Nova versão de “As Três Irmãs” traz elenco negro em adaptação de Tchékhov
O espetáculo dirigido por Renato Carrera está em cartaz na Arena do Sesc Copacabana até 20 de julho

Alguns clássicos da dramaturgia parecem intocáveis, a ponto de gerarem uma certa resistência ao diálogo com novas perspectivas, correndo o risco de se tornarem esquecidos com o tempo. Isso acontece não apenas pela falta de atualização dos textos, mas também pela permanência de personagens fixos em representações restritas — e para os atores, uma questão essencial: quem pode interpretar esses personagens?

No Brasil, porém, temos acompanhado uma importante onda de ressignificações de obras clássicas, com drag queens encenando Shakespeare e tragédias gregas ambientadas em favelas cariocas. Mais recentemente, “As Três Irmãs”, peça consagrada de Anton Tchékhov, escrita na Rússia czarista no fim do século XIX, também ganhou um novo olhar. Tradicionalmente encenada por elencos totalmente brancos, a peça agora se reinventa.
A montagem “Irmãs”, dirigida por Renato Carrera, reúne três atrizes negras — Dani Ornellas, Isabél Zuaa e Jamile Cazumbá — e uma atriz branca, a francesa Alli Willow. Se antes o texto explorava temas como frustração, conflitos familiares, decadência social e solidão, agora a peça se amplia para dialogar com questões contemporâneas e brasileiras, como colorismo, feminismo, regionalismos e desejos não sucumbidos.

O espetáculo, em cartaz na Arena do Sesc Copacabana, no Rio de Janeiro, mistura o texto original com vivências pessoais, políticas e culturais das atrizes, trazendo uma nova perspectiva que aborda ancestralidade, resistência e os desafios enfrentados pelas mulheres negras hoje. A dramaturgia é assinada por Renato Carrera e Dani Ornellas, enquanto a trilha sonora é composta pelo músico de jazz Jonathan Ferr.
A Bravo! conversou com Renato Carrera sobre como, em “Irmãs”, ele buscou expandir os limites do teatro clássico, desconstruir estereótipos e provocar reflexões profundas sobre identidade, sororidade e as diversas temporalidades das mulheres em transformação. A temporada seguirá até a semana do Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha.
Como surgiu a ideia de revisitar “As Três Irmãs”, de Tchékhov, a partir das vivências de mulheres negras contemporâneas? O que motivou a escolha dessa obra para esse tipo de ressignificação?
A ideia, na verdade, surgiu a partir de um acontecimento e de uma visão. Lembro que, certa vez, li que Pina Bausch teve a inspiração para o espetáculo “Cravos” depois de ver um cachorro latindo. Aquela imagem foi o ponto de partida para a criação dela. E, de certa forma, algo semelhante aconteceu comigo em relação a Irmãs.
Foi no dia do primeiro turno da última eleição presidencial. Eu tinha ido votar e, na minha seção, encontrei a Dani Ornellas — minha amiga, com quem já havia trabalhado antes. Ela estava toda vestida de vermelho, e eu, de vermelho e branco. Conversando, ela me perguntou onde eu assistiria à apuração dos votos. Respondi que iria ver sozinho, em casa. Então, ela me convidou para ir até a casa dela.
Depois de votar e de encontrar meu irmão, fui para lá, em Santa Teresa. Chegando, vi que havia um churrasco acontecendo no quintal, que é grande. Dani estava lá com mais três amigas — Isabél Zuaa, Jamile Cazumbá e Alli Willow —, que hoje são as atrizes do espetáculo. Quando desci as escadas e olhei para o quintal, vi as quatro, vestidas de vermelho, encostadas em uma parede. Elas estavam celebrando, mas também carregavam no rosto a tensão e a esperança que a gente sentia naquele momento, de mudar o estado em que o país e a classe artística se encontravam.
Foi nesse instante que a imagem me veio com força: As Três Irmãs, de Tchékhov. Falei na hora: “A gente precisa montar esse espetáculo. Estou vendo agora as três irmãs de Tchékhov.” Elas chegaram a tirar uma foto naquele momento — que, inclusive, usamos na divulgação da peça e também no próprio espetáculo. No terceiro ato da montagem, que é quando encenamos o quarto ato do texto original, as personagens estão novamente de vermelho, uma referência direta àquele dia. Essa imagem também inspirou o figurino.
A partir disso, começamos um processo intenso, uma espécie de escavação da imagem. Fomos atrás dos significados contidos naquele registro, tentando entender que relações existiam ali — com o autor, com as atrizes, comigo. E, assim, nasceu o espetáculo. Ele surgiu daquele instante.

