que chegam a parecer mais reais do que seus intérpretes e não poderiam ser mais competentes em entender o terreno incerto em que pisam: A vida é repleta de absurdos que não precisam aparecer plausíveis pois são reais”, diz o personagem Pai em “Seis Personagens..”. Stavis defende que “uma coisa é fingir que é de verdade, tornar mais verdadeiro do que a própria verdade, e outra coisa é ser de verdade.

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(James Click Fotos/divulgação)

Ser, parecer e inventar

Pirandello cria figuras que se confundem com as máscaras concebidas por elas próprias por influência da manipulação de padrões sociais, em enredos que rompem a lógica mundana e antecipam o Teatro do Absurdo – movimento teatral que surgira apenas após a Segunda Guerra Mundial. Em Seis Personagens…, protagonistas de uma peça inacabada invadem um ensaio à procura de um autor para desenvolver seus papeis.

No romance Um Nenhum Cem Mil, uma crise de identidade se estabelece com o surgimento da nova perspectiva de um homem pelo seu nariz, apontado como torto pela mulher, característica nunca antes notada por ele.

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Nebulosa de Baco parte de um dado real para duvidá-lo. Damaceno recebeu de uma atriz a encomenda de escrever uma auto-ficção. Pela incapacidade de tocar a verdade de uma narrativa influenciada por traumas e projeções mentais, faz da tentativa de uma artista contar sua história no palco a impossibilidade de um pessoa compreender seu passado.

O autor e diretor adiciona, portanto, os desvios da memória à pesquisa trilhada por Pirandello. Na convocação do poder difuso da lembrança para sobrepor ao enredo novas camadas de ilusão, o espectador perde as certezas construídas. Melhor dizendo, imaginadas, ou ainda inventadas, se é que existe uma definição exata para algo no palco ou na vida.

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(Renato Mangolin/divulgação)

A discussão proposta e na peça se torna um jogo no qual, conforme avança, o espectador não se aproximada verdade, ao contrário, parece mais distante dela. Passa a questionar seu olhar sobre o espetáculo teatral e todos os outros espetáculos que desenrolar diante de si no cotidiano.

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O único vencedor da partida é o poder de interpretação das atrizes, as quais, pelas próprias palavras de Damaceno, nasceram para iluminar o mundo e a cada noite mostrá-ló sob outra luz, aos olhos da plateia.

Na trama, a personagem de Portela revê um suposto abuso do padrasto no passado enquanto ensaia seu solo de auto-ficção, num diálogo com quem supõe ser seu violador. Quando empaca na cena do choro e pede à personagem que se confunde com Stavis para assumir as falas masculinas do texto, o enredo parece mudar. As frases se repetem mas a leitura humanizada imprimida na nova atuação abala a visão construída pelo público do protagonista masculino.

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(Renato Mangolin/divulgação)

Se o texto não se altera, a mudança de perspectiva se dá pelo poder de atuação das atrizes, no trabalho vocal, através da descoberta de variações de tons e do ritmos das palavras para a criação de significados. É recorrente nas criações da dupla Stavis-Damaceno o entendimento da linguagem como instrumento. O texto é utilizado como uma espécie de partitura na qual frases são exploradas como notas musicais e cadências estabelecem a composição de estados emocionais. Também é comum à temática da metalinguagem em espetáculos que partem de uma discussão artística para questionar o lugar do homem contemporâneo, ironizando-o, numa crítica que não abre mão de profundidade ou de humor.

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É absoluto o embaralhamento das cartas proposto em “Nebulosa…”. A indefinição surge como única verdade possível. Nada é o que se apresenta à primeira vista e até os fatos parecem ser relativos.

O espetáculo pode enganar também como forma. O cenário despretensioso reproduz uma sala de ensaio. A roupa casual de Stavis, a constante troca de figurinos de Portela aos olhos da plateia, a ausência de trilha e até a música cantada ao vivo por Stavis reconstroem a realidade cotidiana com uma aparente simplicidade. Mas a elaboração é complexa. Todos os elementos da obra são cuidadosamente escolhidos para por em cheque não apenas a confiabilidade da narradora mas também a capacidade de julgamento do espectador, abalada pela oscilação de seu ponto de vista ao longo da apresentação.

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(Renato Mangolin/divulgação)

A dura realidade de uma lágrima (e de todas as verdades construídas) é que ela é inacessível, situa-se em algum lugar nebuloso entre as aparências exteriores e a realidade interior de cada um.

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“Nebulosa de Baco” é uma afronta aos que querem o conforto das certezas e um deleite aos que buscam uma obra-de-arte tão desconcertante quanto estimulante. Destruídas as verdades de uma ordem de mundo que merece ser revista é preciso acabar ainda com os pilares inventados que sustentam apenas aparentemente esta estrutura.


Nebulosa de Baco

Onde: Teatro CCBB SP (Rua Álvares Penteado, 112)
Quando: quinta e sexta, às 19h, sábado e domingo, às 17h; até 8/06
Quanto: R$ 30
Classificação indicativa: 18 anos

 

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