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“O Quebra-Nozes” de George Balanchine: 70 anos do ballet que reinventou o Natal

Versão que estreou em 1954 é até hoje uma das mais populares e lucrativas de todos os tempos

Por Ana Claudia Paixão
13 dez 2024, 08h00
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 (New York City Ballet Website/reprodução)
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Entramos em dezembro e é aquela época do ano na qual Tchaikovsky é a trilha sonora nas quatro partes do mundo. Isso graças a uma de suas obras mais populares, a música do balé O Quebra-Nozes. Pois bem, em seus 132 anos, a versão mais popular para alguns (como eu) é a imbatível versão de George Balanchine que 2024 completou 50 anos.

Criada para o New York City Ballet a partir de lembranças dos natais que coreógrafo viveu como criança na Rússia, a produção é considerada um programa obrigatório de Natal na cidade e confesso, porque vi ao vivo mais de uma vez, é mesmo emocionante. É uma das coisas mais perfeitas criadas por Balanchine, foi transformada em filme em 1992 e segue atemporal.

Quando estreou em 1954, a companhia era formada por 90 bailarinos, 62 músicos, 40 ajudantes de palco e o coreógrafo trouxe mais de 125 crianças para o palco, todas estudando na School of American Ballet. Por isso mesmo é a tradição porque é o balé que marca todo profissional da dança, que, invariavelmente, em algum momento, dançou “O Quebra-Nozes” ainda pequeno. Também está aí a razão de ser tão mágico, como a árvore de cerca de 12 metros de altura que marca o começo do sonho de Clara. Seja na plateia ou no palco, a reação é a mesma, garanto. Doce, feliz e esperançosa. 

Mas se engana quem pensa que é simples. O Quebra-Nozes é também um dos balés mais complexos do repertório da Companhia do New York City Ballet. Só a árvore é um trabalho intricado e difícil, que envolve muitos profissionais para apenas alguns minutos.

Outro destaque, embora algumas vezes eu não tenha curtido, são os trajes coloridos criados por Karinska, assim como os cenários mágicos de Rouben Ter-Arutunian. Cada cor, forte ou pastel, reflete uma memória do criador, alinhado com elementos do palco e uma iluminação projetadapara intensificar a imaginação com efeitos visuais frequentemente aplaudidos em cena aberta. Seja a neve que cai no primeiro ato, a árvore de Natal que cresce de 4 para 12 metros em uma cena importante, a figura cômica da Mãe Ginger do alto dos quase três metros de largura e uma saia que demanda nada menos que um time de três pessoas para movimentar, o que não falta são momentos de suspiro.

No primeiro ato, na festa de Natal dos Stahlbaum, Marie (Clara) e Fritz, brincam com amigos e anseiam pelas trocas de presentes. O padrinho de Marie, Herr Drosselmeyer e seu sobrinho, trazem bonecos de tamanho natural, mas é o pequeno quebra-nozes que encanta a menina. Fritz quebra o boneco, Drosselmeyer o conserta, mas depois que todos se vão, ela volta sozinha até a sala para dormir perto do brinquedo. Em um sonho ultra real, ela encolhe para o tamanho onde fica de igual estatura dos bonecos e dos ratos, que atacam. Ela é salva, claro, embarcando numa viagem mágica ao mundo dos doces antes de acordar na sala na dúvida do que “realmente” aconteceu.

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No segundo ato, Balanchine fez mudanças importantes. O solo da Fada Açucarada é um dos primeiros movimentos do segundo ato e o pas-de-deux, depois de uma estonteante Valsa das Flores (cuja primeira solista foi a encantadora Tanaquil Le Clercq) é um desafio da física para os dançarinos. Por isso vale buscar o filme com Macaulay Culkin para entender uma parte do que estou descrevendo. Podem até ter 70 anos, mas não envelheceu em nada.

Lembrando o começo: o último ballet de Tchaikovsky

Historiadores comentam que Tchaikovsky não gostou particularmente de trabalhar na partitura do que viria a ser seu último balé, O Quebra-Nozes. Ele aceitou a encomenda do Teatro Imperial para entregar dois projetos e um dele o reuniria com o coreógrafo Marius Petipa. Os dois tinham feito sucesso dois anos antes com A Bela Adormecida, mas nem a trama nem o desafio de O Quebra-Nozes o agradaram profundamente. Curiosamente é justamente, 132 anos depois, é a elogiada música do balé que é uma das suas composições mais conhecidas e adoradas, meio que uma trilha sonora mundial para as festas de Natal.

O Quebra-Nozes é também uma obra nostálgica para dançarinos e a principal fonte financeira em um árido universo de recursos como o da Dança. Só para se ter uma ideia, estima-se que a venda de ingressos para a tradicional produção do The New York City Ballet represente pelo menos 45% do lucro anual da companhia. Esse valor é maior para companhias menores ou semiprofissionais, fazendo de O Quebra-Nozes uma das obras mais importantes do balé clássico. A pandemia, por exemplo, que impediu a apresentação ao vivo e interrompeu a tradição de mais de 66 anos, representou um prejuízo de mais de 70% para a companhia em 2020. Sem o prestígio artístico de outras obras, o balé natalino garante sua importância por essa fonte de lucro.