A encenação mistura ficção e autobiografia. Como foi o processo de construção dramatúrgica junto às atrizes, especialmente com a Dani Ornellas assinando a dramaturgia com você?
A construção dramatúrgica do espetáculo começou a partir de uma série de encontros que realizamos para desenvolver e escrever o projeto. Estávamos sempre juntos — eu, as quatro atrizes e a equipe de produção — para entender os caminhos possíveis da criação. O ponto de partida foi justamente a origem diversa de cada uma das intérpretes, suas histórias e o encontro entre elas. Na vida pessoal, elas são amigas, têm uma relação de irmandade que nos interessava muito explorar artisticamente.
Realizamos reuniões presenciais e virtuais para conversar sobre a ideia e deixá-la fluir. A partir disso, eu e Dani começamos a desenhar um roteiro dramatúrgico inicial, que funcionaria como uma primeira fase do processo, composta por uma bateria de testes cênicos. Essa etapa buscava refletir as experiências pessoais de cada atriz dentro do mercado teatral, audiovisual e cinematográfico. Foi quando começamos a entender como era singular o fato de atrizes negras interpretarem personagens brancas e russas — e como isso gerava questões e provocações artísticas que valia a pena levar ao palco.
Esses testes são inspirados em situações reais de audições, especialmente no audiovisual, que envolvem nervosismo, expectativas e a esperança de alcançar um papel desejado. Esse lugar de desejo e projeção — o papel almejado, a cidade-sonho — é, para nós, a Moscou da peça. É para onde as personagens querem ir, o que elas buscam, e também o que questionam.
O processo de ensaio, de fato, começou depois desses encontros. Nos primeiros ensaios, trabalhei individualmente com cada atriz, por meio de improvisações e experimentações. Elas só foram ver as cenas umas das outras no segundo mês. Essa escolha nos permitiu construir cenas que carregassem com autenticidade os anseios e vivências de cada uma — como artista e como pessoa. O diretor — papel que eu também assumo na encenação — está presente em cena, e essa presença acabou entrando na dramaturgia, trazendo mais camadas ao trabalho.
Foi a primeira vez que as quatro estiveram juntas no palco. Esse momento coletivo de troca e descoberta também foi essencial para o espetáculo. A dramaturgia foi sendo construída a partir dessas vivências, com Dani colaborando diretamente comigo na organização das cenas e na costura narrativa. Também buscamos referências comuns às três atrizes pretas do elenco. Tentamos trazer alguma coisa em Iorubá, mas decidimos manter apenas algumas canções. Há ainda elementos que remetem ao candomblé, com músicas que evocam Exu.
O tempo todo, nosso objetivo foi respeitar e fazer emergir essa ancestralidade como força vital da encenação.

O espetáculo propõe uma ruptura com paradigmas tradicionais do teatro. Quais seriam esses paradigmas? Que estratégias cênicas ou narrativas você usou para tensionar essas convenções?
Tem uma coisa que aconteceu e que acho importante mencionar. Eu dou aula na Escola Sesc de Artes Dramáticas, aqui no Rio de Janeiro — uma escola voltada para estudantes de baixa renda, localizada em Jacarepaguá, com um foco muito claro em atender jovens da periferia. Isso é especialmente relevante no contexto do Rio, onde a maioria das escolas de teatro e interpretação está concentrada na zona sul, com um perfil social bastante distinto.
Essa escola ocupa um espaço necessário, pensando justamente em quem não tem condições de pagar uma escola cara de teatro ou que não consegue acessar uma universidade pública. Eu mesmo me formei numa universidade, mas sei que esse acesso ainda é muito limitado.
Cito isso porque, certa vez, uma aluna da escola — atriz iniciante, jovem, preta, de 20 anos — viu o cartaz do espetáculo e ouviu eu falando sobre a peça. Ela me perguntou: “Nossa, são atrizes pretas fazendo ‘As Três Irmãs’ de Tchékhov? Então eu posso fazer?”

