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OLÁ,

O grande delírio feminista de Helena Ignez

Encenadora atualiza “Vestido de Noiva” numa montagem ao mesmo tempo fiel e libertária da obra icônica de Nelson Rodrigues

Por Gabriella Mellão
2 dez 2024, 08h00
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Simone Spoladore e Djin Sganzerla (Ale Catan/divulgação)
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A responsabilidade de remontar o marco do modernismo teatral brasileiro. Nelson Rodrigues causou uma revolução sem precedentes na história das artes cênicas do país em sua segunda incursão dramatúrgica, montada em 1943 sob direção do polonês recém chegado no país, Zbigniew Ziembinski, que introduz o conceito de encenador no país afeito até então a ensaiadores. 

Foi um antes e depois “Vestido de Noiva”, à lá Jesus Cristo. Antes comédia de costumes e peça bem-feita. Depois o mergulho vertiginoso nos túneis do consciente e do inconsciente do labirinto da mente humana. 

Como atualizar a revolução formal causada por Nelson Rodrigues? Helena Ignez, ícone transgressor dos movimentos renovadores do cinema nos anos 1960 e 1970 que o tempo, a coragem e a inventividade transformaram em, além de atriz, cineasta e diretora de teatro de olhar vanguardista para a arte e o feminino, se lança à empreitada que pode ser vista até dezembro em São Paulo, no Sesc Consolação. 

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Djin Sganzerla, Simone Spoladore e Lucélia Santos (Ale Catan/divulgação)

Helena faz uma leitura contemporânea de “Vestido de Noiva” ressaltando não apenas seu caráter mítico e simbólico, também o feminista. Reúne um time poderoso de artistas, em sua maioria mulheres, encabeçado pelas atrizes Djin Sganzerla, sua filha, Lucélia Santos e Simone Spoladore.

Como faz em sua obra cinematográfica, celebra a anarquia do desejo e das ordenações limitantes na versão autoral do espetáculo, a exaltar a vitalidade que pulsa da libertinagem dos sentidos e da linguagem.  

Nelson Rodrigues introduziu os descaminhos da psicologia humana no palco numa época em que o teatro almejava entreter por meio, sobretudo, de comédias dotadas de começo, meio e fim, personagens bem delineados e conflitos claros a serem resolvidos em finais convincentes. Causou reboliço com a inacessibilidade de uma protagonista apresentada não através de fatos mas de projeções insólitas de seu desordenamento interno. Transformou memória, alucinação e realidade em planos distintos, os quais, justapostos, compunham o estado de confusão da personagem que segue ao atropelamento na cena de abertura. 

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Sobre a mesa cirúrgica, num limbo entre vida e morte, a imaginação delirante da protagonista intitulada Alaíde vaga pelo palco revisitando memórias, anseios e o triângulo amoroso vivido entre ela, a irmã Lúcia e o marido Pedro, sem distinção do terreno visível e do invisível. 

A unidade de espaço desobedece fronteiras e rompe dimensões. Dá lugar à multiplicidade das possibilidades criativas. O tempo tem a liberdade de inventar, avançar e recuar depreendido da correspondência lógica e cronológica. Movimenta-se leve, solto, frequentemente de forma circular ao retomar ou contradizer projeções anteriores em agitações invariavelmente fugidias. No lugar de uma ação exterior com seus passos  certeiros rumo a um êxtase final, há uma tensão, e ela vibra em atrito com os recônditos particulares de cada membro da plateia ressaltando o espelhamento com o espectador da luta vivida pela protagonista entre luz e escuridão, instinto e convenção, recalque e desejo, e assim por diante. 

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(Ale Catan/divulgação)

Atualização da peça “Vestido de Noiva”

Se Nelson Rodrigues irrompe tradições ao introduzir os diferentes níveis da psiquê de Alaíde e colocá-los em confronto um contra o outro, Helena Ignez subverte o clássico confundindo-os. 

Mantém fidelidade ao texto mas trata de eliminar o plano da realidade carregando de abstração a única dimensão concreta da peça, com vídeos estilizados criados por André Guerreiro Lopes projetados em estilhaços, em sintonia com a desorientação mental de Alaíde. 

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São nove telas espalhadas pelo palco, pensadas como instalação em uníssono com a geometria da luz de Aline Santini, idealizada em planos e justaposições de incidências de cores, e do cenário de Simone Mina

Mina atualiza as formas curvilíneas da cenografia de Tomás Santa Rosa do “Vestido de Noiva” original. Mantem as escadas e a dupla elevação usadas por Rosa para ressaltar a separação dos planos, aqui confundidos, numa organização que privilegia a liberdade.

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Djin Sganzerla (Ale Catan/divulgação)

Através das projeções, viram poesia cênica cenas cuja função originária era localizar a ação central da história, como a da redação na qual jornalistas recebem a notícia do atropelamento de Alaíde. Em vez de um recorte no cotidiano de um repórter policial (cargo exercido por Nelson no jornal “A Manhã”, fundado pelo pai de NR), o que se vê são fragmentos delirantes de olhos, orelhas e bocas, talvez inspiradas pelo pai do teatro de absurdo Samuel Beckett, em obras como o monólogo “Não Eu” – na qual uma a protagonista, uma mulher de setenta anos, é reduzida a uma boca. 