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Tudo começou quando o diretor do Teatro Imperial da Rússia, Ivan Vsevolozhsky, selecionou o tema a ser trabalhando no final do ano: a adaptação da história de E. T. A. HoffmannA História de um Quebra-Nozes, por sua vez inspirado no O Quebra-Nozes e o Rei dos Ratos, de Alexandre Dumas. O balé estreou em São Petersburgo em 6 de dezembro de 1892, a pedido do czar Alexandre III, que estava presente na plateia. A música foi sucesso imediato, a coreografia, mais ou menos. O enredo foi ultra simplificado para poder ser contado em dois anos (e um prólogo), recontando a história de Clara (ou Marie, na Rússia), uma garotinha que ganha um quebra-nozes de brinquedo e em seus sonhos ela o salva do ataque do Rei dos Ratos. O Quebra-Nozes se transforma então em um belo príncipe que a leva para a terra açucarada. Na manhã seguinte, ela desperta sozinha na sala, feliz pela noite de Natal mágica.

Na remontagem do balé, alguns anos depois, a idade de Clara foi alterada para que ela pudesse ser dançada desde o início pela principal bailarina da noite e não apenas no final, como na apresentação original. Um dos que voltou ao conceito de 1892 foi George Balanchine.

Mas é como negócio que “O Quebra-Nozes” mantém sua importância mais de 130 anos depois. Aos poucos, a obra se transformou em uma peça de marketing lucrativa porque permite aplicação da marca das companhias em eventos e produtos relacionados que geram receita extra. Enfeites, sabonetes, soldados e – claro – o Quebra-Nozes. Existem parcerias do New York City Ballet e várias lojas, desde a Tiffany a lojas de brinquedos, e estima-se que os “negócios auxiliares” possam arrecadar mais de 200 mil dólares extras. Somando os mais de 2 milhões de dólares arrecadados nas bilheterias da temporada que começa em dezembro, é o suficiente para sustentar todo elenco ao longo do ano.

Não é por nada que O Quebra-Nozes seja apontado como a grande vaca leiteira da dança clássica, cuja genialidade é por ser associada às crianças. Isso mesmo, por conta da história infantil, o balé conta com muitos papéis de destaque feitos para o público infantil, que gosta de participar e também movimenta a compra de produtos. Uma equação vencedora.

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O sucesso nas salas de concerto antes dos palcos

A hesitação de Tchaikovsky com “O Quebra-Nozes” se revelou um erro de julgamento do compositor. Ao apresentar trechos da música em um concerto (a versão suíte) tanto o público como os críticos aprovaram, dando maior confiança ao exigente músico. “O Quebra-Nozes” traz algumas das melodias mais famosas de Tchaikovsky, e é desde os anos 1960s, quando retomou popularidade, uma das trilhas obrigatórias de Natal.


A versão de 1892

Mas a polêmica mesmo não é em torno da música, mas sim de quem efetivamente assinou a coreografia do ballet, que estreou no dia 18 de dezembro de 1892. Marius Petipa ou seu assistente e sucessor, Lev Inavov? Os dois levam crédito, mas reza a lenda que Petipa contribuiu pouco ou mesmo nada com a obra.

Assim como fez em A Bela Adormecida, Petipa encomendou a música para Tchaikosvky apenas sem a melodia. Sua orientação era tão detalhada que definia para cada peça o tempo e compasso que queria. Porém, assim que começou a trabalhar, em agosto de 1892, Petipa ficou doente e precisou se afastar. Ivanov, seu assistente há sete anos, tomou a frente da criação.

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Pelo visto os bastidores foram confusos porque a primeira versão do ballet não foi unânime como os trabalhos anteriores. A primeira apresentação ficou longe do sucesso. Alguns críticos elogiaram detalhes, outros, detestaram. A inovação de colocar crianças dançando no papel de crianças (uma tradição mantida desde então) não ganhou apoio. A cena da batalha foi considerada confusa e amadora, o roteiro que omitiu partes da história original foi também alvo de reclamações, assim como a transição do mundo real para o mágico foi descrita como “abrupta”. Para piorar, a principal bailarina – que faz a Fada – não dança até praticamente o final do ballet. Nem a música, em geral aprovada, despertou muitos elogios.

Não é surpresa então que O Quebra-Nozes tenha ficado “esquecido” até Alexander Gorsky fazer uma primeira revisão, em 1919. Nela, o pas-de-deux da Fada foi “dado” para Clara e o Quebra-Nozes, tirando as crianças da montagem. Essa alteração foi copiada em várias produções até o dia de hoje.

Em 1934, O Quebra-Nozes foi montado pela primeira vez na Inglaterra, se inspirando na coreografia de Petipa e Ivanov e apenas 10 anos depois chegava aos Estados Unidos, logo se tornando uma produção “obrigatória” natalina.

Para muitos no ocidente, a versão “definitiva” é a de Georges Balanchine. Na primeira apresentação, Maria Tallchief era a fada e Tanaquil Le Clercq ganhou um solo espetacular na Valsa das Flores, que é o ponto alto de toda apresentação.

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Por isso mesmo, sete décadas após sua estreia, a versão de “O Quebra-Nozes” de Balanchinecontinua sendo um marco indiscutível para a cultura natalina. Mais do que um espetáculo, ela é um exemplo vivo de como a arte pode transcender gerações, combinando memória pessoal, excelência técnica e apelo universal. Balanchine não apenas reinventou um clássico, mas transformou-o em um fenômeno cultural, uma tradição que conecta crianças e adultos, dançarinos e público, realidade e fantasia.

O Quebra-Nozes celebra a magia do Natal e a imaginação infantil, e é a prova de como a arte pode ser ao mesmo tempo atemporal e profundamente enraizada em seu contexto histórico. Que continue encantando por muitos natais futuros!

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