Essa pergunta, para mim, diz muito sobre o sentido do projeto. Fala da urgência de reentender e ressignificar convenções que seguem muito engessadas. Por mais que já exista essa discussão no meio artístico, ainda se executa muito pouco.
Isso aparece diretamente na peça. Em uma das cenas, as atrizes discutem justamente essa questão: o quanto elas podem fazer qualquer papel. O quanto o mercado ainda insiste em restringir as atrizes negras a personagens específicos — normalmente ligados à pobreza, ao sofrimento. E por que não ter uma família aristocrática negra? Por que não ter rainhas negras, reis negros? Por que não imaginar também uma rainha que seja uma mulher trans?
A gente precisa desconstruir esse lugar do óbvio. E usar os clássicos para abrir novas possibilidades. Porque é justamente isso que torna uma obra clássica: a capacidade de ser revisitada e ressignificada continuamente.
Na peça, a segunda parte é dedicada ao ensaio propriamente dito. Primeiro, temos a bateria de testes; depois, o ensaio; por fim, o texto de Tchékhov. Nesse segundo momento, elas abrem uma discussão sobre essas ressignificações — sobre o que elas significam para elas mesmas, para quem está assistindo, e para o que acontece dentro de cada uma de nós. É uma conversa que se amplia para refletir o país, e até mesmo o mundo. Lá fora, talvez esse tipo de proposta já esteja mais presente. Mas, no Brasil, ainda é muito raro ver esse tipo de montagem.
Ainda temos uma cena teatral muito marcada por um único ponto de vista. Onde estão as mulheres negras interpretando personagens da elite, mulheres bem-sucedidas, em papéis que escapam do lugar do sofrimento? É sobre isso que falamos. É esse debate que se abre na peça — e que elas também dividem com o público.

Como você vê o papel do teatro hoje na construção de imaginários mais diversos e plurais?
Acho que o teatro tem avançado bastante. O mercado, hoje, é bem diferente do que era há dez anos. Temos visto mais representatividade nos palcos, o que é importante, mas ainda é pouco. Precisamos seguir desconstruindo o que já está estabelecido. Recentemente, dirigi TYBYRA – Uma Tragédia Indígena Brasileira, no Sesc Avenida Paulista, texto de Juão Nyn, que aborda o primeiro caso registrado de homofobia no Brasil. Em 1624, um indígena gay foi amarrado à boca de um canhão, e o próprio irmão foi forçado a acendê-lo. Essa história brutal esteve em cena há pouco tempo.
E agora, estamos novamente ocupando os palcos com outra ressignificação potente: um clássico do teatro ocidental protagonizado por atrizes negras. Esses movimentos são importantes e reveladores. Sinto que estamos em um caminho promissor, mas que ainda exige força e insistência. É preciso continuar tensionando e propondo novas formas de ocupação — porque, embora já haja mudanças, elas ainda não são garantidas nem seguras. Corremos o risco de retroceder se não mantivermos esse esforço constante.

Quais elementos da peça original de Tchékhov permanecem na encenação de Irmãs? E como eles ganham novos significados ao serem atravessados pelas vivências e corpos das atrizes negras?
No terceiro ato da nossa peça, encenamos o quarto ato do texto original. Mas, na nossa adaptação, retiramos todos os personagens masculinos — eles são apenas citados, não aparecem em cena. Toda a dramaturgia foi colocada na boca das quatro personagens: Olga, Irina, Macha e Natacha. É nesse momento que o texto de Tchékhov entra com mais força, embora ele já apareça desde o início, especialmente no primeiro ato, em trechos que são ressignificados pelas próprias atrizes. Elas retrabalham as palavras, dão novas camadas ao texto.
As construções individuais de cada personagem deixam clara essa potência. A encenação e a experiência de vida de cada atriz colocam a peça em outro lugar, ampliando os sentidos do original. É uma nova embocadura, um novo olhar sobre as relações entre as personagens e essa “Moscou” tão simbólica.
Tem uma fala, por exemplo, logo na primeira cena, em que a personagem Irina, vivida por Jamile Cazumbá, diz que quer ir para Moscou — ou, como ela mesma acrescenta, “sair da Palestina”. E aí ela explica: Palestina é o bairro onde nasceu, em Salvador. Esses paralelos são feitos o tempo inteiro no espetáculo.

Até 20 de julho de 2025. Quinta a sábado às 20h e domingo às 18h
Arena do Sesc Copacabana – Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana, Rio de Janeiro
Ingressos: R$ 10 (associado do Sesc), R$ 15 (meia-entrada) e R$ 30 (inteira)