A concretude das cenas de hospital, em que Alaíde está na mesa de cirurgia, também dá lugar à subjetividade de imagens férteis em simbolismo, as quais aproximam, por exemplo, radiografias de cérebros com maças em estado de putrefação. Flores murchas dão pistas da iminência da morte. Estátuas de túmulos de contornos exuberantes de figuras femininas associam desejo, delírio e morte compondo um raio x psíquico da personagem central.

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Toda esta abstração acaba por colocar a veracidade do atropelamento em cheque. Mais do que isso, na medida em que a realidade é distorcida e a alucinação toma conta da obra, passa-se a duvidar de toda e qualquer certeza numa reprodução conceitual do estado do homem diante das ameaças sobretudo inomináveis da existência contemporânea, causadoras de verdadeiras guerras internas, de caráter psicológico, para além das externas. 

Na limpeza dos parcos resquícios de objetividade presentes na montagem, forma e conteúdo se misturam evidenciando a genialidade de um autor que apresenta o teatro moderno do país antevendo as linhas borradas do contemporâneo, ressaltadas por Ignez.

Nelson Rodrigues dá protagonismo a uma mulher. Mais, a uma mulher no caminho da libertação do embate vivido por toda sua classe entre o instinto e as convenções repressoras de um mundo cujas tradições teimam em se renovar através do acúmulo de camadas de um mesmo velho verniz.

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(Ale Catan/divulgação)

Na disputa das duas irmãs pelo mesmo homem, se abstém de colocá-lo no centro da cena, ele que é o pilar central da sociedade conservadora e patriarcal. Em vez disso, deixa-o em segundo plano, direcionando os refletores para o desejo e a autonomia da mulher.

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Ignez avança sobre os passos do dramaturgo pernambucano considerado um dos maiores do país do século XX despotencializando o mundo masculino. Para as aparições de Pedro e seus duplos — personagens homens que irrompem alucinações carregando as mesmas feições de Pedro —, conta com a interpretação sob medida de Jiddu Pinheiro, equilibrada no meio caminho entre o vigor e a impotência.

Alaíde está em busca de sua identidade. Pedro não é um fim, os homens de forma geral surgem como um meio para a investigação de si mesma, pontes facilitadoras para acessar sua essência profunda. 

O encontro com seu submundo é auxiliado por Madame Clessy, mulher de vida livre, vitima da incompreensão e da inveja da sociedade, frequentemente representada como prostituta de sotaque francês, que encontra brasilidade na interpretação de Lucélia Santos. A atriz  possui uma longa história de amor com a obra de Nelson Rodrigues; desde “Bonitinha mas Ordinária”, de 1963, viveu cerca de uma dezena de personagens criadas por ele. 

A intimidade adquirida parece ter contribuído `a autenticidade de sua Clessy. Na composição, deixa a artificialidade de lado. Suas aparições são despretensiosas, parecem divagar à procura do prosaico, e não há maneirismo, não há exotismo ou brasilidade para estrangeiro ver.

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(Ale Catan/divulgação)
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Alaíde, comumente vista numa balança oscilante entre santa e pecadora, desperta na atuação de Sganzerla o fascínio da loucura a conectar abismos e iluminar os mistérios que fazem vida e morte, tragédia e comédia, inocência, malícia e sabedoria darem os braços. É neste enlace enigmático, um abraço indecifrável, ao mesmo tempo acolhedor e cheio de espinhos, que ela acaba por viver um dos grandes momentos de sua carreira como atriz.

Alaíde não sabe ao certo quem é, o que quer, e o que faz em seus delírios, presa em batalhas internas, na relação superficial com o marido, na guerra constante com a irmã, apoiada pela falsa intimidade que conserva com os demais familiares e Madame Clessy, na ligação imprevista que as une. 

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Djin Sganzerla (Ale Catan/divulgação)

Não sabe mas quer descobrir. Quer se libertar, quer se encontrar. Vaga pelo campo de suas elocubrações em busca de paisagens mais verdadeiras, vibrantes e livres, inspirando o espectador para que possa, quem sabe, obter ele também seus lampejos, se entender ele também com desejos inconfessáveis. 

Faz sua travessia portando um vestido de noiva, como Lúcia sua irmã e Clessy, em seu velório, mulheres que, para além de personagens, a espelham. Com sua veste transparente, Alaíde é noiva de si mesma, mais apta do que nunca a se ver no fundo, a se ver profundo. 

Peça Vestido de Noiva

Sesc Consolação (Rua Dr. Vila Nova, 245)
Sextas e Sábados, às 20h; domingos, às 18h; até 8/12
Ingressos: De R$ 21 a R$ 70 | Classificação: 12 anos

 

 

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